YARED, Gabriel. Semente de sangue. Bahia: Corvus, 2021.
Angelica Raimundo Nogueira
Ilustração: Théo Crisóstomo
O livro Semente de sangue, escrito por Gabriel Yared (Macapá, AP, 2000), acadêmico do curso de Letras Português-Francês na Universidade Federal do Amapá, foi publicado em 2021 por um selo independente voltado à edição de ficção especulativa sobrenatural. A editora, criada no Nordeste, tem como proposta evidenciar elementos culturais brasileiros e, ao mesmo tempo, publicar histórias que fogem ao comum.
Ambientado em Mazagão, cidade-satélite de Macapá, o livro retrata a história do lugar e suas principais tradições ainda preservadas. Uma delas é a Festa de São Tiago, que normalmente acontece na metade do ano e que remonta à batalha entre cristãos e mouros. A batalha aconteceu em Mazagão, uma cidade em Marrocos, quando o país norte-africano foi ocupado por portugueses. Durante a colonização do Brasil por Portugal, mais especificamente no século XVIII, muitas famílias da região marroquina ocupada pelos portugueses foram transferidas para o norte do Brasil para que ocupassem um território estratégico na defesa dos interesses da Coroa portuguesa. Esse novo assentamento recebeu o mesmo nome da cidade original: Mazagão.
Ao chegarem ao Brasil, muitas dessas famílias trouxeram consigo pessoas negras escravizadas que eram consideradas parte de suas posses. Além disso, foi precisamente no século XVIII que ocorreu a intensificação do comércio escravista na capitania do Grão-Pará, o que aumentou a presença de pessoas negras na região. Essas pessoas mantinham suas próprias religiões e tradições, que se misturavam ao catolicismo, dando origem a manifestações culturais como a Dança do Marabaixo, apresentada durante a Festa de São Tiago, retratada no livro.
O escritor apresenta esses elementos culturais como parte fundamental da construção da narrativa, pois se relacionam diretamente aos personagens. A família Guimarães, protagonista da história, é uma das famílias que chegaram a Mazagão e se estabeleceram no lugar, aproveitando-se das terras para prosperar economicamente. No entanto, apesar dessa família conseguir administrar as terras e gerar empregos na região ao longo dos anos, o passado esconde um segredo obscuro que atravessa gerações e marca todos de forma trágica.
Com um prólogo poético, o livro logo evidencia o suspense que envolve a trama. Apresenta alguns personagens que despertam curiosidade no leitor e reaparecem conforme a história se desenvolve. Nesse momento, é narrada a morte de um homem, posteriormente identificado como Antônio Guimarães, o patriarca da família. A partida repentina dele é o que coloca seus filhos, Carlos e Adriana, a caminho de Vila Velha de Mazagão, distrito de Mazagão, com suas respectivas famílias, para resolver o futuro da propriedade e das pessoas empregadas nela.
No entanto, essa volta ao passado os coloca em contato com questões que eles gostariam de esquecer, como a relação conturbada com o pai, de quem guardavam profunda mágoa — ele os mandou para a casa de uma pessoa da família quando ainda eram novos. Porém, além de problemas pessoais, eles precisam lidar com outras questões que os afetam, mesmo não diretamente relacionadas a eles. É nesse cenário que se encontram seus filhos, Thiago, Lucas, Madeleine e Jean-Luc, netos de Antônio Guimarães, enfrentando seus próprios dilemas enquanto sentem o peso de mudar de alguma forma a história da família.
Assim, o livro aborda temas atuais e relevantes, sobretudo pela perspectiva das novas gerações, que conseguem superar seus traumas pessoais e familiares conforme olham para além de si, em busca de propósitos maiores. Isso representa, no século XXI, a vida de muitas pessoas mais novas que conseguem lidar com seus passados familiares e escrever novas histórias a partir de um novo lugar. São passados que envolvem assuntos espinhosos que as gerações mais velhas, por diversos motivos — como a falta de recursos emocionais — tendem a evitar e têm mais dificuldade em superar.
Além dos relacionamentos familiares, em Semente de sangue, o escritor amapaense trata de um tema relevante, mas sensível, para a sociedade brasileira: a escravidão. Quando o assunto é abordado, dificilmente se pensa na região Norte do Brasil; porém, esse episódio da história brasileira ocorreu em todo o seu território. Provavelmente, a dificuldade para associar a escravidão a essa região se dá por ela ser historicamente apagada. Desse modo, o livro é um aceno significativo do autor para dar visibilidade à cultura e ao passado nortista.
As propriedades rurais, as casas-grandes, muito lembradas quando o assunto é escravatura, estão por todo o país. Durante o período escravagista, elas funcionavam como centros que movimentavam a economia movida pela agricultura. Com o passar do tempo, depois da abolição da escravatura no Brasil, essas propriedades passaram a ter outros usos, e muitas pessoas permaneceram trabalhando nessas terras para ganhar dinheiro, comida ou moradia.
Não são raras na literatura as obras que misturam terror e crítica social, sobretudo retratando os horrores do racismo. O escritor Fábio Kabral, que escreve ficção especulativa afrocentrada, em um artigo para a Editora Intrínseca, aponta a importância da ficção especulativa para o povo negro. Segundo ele, todos precisam da ficção, mas os negros ainda mais, pois ela tende a apontar para novas possibilidades — algo essencial para quem carrega um passado marcado pela crueldade. Para esse escritor, a ficção especulativa é composta por narrativas que especulam sobre o passado, o presente e o futuro e permitem que o leitor imagine novos caminhos.
É importante destacar que a ficção especulativa não trata apenas de um tema. De certo modo, o livro de Yared tem a proposta de apresentar um futuro possível quando os personagens se reconciliam com o seu passado. O peso dessa decisão recai principalmente sobre dois netos de Antônio Guimarães, Madeleine e Jean-Luc. Antes, todos da família estavam fadados a um cruel destino, até que esses dois personagens tomam coragem para enfrentar o passado e dar um novo significado a ele.
Esse movimento no livro acontece por meio de digressões nas quais o autor transita entre o passado e o presente. A escrita apresenta um estilo diferente, a depender da época em que a história narrada se passa, conferindo ao livro um tom contemporâneo.
Com uma grande quantidade de informações e de personagens, Semente de sangue apresenta parte da cultura nortista e aborda temas que ainda precisam ser debatidos na sociedade atual. Além disso, relaciona-se ao gênero do terror, construindo a narrativa em torno de elementos sobrenaturais.
Para saber mais
KABRAL, Fábio (2020). Por que a ficção especulativa é tão importante para o povo negro? Blog Editora Intrínseca. Disponível em: https://intrinseca.com.br/blog/2020/04/por-que-a-ficcao-especulativa-e-tao-importante-para-o-povo-negro/. Acesso em: 03 fev. 2025.
MIRANDA, Alana Cristina Medeiros de (2024). Um par de olhos vermelhos faiscantes e malignos surgiu: sobre terror amazônico em Semente de Sangue, de Gabriel Yared. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Amapá, Macapá.
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