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Stella Manhattan

SANTIAGO, Silviano. Stella Manhattan. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

Carlos Wender Sousa Silva
Ilustração: Francisco Dalcastagnè Miguel

Silviano Santigo (Formiga, Minas Gerais, 1936) é ensaísta, romancista, crítico, contista e poeta. O autor tem uma obra que se caracteriza pelo movimento interrelacional entre diferentes gêneros textuais, correlacionando elementos estéticos e formais, reflexões filosóficas, sociopolíticas e culturais. Sua produção emerge de um exercício constante de reflexão e criação poética, crítica e político-cultural. Em 1971, publicou o ensaio “O entre-lugar do discurso latinoamericano” e, em 2006, As raízes e o labirinto da América Latina. Na ficção, publicou Em liberdade (1981), um suposto diário de Graciliano Ramos que se revela, na verdade, como uma crítica contundente ao modelo de Estado autoritário e arbitrário que viola direitos e impõe processos institucionais de desumanização às pessoas. Essa aproximação entre realidade e ficção marca a experiência autoficcional e literária de Santiago.

Stella Manhattan (1985) enfoca a questão queer e apresenta uma protagonista que se transveste, dividindo um corpo entre dois mundos muito pouco semelhantes. A narrativa se passa no final dos anos 1960, período fortemente influenciado por movimentos culturais e políticos de liberdade sexual. Em liberdade (1981) e Stella Manhattan (1985) são obras do mesmo período, datadas da última fase da ditadura militar brasileira, e talvez por isso mesmo tenham um caráter eminentemente político: uma tendência estética e outra política. Os dois romances se desenvolvem em torno de personagens que propõem reflexões a respeito da condição humana, das limitações e das potencialidades de exercício dos espaços de liberdade sexual, além de denunciarem os abusos e as opressões institucionalizadas e validadas por meio de instrumentos políticos, sociais, jurídicos e culturais.

Silviano Santiago comentou, em entrevista (2022), que Em liberdade (1981) volta-se para as necessidades básicas de sobrevivência, enquanto Stella Manhattan (1985) explora a necessidade de satisfazer também os desejos, ou seja, aquilo que remete à subjetividade e individualidade. Stella Manhattan (1985) conta com um narrador pós-moderno, nos termos definidos pelo próprio crítico Silviano Santiago, como um elemento de sua estrutura textual-literária. O romance adota uma forma híbrida e fragmentada para desenvolver a narrativa, marcada pela intertextualidade, pela complexidade na construção das personagens e pelas diversas influências culturais, sociais e históricas que vão impactando o próprio desenrolar das ações que transitam entre o real e o imaginário.

Stella Manhattan (1985) traz para o campo ficcional grupos sociais que até então estavam escondidos, que eram obrigados sistematicamente a apagar e anular seus desejos e tinham institucionalmente suas potencialidades como sujeitos de direitos não reconhecidas. O romance é um exercício de representação de um grupo socialmente marginalizado e invisibilizado. Ele abre espaço para a representação artístico-literária, ainda durante anos de repressão e autoritarismo, para as dimensões social, econômica, política e cultural de populações sub-representadas nessas mesmas arenas: pessoas LGBTQIA+. O contexto histórico é fundamental para compreender os conflitos e tensões que atingem, direta ou indiretamente, as personagens: movimentos contestadores das minorias raciais estadunidenses, a articulação de grupos guerrilheiros no Brasil e no exterior, o sequestro do embaixador dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, espiões e desconfiança por toda parte. A protagonista do romance se divide entre dois mundos distantes entre si, Eduardo e Stella, que só se encontram em razão das confluências sociais e subjetivas que a própria experiência espacial impõe. Eduardo-Stella chegou a Nova York para trabalhar no consulado brasileiro, indicado forçadamente pela sua família em razão da rejeição à sua sexualidade e identidade.

Stella pouco está interessada nos acontecimentos políticos que assolam o Brasil. Porém, é envolvida nessa confusão ao ser interrogada pelo FBI após a invasão e a destruição de um apartamento que havia alugado para Vianna, adido militar do consulado, manter suas relações afetivo-sexuais às escondidas com outros homens. Vianna passa a persuadir Stella a seguir um plano, pois temia que descobrissem que era ele quem usava o espaço para relações homossexuais. “Os ianques perdoam tudo, bebida, mulher, taras, até droga, perdoam tudo, menos bicha. Toda bicha é comunista. Sua carreira, seus contatos nos States, tudo por água abaixo”. Antes disso, porém, os almoços de Eduardo-Stella com o adido militar já intrigavam as colegas de trabalho no consulado. Essa aproximação com o coronel Vianna, uma figura influente na organização e no planejamento do golpe militar, despertava dúvidas e receios também nos brasileiros – um grupo de exilados – com quem a personagem central tentava conviver em outros ambientes e que também já sabiam dos almoços às quartas-feiras, gerando rumores e desconfiança. Suspeitavam que Eduardo da Costa e Silva fosse algum parente do ex-presidente ditador e que ele tivesse ocupado um posto no consulado por ordem do SNI. Vianna, por sua vez, casado com uma mulher, viu em Eduardo um novo cúmplice e lhe revelou em um almoço que era gay. O coronel se sentia bem, na verdade, não com a farda, mas em suas roupas de couro que precisava esconder – para experiências sadomasoquistas. Eduardo “[…] percebe que o rosto de Vianna era mais apropriado para aquela fantasia do que para o terno e gravata do consulado”. O adido militar era uma figura ambígua. Segundo ele, o Brasil estava em guerra civil, o que supostamente justificaria a intervenção militar no país. Ademais, as notícias do Brasil não eram mais animadoras.

Na narrativa, há outros personagens em volta de Eduardo-Stella, como Paco, um cubano fugido, vizinho de andar. Paco fala de suas impressões do Rio de Janeiro e dos homens cariocas, embora nunca tivesse ido lá. O personagem conta sua percepção sobre o corpo desses homens, o movimento, a postura e o desejo que suscitavam nele. Ao conhecer Eduardo-Stella, Paco pergunta-lhe também se ele já conhecia os “sítios de atraco” em Manhattan — os locais de “pegação” gay. O corpo da personagem se coloca e manifesta seus desejos implícitos, escondidos, obscuros. A permanente tensão entre Eduardo e Stella o demonstra. Eduardo impunha, muitas vezes, uma sensação de sufocamento a Stella, e deixava escapar toda a rejeição, o sofrimento e a solidão que vinha sofrendo desde o Brasil e sua experiência familiar. A vida de Eduardo-Stella é carregada pela imposição de uma opressão sistemática. É um corpo marcado continuamente por uma série de rejeições e violências.

Além disso, Eduardo-Stella reencontra Marcelo também em Nova York, amigo dos tempos de faculdade. Marcelo frequentava uma organização que se posicionava contra os arbítrios e abusos da ditadura brasileira e com um grupo guerrilheiro que se articulava na cidade estadunidense. Marcelo também se encontrava com um professor universitário de história para discutir as potencialidades e o alcance das artes.

No romance, as personagens são atingidas por essa marca sociocultural da heterossexualidade compulsória. A permanente tensão entre Eduardo e Stella, o coronel no armário, os desejos de libertinagem sexual são expressões desse sistema impositivo e da criação em torno de alternativas para que não sucumbissem completamente. O contexto histórico do romance é desenhado e preenchido pelos “movimentos de liberação sexual”, ativos desde a década de 1960, que buscaram romper com a heterossexualidade compulsória. Eduardo-Stella é, nesse contexto, um corpo que reage às expectativas hegemônicas da sexualidade; um corpo que busca formas de cindir esse padrão estrutural que o reprime em todos os espaços da sociedade. Stella é a manifestação de um corpo que responde à realidade heteronormativa impositiva. É o reflexo de um processo de tomada de consciência política e subjetiva, por meio do qual seu corpo ensaia movimentos de liberdade, de expressão da sexualidade, dos desejos, da libertinagem. A própria ideia de libertinagem sexual experienciada pela protagonista e por outros personagens funciona como um mecanismo de escape, de sobrevivência, de reação às opressões e às violências estruturais e institucionais contra os corpos LGBTQIA+. A libertinagem floresce como alternativa de sociabilidade e de construção de afetos entre pessoas LGBTQIA+.

 É perceptível que os corpos desviantes enfrentam, ainda hoje, diversos desafios quando se trata de seu reconhecimento como sujeitos de direitos na prática social, jurídica e política, que se orienta por um ideal de Estado democrático de direito que se consolidou após o fim da ditadura militar. Stella Manhattan transcende esse desejo de liberdade e libertinagem, um tema presente em diversos momentos do romance. A narrativa trabalha com a linguagem de forma a criar uma polissemia linguístico-interpretativa, que não só oferece múltiplas leituras sobre a história, mas também sobre os movimentos históricos, sociais e culturais que transitam entre o irreal e a realidade.


Além disso, o texto coloca o sujeito homoerótico como sujeito de direitos, oferecendo uma leitura contrária aos processos sistemáticos de desumanização impostos pela heteronormatividade. Nesse contexto, Stella Manhattan se destaca como uma obra literária que contribui para a reflexão sobre a ideia de que os sujeitos homo e trans são também sujeitos de direito.

Para saber mais

LIMA, Carlos Henrique Lucas; CAETANO, Marcio (2018). Deriva e exílio sexuais: um ensaio sobre Stella Manhattan, de Silviano Santiago. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 54, p. 319-337. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/10374. Acesso em: 20 set. 2024.

UFMG Educativa (2024). ‘Stella Manhattan’: o primeiro romance trans da literatura brasileira. Apresentado por Michelle Bruck. Produção de Enaile Almeida e Félix de Alcântara. Disponível em: https://ufmg.br/comunicacao/noticias/stella-manhattan-o-primeiro-romance-trans-da-literatura-brasileira. Acesso em: 17 set. 2024.

 SANTIAGO, Silviano (2017). Stella Manhattan. São Paulo: Companhia das Letras.

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Como citar:

SILVA, Carlos Wender Sousa.
Stella Manhattan.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

24 mar. 2025.

Disponível em:

4248.

Acessado em:

19 maio. 2025.