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Turismo para cegos

MONTENEGRO, Tércia. Turismo para cegos. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

Caroline Barbosa
Ilustração: Théo Crisóstomo

Turismo para cegos (2015) é o romance de estreia de Tércia Montenegro (Fortaleza, CE, 1976), professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e fotógrafa. Na obra, a cegueira, a discussão entre arte clássica e contemporânea, as relações interpessoais e a complexidade do ser humano são os motes principais.

Pierre, jovem servidor público, é aluno de pintura de Laila até o momento em que ela decide encerrar as aulas devido a uma degeneração progressiva da retina, que compromete sua visão. Ele percebe que gosta da moça, principalmente porque, considerando-se feio, acredita que a doença de Laila facilitaria a relação entre ambos. Assim, o leitor logo percebe que a relação não nasce de motivações tão nobres. Demonstrando uma personalidade submissa e leal, Pierre consegue iniciar um relacionamento com a professora de Artes.

Laila é uma pintora que acredita que arte contemporânea é o nome de obras que não representam nada e, por isso, prefere valorizar o clássico. É uma anti-heroína que parece aceitar Pierre porque um afeto se instala e ele facilita a saída dela de casa e das preocupações dos pais, mas também porque “[…] ainda conseguia usá-lo para se distrair de sua revolta”. Quando resolve adotar um cão-guia, chama-o de Pierre. Esse gesto deixa claro que Laila exige devoção e submissão da relação que mantém com o ex-aluno.

Pierre corresponde às exigências e cuida de Laila. Juntos fazem viagens pelo Brasil e, como Laila não pode ver o mundo, tateia-o através das vozes, dos embates com corpos alheios nas ruas. O esforço por redescobrir outra forma de viver com a doença oscila, pois, como pensa Pierre, “depois da bonança, vem a tempestade e Laila cai numa depressão em estilo caramujo”.

O romance é dividido em três partes, que abrigam capítulos curtos. Na primeira, são apresentados Pierre e Laila e o início da relação entre ambos; na segunda, revelam-se os mistérios que cada um guarda; na última parte, entra em cena a narradora, personagem fundamental para os desdobramentos da trama. Sem ser nomeada, fica claro que se trata de uma estudante de jornalismo que deseja ser escritora. Ao trabalhar em um pet shop, conhece o casal no dia em que buscam um cão-guia e logo percebe o caráter permissivo de Pierre e a força dominadora de Laila.

Depois de alguns desentendimentos com Laila, Pierre convida a funcionária do pet shop para um café e conta todos os capítulos da relação. Enquanto Pierre precisava de um ombro para desabafar, a narradora aceita o encontro para coletar ideias para um personagem. A partir disso, tudo que o leitor sabe sobre Laila vem da narrativa contada pelo namorado e pelas lacunas que a narradora preenche. A metalinguagem se faz presente, pois cada um se aproveita do outro, e a narrativa é marcada pela subjetividade inerente a qualquer relato pessoal. Laila, aos olhos deles, é essa mulher que sofre, que se desespera, cheia de pequenos atos maldosos, mas também uma força temperamental, livre e inspiradora.

A narrativa não apresenta Laila com base em estereótipos comuns em relação à pessoa cega: a personagem não é vitimizada. Ela é o sujeito ativo da própria vida, que busca dar vazão às suas vontades, sejam elas consideradas boas ou ruins. É assim que Laila passeia pela cidade, aproveita as viagens, decide seu destino, mas também ofende as pessoas, envergonha Pierre de propósito e é impaciente com quem não lhe agrada. Sua subjetividade vem primeiro que a cegueira, elemento que não define quem ela é.

Dessa forma, o romance “[…] não é essencialmente um livro sobre a cegueira, mas uma obra que se utiliza da cegueira como uma estratégia para discutir as relações interpessoais dos personagens”, conforme Silva, Barros e Silva (2018). Pierre não é o que parece ser e, desde o primeiro contato, tem intenções ocultas na relação com Laila; Laila não busca ser vítima e exerce poder sobre os outros e a própria narradora guarda seus mistérios. Nessa trama, o que está em destaque é a complexidade do ser humano, e essa aposta afasta qualquer maniqueísmo.

A escritora conta com uma produção ampla, que transita entre contos (O vendedor de Judas, 2011), crônicas (Dicionário amoroso de Fortaleza: um tour pela cidade, 2014) e literatura infantojuvenil (Rachel. O mundo por escrito, 2010), além de romances publicados nos últimos anos (Em plena luz, 2019; Um espelho no prego, 2024).

Para saber mais

MAGALHÃES, Milena (2018). Cegueira e crueldade na narrativa de Tércia Montenegro. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 54, p. 41-60. Disponível em: https://www.scielo.br/j/elbc/a/jP3YYjjRSnbykWmHXkfdtqf/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 3 mar. 2025.

MELO, Cimara Valim de (2019). Uma literatura em trânsito: notas sobre Turismo para cegos, de Tércia Montenegro. In: 4º Seminário Internacional de língua, literatura e processos culturais – SILLPRO, 5 a 7 nov. 2019, Universidade Caxias do Sul. Anais… Caxias do Sul: UCS. v. 2, p. 81-93.

SILVA, Manoela Cristina Correia Carvalho; BARROS, Alessandra Santana Soares; SILVA, Miralva dos Santos (2018). Turismo para cegos: velhos e novos simbolismos numa obra literária sobre a cegueira. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 54, p. 61-83. Disponível em: https://www.scielo.br/j/elbc/a/zYd6dWyTMC5FCrLXwKJt6tv/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 3 mar. 2025.

Iconografia

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Como citar:

BARBOSA, Caroline.
Turismo para cegos.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

24 mar. 2025.

Disponível em:

4255.

Acessado em:

19 maio. 2025.