STIGGER, Veronica. Opsianie swiata. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
Luciene Azevedo
Ilustração: Léo Tavares
Opsianie Swiata, de Veronica Stigger (Porto Alegre, RS, 1973), é uma obra performática. Isso significa um modo de caracterizar uma rede de referências que se espalham pelo texto e simulam o ambiente artístico provocador do modernismo brasileiro do início do século XX. Mas o que exatamente significa atribuir ao livro um caráter performático?
A primeira edição do romance, publicada pela Cosac Naify, apresenta um cuidado editorial admirável e constitui o primeiro indício para o leitor que folheia o livro de que o objeto, sua materialidade, integra a atmosfera reinante na construção narrativa. Além de diferentes tipografias e cores de páginas, há muitas imagens em meio ao texto: reprodução de cartões postais antigos e de propagandas da época (que vendem cerveja, pomadas cicatrizantes e um mamígeno para garantir às mulheres a “perfeição das estátuas gregas”). Esses objetos que aparecem como se tivessem sido esquecidos em um caderno de viagem, bem como sua dispersão ao longo das páginas, mimetizam o fio condutor da história que avança por episódios independentes uns dos outros.
A história começa com uma carta de Natanael a um pai que nunca conheceu, o sr. Opalka. O pedido do filho, que está à espera da morte, para que o pai venha visitá-lo em Manaus é o mote para a viagem de navio feita por Opalka, na qual encontra o personagem central da trama, Bopp.
Se o leitor pode não reconhecer de imediato a referência ao pintor polonês Roman Opalka, objeto de estudo acadêmico da autora, a menção ao nome de Bopp o remete imediatamente ao modernismo brasileiro. No navio, também estão o Sr. Andrade e a esposa, D. Oliva, e as Olivinhas, além de personagens que, com um misto de pastiche e paródia, recuperam o desejo de nossos modernistas de descobrir o Brasil, libertando-o das imagens idealizantes construídas por nossos escritores românticos.
É o caso de Priscila, a moça italiana que entra na cabine onde estão Opalka e Bopp, e é assediada pelo outro ocupante, um russo, que lhe rouba a aranha, Maria Antonieta, que acaba por picar Priscila. Muitas dessas peripécias rocambolescas se multiplicam ao longo da narrativa. Há a suruba na cozinha, relatada pelas Olivinhas, que flagram a Sra. Andrade aos beijos com o imediato do navio; o episódio lírico no qual três crianças brincam anarquicamente com papéis espalhados no convés e constroem um elefante na forma de um “gigantesco tapete de papel” que voa como uma pipa; e o ritual de passagem pela linha do Equador no qual os passageiros neófitos serão submetidos pelo capitão, Egon Schild – uma brincadeira com o nome do pintor austríaco Egon Schiele – caracterizado de rei Netuno, a uma série de provas que lembram a transformação dos irmãos Macunaíma na obra de Mário de Andrade quando precisam se deslocar do Uraricoera para São Paulo. Ao transpor a linha do Equador, os passageiros “tiveram rostos completamente pintados pela graxa e raspados pelo breu”.
A atmosfera delirante, que não raro descamba para a violência e o grotesco, uma marca dos minicontos de Stigger presente, por exemplo, em Os anões (Cosac Naify, 2010), é reiterada em episódios como o do Sr. Andrade, quando pensa ter avistado uma sereia que todos logo reconhecem como um cadáver à deriva em alto-mar; ou ainda quando um dos passageiros, o senhor de cadeira de rodas, é empurrado para a prancha do navio e arremessado ao mar sob a reclamação do comandante de que se “não sabe brincar que não venha para o convés”.
Mas nesse romance o que há de delírio, grotesco, carnavalização, paródia, humor, revela uma forte filiação de Stigger às vanguardas do início do século XX. Elas aparecem aqui simuladas, emuladas e ecoadas não só pela estranheza dos personagens e das situações narradas, mas também por uma estratégia formal que se revela na lista de deveres apresentada ao final do livro, além das alusões mais evidentes já espalhadas pelo texto, como a referência ao poema “O elefante”, de Drummond, na brincadeira das crianças no convés ou, ainda, a menção a El Durazno, navio retratado em Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade.
Assim, o caráter performático do romance pode ser entendido de muitas maneiras: pela encenação do ethos do nosso primeiro modernismo artístico, pela imbricação da narrativa com o projeto gráfico que flerta com o livro-objeto, pelo procedimento de construção do romance que se lança para fora de si, pela conversa com um outro movimento artístico, suas questões, seus personagens, seus impasses, e também porque Stigger continuou, fora do romance impresso, o mesmo texto e escreveu um capítulo, “A ópera”, para um evento em homenagem a Raúl Antelo, em 2014. Ao final, Bopp presenteia Opalka com um caderno: “Salve para fazer anotações. Para que o senhor escreva o que se passou […] a gente escreve para não esquecer. Ou para fingir que não se esqueceu. Ou para inventar o que se esqueceu. Talvez a gente só escreva sobre o que nunca existiu”. Assim, também podemos entender a conversa que Stigger mantém com o modernismo brasileiro no romance como uma oportunidade para repensarmos uma descrição do mundo (tradução do título polonês do romance), do Brasil do início do século XX, criada pela imaginação artística e pelo empenho compromissado que dão corpo às obras dos autores que viveram esse momento histórico.
Para saber mais
DIAS, Angela Maria. (2015) A descrição do mundo de Veronica Stigger ou uma antropofagia desidratada. O Eixo e a roda, Belo Horizonte, v. 24, n. 1, p. 61-76. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/o_eixo_ea_roda/article/view/28281/22117. Acesso em: 4 out. 2024.
STIGGER, Veronica. (2018) “A ópera”. Boletim de Pesquisa NELIC, v. 18, n. 29. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/nelic/article/view/1984-784X.2018v18n29p115 . Acesso em: 4 out. 2024.
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