BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Não verás país nenhum: memorial descritivo. Rio de Janeiro: Codecri, 1981.
Sheila Jacob
Ilustração: Théo Crisóstomo
Não verás país nenhum: memorial descritivo, publicado em 1981, é o quarto romance do escritor Ignácio de Loyola Brandão (Araraquara, SP, 1936). O autor, que teve passagem por renomados veículos de imprensa, como o jornal Última Hora e a revista Realidade, estreou na ficção em 1965, com a publicação do livro de contos Depois do sol. Desde então, já lançou mais de 45 livros, entre romances, contos, crônicas, obras infantojuvenis, teatro e relatos de viagem. Destaca-se, nesse conjunto, o romance Zero, publicado primeiramente na Itália, em 1974, e no Brasil, no ano seguinte, pela editora Brasília, sendo logo proibido pela ditadura militar por ser considerado “contrário à moral e aos bons costumes”. A obra só voltaria a circular em solo brasileiro em 1979. Brandão foi laureado com diversos prêmios, entre eles o Jabuti nas categorias Infantil e Melhor Livro de Ficção, em 2008, por O menino que vendia palavras; o Machado de Assis, em 2016, pelo Conjunto da Obra; e, em 2019, tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras. Não verás país nenhum venceu, em 1983, o Prêmio IILA, como melhor livro latino-americano publicado na Itália, e, em 2019, o Prêmio Juca Pato, da União Brasileira de Escritores.
O título Não verás país nenhum estabelece uma intertextualidade com o poema ufanista “A pátria”, de Olavo Bilac, datado de 1904, no qual se lê: “Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!/ Criança! não verás nenhum país como este!/ Olha que céu! que mar! que rios! que floresta!/ A Natureza, aqui, perpetuamente em festa/ […]/ Criança! não verás país nenhum como este:/ Imita na grandeza a terra em que nasceste!”. Subvertendo o tom laudatório de tais versos, a narrativa publicada quase oitenta anos depois apresenta, desde os primeiros parágrafos, um cenário distópico, situado em um futuro incerto, quando não resta mais vestígio algum da natureza exuberante lida no texto do início do século XX.
Na São Paulo futurista apresentada aos leitores, já não há mais árvores; o calor é mais do que insuportável, chegando a ser fatal; acumulam-se cadáveres pelas calçadas; há uma imundície permanente; os rios secaram; os lixos estão espalhados por todos os cantos; o fedor se impõe de maneira onipresente; partes do território nacional foram vendidas a corporações estrangeiras. Com a escassez de água potável, urina reciclada passou a ser comercializada e consumida. O país sofreu um intenso processo de destruição dos recursos naturais; a Amazônia transformou-se em um deserto, ironicamente divulgado pela propaganda oficial do governo — chamado Esquema — como a nona maravilha do mundo. Não existem mais alimentos naturais, apenas comida artificial, preparada com aditivos tranquilizantes para minar a resistência e acomodar as pessoas a seu cotidiano degradante.
Trata-se de um ambiente “mefítico”, adjetivo que abre o romance de maneira isolada em uma frase e que será explicado posteriormente como “sinônimo de coisas ruins”. O contato inicial dos leitores com a narrativa já anuncia o nível de degradação que caracteriza a realidade ali representada, como comprovam os primeiros parágrafos da obra: “Mefítico. O fedor vem dos cadáveres, do lixo e excrementos que se amontoam além dos Círculos Oficiais Permitidos […]. Não há tempo para cremar todos os corpos. Empilham e esperam. Os esgotos se abrem ao ar livre, descarregam em vagonetes, na vala seca do rio. O lixo forma setenta e sete colinas que ondulam, habitadas, todas. E o sol, violento demais, corrói e apodrece a carne, em poucas horas”.
Os habitantes que conseguiram sobreviver a essa realidade mefítica estão, em sua maioria, mutilados e dopados. Todos convivem constantemente com o som de tiros, fichas de controle de consumo e de permissão para circular por determinadas áreas, além da corrupção praticada por aqueles que fazem parte do Esquema e da vigilância constante dos “civiltares”, “conhecidos e temidos pela excelente pontaria e rapidez”, “provavelmente a mais estranha e misteriosa milícia já criada por um governo”. Trata-se de um tempo em que os últimos resquícios de recursos hídricos estão encerrados em uma espécie de museu — conhecido popularmente como a Casa dos Vidros de Água — e o essencial é escasso: “As pessoas trabalham em troca de um prato de comida, um copo de água por dia. Não querem dinheiro, só comer e beber. Aí está a grande dificuldade. Se aceitassem dinheiro, tudo bem. Mas comida? E o que dizer da água então?”.
Quem guia os leitores por esse ambiente inóspito é o narrador-personagem Souza, um homem de cinquenta anos, ex-professor de História, que foi aposentado compulsoriamente e destinado a um trabalho inútil: conferir e corrigir informações geradas por máquinas consideradas infalíveis. Ele reflete sobre sua condição: “Gasto um tempo enorme sem fazer nada. Sinto, forte, a sensação de desperdício”. No presente da narrativa, a contagem do tempo foi transformada: não há mais dias, horas ou semanas, mas sim grandes eventos, nomeados quase sempre com tons de grandiosidade, como a Época da Grande Locupletação, o Grande Ciclo da Esterilidade, o Ciclo de Inversões Judiciárias, a Estirada Ciclópica, a Década das Declarações Incoerentes e os Abertos Oitenta, referência ao período de redemocratização. “Tivemos nomes para todas as épocas. Nenhuma ficou sem ser habitada. Pergunto: e este momento, como será chamado? Se é que alguém vai sobrar, para poder continuar a personificar períodos históricos. Será o Tempo dos Aglomerados à Espera da Morte? Ou os Bobalhões que Acreditaram?”, questiona o narrador com ironia ao final do romance.
Souza é casado com Adelaide e, durante a narrativa, passa por uma transformação repentina e inexplicável: sem causa aparente, enquanto se dirigia ao trabalho, um buraco se abriu em sua mão. A partir desse acontecimento insólito, sua conduta muda drasticamente. Antes acomodado e vivendo de forma automática, “a vida absurda se repetindo dia após dia”, ele ousa se desviar de seu caminho pré-estabelecido e começa a questionar e reagir ao sistema. Para Souza, esse acontecimento insólito simboliza a presença do imprevisível — uma brecha no sistema aparentemente impenetrável, um ponto de fuga em meio a tanto controle e opressão. Esse evento representa uma ruptura com o funcionamento mecânico da vida, metaforizado pela ideia de um “moto-contínuo” — um objeto recorrente na narrativa. “Por isso, amo este furo. Ele me mostra de repente que existe o não. A possibilidade de tudo mudar. De um dia para o outro”.
A trama de Não verás país nenhum desenvolve-se a partir das transformações que ocorrem na vida de Souza desde o surgimento do buraco em sua mão. Esse evento parece desencadear uma série de reviravoltas: ele é demitido; sua esposa, Adelaide, o abandona sem explicações; sua casa é invadida por desconhecidos envolvidos em esquemas obscuros; e cadáveres começam a aparecer no quartinho dos fundos. Além disso, ele passa a explorar a cidade, descobrindo lugares e paisagens antes ignorados, e reencontra um velho amigo da infância. Com isso, ele redescobre sensações há muito adormecidas, como a gargalhada e o desejo sexual, símbolos de uma humanidade esquecida em meio à repetição automática do cotidiano.
Começam, então, a surgir lampejos de memória, lembranças borradas de quem ele era antes de a exceção se transformar em normalidade. O protagonista reencontra-se consigo mesmo — e com os (des)caminhos de seu país natal — ao recordar do tempo da infância, do namoro com Adelaide, das vivências como professor universitário, das amizades antigas, do filho que teve, de quando ainda era possível ler e ele consumia romances policiais. Aliás, o exercício da memória é percebido como estratégia de retomada da própria identidade e de resistência em um tempo no qual os livros de história omitem o passado e as notícias são censuradas. O protagonista diz: “Tentei apagar a memória, imbecil que sou. Apagar, quando devemos fazer o contrário, lembrar, conservar vivo o horror, para lutar contra ele”. As trajetórias particular e coletiva se sobrepõem, tratando-se de um “memorial descritivo” — subtítulo do romance — tanto da história de um indivíduo quanto da própria nação.
Escrito no final dos anos 1970 e publicado no início da década de 1980, o romance destoa, portanto, da euforia experimentada em parte do país com a Lei da Anistia em 1979 e o início do processo de redemocratização, apresentando uma visão negativa de um possível futuro pós-ditadura, marcado por total falta de liberdade graças à vigilância permanente do Esquema. O livro também é considerado uma obra crítica e de denúncia do que estaria por vir ao antecipar temas recorrentes nos noticiários de hoje, como o aquecimento global e os sucessivos recordes de temperatura, a devastação dos recursos naturais e o desprezo pelos cientistas, que no romance são considerados paranoicos e passam a ser perseguidos por tentarem alertar a população sobre os perigos iminentes que a natureza já evidenciava.
O pessimismo que acompanha os leitores ao longo das páginas é pontuado por comentários irônicos do narrador, cedendo espaço, já no final do livro, a sutis sinais de esperança. Entre eles, o broto de uma planta que surge nas fissuras de uma paisagem árida e o cheiro de chuva que invade o ar, sugerindo que, mesmo diante de um cenário desolador, há a possibilidade de mudança. Esses sinais anunciam que, por menor que seja a perspectiva, a transformação pode começar a germinar, mesmo que venha de um ponto tão remoto.
Para saber mais
ALMEIDA, Pedro Caio Sousa; SILVA, Antônio de Pádua Dias da (2021). O significado da distopia em Não verás país nenhum: uma reflexão sobre literatura e política. Leitura, Maceió, n. 68, p. 281-296. Disponível em: https://www.seer.ufal.br/index.php/revistaleitura/article/view/10486/8395. Acesso em: 24 mar. 2024.
GIROLDO, Ramiro (2010). Memória e ação: aspectos de Não verás país nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão. Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo – Dossiê “Escritas da Violência II”, Santa Maria, p. 160-170. Disponível em: http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie03/art_15.php. Acesso em: 12 abr. 2024.
SANTOS, Taís Leme; ASSUNÇÃO, Eronildo Lino (2012). Memória e esquecimento em Não verás país nenhum. Nau Literária: crítica e teoria de literaturas, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 1-14. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/NauLiteraria/article/view/22229/22152. Acesso em: 15 abr. 2024.
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