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A chave de casa

LEVY, Tatiana Salem. A chave de casa. São Paulo: Grupo Editorial Record, 2007.

Giulia Campos
Ilustração: Alice Carvalho dos Santos

Fragmentos. Essa é a palavra que norteia A chave de casa, romance de estreia de Tatiana Salem Levy (Lisboa, Portugal, 1979). Escritora, tradutora e doutora em Estudos da Literatura, ela começou sua jornada literária publicando contos em revistas e antologias. Caminhando pelo que convencionou-se chamar de autoficção, Levy oferece ao leitor, nesse romance, imagens vívidas que parecem emergir como fiapos de dentro de sua memória. A maleabilidade e a impermanência da memória são, na verdade, grandes temas e pontos centrais da obra, relacionando-se de maneira intrincada com a herança familiar e o sentimento de pertencimento.

Levy é natural de Lisboa, filha de pais brasileiros e neta de judeus turcos. Nasceu em meio ao exílio de seus pais durante a ditadura militar e mudou-se para o Brasil com sua família aos 9 anos de idade. Nesse romance, discute temas como identidade e pertencimento, sua história misturando-se e confundindo-se com a história da protagonista. Em entrevista ao Caderno Seminal de Estudos de Literatura, em 2021, Levy definiu o tema da herança familiar como uma de suas maiores obsessões literárias e um objeto recorrente de seus romances. Em A chave de casa, a certa altura, a protagonista afirma: “Tenho em mim, o silêncio e a solidão de uma família inteira, de gerações e gerações”.

A premissa que dá o título ao livro prende o leitor logo de início: a narradora está paralisada na cama quando ganha de seu avô uma chave antiquíssima, pertencente à casa onde ele morava com sua família em Esmirna, na Turquia, antes de emigrar ao Brasil para nunca mais voltar. Décadas depois, ele entrega a chave para a protagonista, propondo que ela vá até essa cidade para redescobrir suas origens e, quem sabe, abrir a porta da casa de seus antepassados. Essa jornada é descrita em capítulos curtos (muitas vezes com menos de uma página, algumas vezes com apenas um ou dois parágrafos) e vem costurada a outros diferentes contextos: as reflexões da narradora acerca do luto e da morte de sua mãe, sua relação com um homem violento e as histórias de seus antepassados.

O romance foi escrito, num primeiro momento, como a tese de doutorado, sob o título A chave de casa: experimentos com a herança familiar e literária. Em seguida, uma versão de 110 páginas do romance foi publicada, primeiro em Portugal, e em seguida no Brasil, pela editora Record. O romance venceu, em 2008, o Prêmio São Paulo de Literatura e, no mesmo ano, foi finalista do Prêmio Jabuti.

No artigoChaves de casa, chaves de leitura: fragmentos de leitura do romance A chave de casa, de Tatiana Salem Levy”, Alessandra Cristina Moreira de Magalhães discute a estrutura fragmentada da obra, analisando como a narração propõe uma leitura circular, “quiçá randômica”, do romance. Além disso, destaca como a contemporaneidade é delimitada por cenas entrecortadas e virtualidades. Com a constante evolução da tecnologia, e o advento dos celulares e redes sociais, a vida cotidiana atual é marcada pela sobreposição de narrativas, imagens, discussões e discursos, e os nossos modos de ler também são influenciados por esse contexto, tornando-se fragmentados na mesma medida.

Na entrevista, anteriormente citada, a autora também fala acerca dessa estrutura fragmentada de suas obras, relatando que sempre escreve a partir de uma imagem, procurando as palavras certas para ater-se ao essencial de uma cena, reiterando o que Magalhães afirma: se, no século XX, autoras como Virginia Woolf já pensavam sua escrita a partir de cenas, no século XXI, essas cenas são muito mais fragmentadas, velozes e curtas, uma vez que vivemos numa velocidade muito maior. Em A chave de casa, essa redução ao essencial fica representada, com algumas cenas formadas por um conjunto de duas ou três frases apenas.

Levy impressiona pela competência narrativa, e constrói cenas e sentimentos de maneira muito palatável a quem lê. Utiliza, com precisão, recursos estilísticos como elipses e lacunas, criando uma narrativa potente e lírica. Em certo ponto, a autora reconhece esse processo de reduzir suas cenas representativas ao essencial: “Se não sangra, minha escrita não existe”.

Há trechos marcantes, na obra, em que a autora apresenta ao seu leitor diversas dicotomias. Pamella T. Souza de Oliveira (2018) destaca algumas delas: “mobilidade/paralisia, passado/presente, prazer/dor, vida/morte e, não poderia deixar de citar, verdade/ficção”. Falando especificamente de verdade/ficção, um outro recurso estilístico amplamente utilizado na narrativa são os colchetes, que trazem a perspectiva de sua mãe, reiterando as memórias da narradora. Anna Caroline Carvalho (2017) define o uso desse recurso como um narrador onisciente neutro. É a partir dos colchetes que a narradora cria uma nova camada de compreensão para o leitor, discutindo a autoficção em sua essência. Pode alguém descrever as próprias memórias de maneira fidedigna? Levy explora essas ambiguidades e antagonismos com destreza.

Magalhães (2012) aborda ainda como a voz da mãe, apresentada entre os colchetes, propõe um contraponto, trazendo uma força de contestação à versão dos acontecimentos dada pela protagonista. No mesmo sentido, a autora também discorre sobre como a autoficção se situa nos limites da ficção, possibilitando ao leitor presenciar o “desenrolar […] do processo de construção da escrita e do sujeito, que acontecem simultaneamente”. Esse processo fica especialmente claro quando Levy utiliza-se dos colchetes para propor um diálogo entre as diferentes vozes que dão vazão à narrativa.

Num momento especialmente sensível da obra, a protagonista, após descrever em detalhes e ausências seu estado de paralisia e sua dor, dialoga com a voz da mãe, que lhe pergunta se ela nunca pensa em coisas boas, e se não tem sonhos. No fim do fragmento, a primeira das vozes responde: “meu sonho, mãe, é escrever. [Escrever?] É, tenho esse sonho impossível, escrever, escrever, escrever”.

Tatiana Salem Levy constrói, em A chave de casa, um mosaico de cenas, fragmentos e sentidos, compondo um romance sensível e complexo. Indo fundo em temas como identidade, pertencimento, herança familiar, luto e solidão, a autora costura com habilidade literária as dicotomias de sua subjetividade, e o resultado é um texto multifacetado, coerente e indispensável. Sua importância para a atualidade reside em sua originalidade estrutural e na forma como Levy discute temas difíceis a partir de um novo olhar, que abarca a fragmentação da contemporaneidade. A maneira com que a narrativa é construída faz ressoar a potência lírica da escrita de Levy.

Para saber mais

CARREIRA, Shirley de Souza Gomes; OLIVEIRA, Paulo César Silva de (2021). Entrevista com Tatiana Salem Levy. Caderno seminal, Rio de Janeiro, n. 39.

CARVALHO, Anna Caroline (2017). O narrador e a memória em A chave de casa. Monografia (Graduação em Letras) – Universidade de Brasília, Brasília.

MAGALHÃES, Alessandra Cristina Moreira de (2012). Chaves de casa, chaves de leitura: fragmentos de leitura do romance A chave de casa, de Tatiana Salem Levy. Revista MOARA, n. 37, p. 4-13, jan./jun.

OLIVEIRA, Pamella T. Souza de. (2018) “Um verdadeiro judeu não esquece seu passado”: a autoficção de A chave de casa, de Tatiana Salem Levy. Garrafa, vol. 16, n. 46, p. 82-100.

Iconografia

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Como citar:

CAMPOS, Giulia.
A chave de casa.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

24 mar. 2025.

Disponível em:

4115.

Acessado em:

19 maio. 2025.