RODRIGUES, Sérgio. O drible. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
Ewerton Martins Ribeiro
Ilustração: Léo Tavares
Terno e violento, sério e divertido, terreno e sublime, O drible é um romance sobre futebol, relações familiares, vida erótico-afetiva, história do Brasil. Num suprassentido, o livro trata do atavismo da cultura escravocrata e patriarcal em nosso país, tão vocacionada para cunhar homens ausentes, incapazes de estabelecer relações saudáveis com quem quer que seja – não raro, verdadeiramente maus. Neste livro de Sérgio Rodrigues (Muriaé, MG, 1962), vencedor do Grande Prêmio Portugal Telecom de 2014, a trama familiar convoca histórias e reflexões sobre o futebol; o futebol motiva a discussão dos sentidos da nação e suas aporias (uma nação que se acreditou na democracia e se realizou na ditadura); essa discussão metaforiza questões daquela trama familiar relacionadas ao legado e à impossibilidade de conciliação geracional.
A obra conta a história de Murilo Neto, um ressentido revisor de livros que, na vida adulta, se vê às voltas com o pai (Murilo Filho) outrora abusivo, de quem estava há muito afastado. Jornalista de passado proeminente, esse pai está agora doente, desenganado. A doença impõe a reaproximação, a reaproximação reaviva o conflito, o conflito faz avançar a história. Nessa reaproximação forçada, a fruição do futebol será um último resto de sensível comum a se partilhar. Mas o esporte não será suficiente. Por um lado, o interesse de Neto pelo esporte é artificial: resulta mais de uma obrigação moral (em relação ao pai, em relação à onipresença do futebol no imaginário brasileiro) que do próprio desejo; por outro, a mobilização que o pai faz do esporte é arrogante, professoral: prescritiva, não faculta o dialogismo que é basilar em toda experiência lúdica (considerando que o processo de fruir o esporte também se realiza como jogo).
De diferentes modos, O drible alude à relação que o Brasil tentou estabelecer com esse esporte ao longo do século 20, tomando-o como instrumento (para a realização) ou chave (para a argumentação) de uma pretensa unificação nacional (o livro é de 2013, ano que antecedeu a última Copa do Mundo do Brasil, quando o sete-a-um parece ter implodido o que restava dessa perspectiva). Ora pelo narrador, ora pela voz de Murilo Filho, o romance vai fazendo uma caracterização sociológica do país por meio da influência e da pervasividade do futebol em nossa realidade. O resultado, no entanto, não se pretende um argumento ensaístico, mas simplesmente um argumento literário que, para se realizar, vale-se de um apanhado panorâmico do cânone sociológico brasileiro do século 20, em suas buscas por oferecer explicações totalizantes para o país.
O drible se organiza em seis partes. Na abertura e no desenlace, o autor desenvolve a imagem-mor que escolheu para simbolizar a complexidade transpessoal e o transbordamento socionacional de sua história: o famigerado drible de Pelé em Mazurkiewicz. Na parte central, quatro capítulos se alternam em duas tramas. Uma se concentra no drama familiar. A outra emula um ensaio de Murilo Filho sobre Peralvo, jogador (ficcional) que “era para ter sido maior que Pelé”, não fosse uma vicissitude que, por sua vez, pinta um quadro do Brasil em seus sentidos mais primordiais e explica o conflito subjacente à história dos Murilos.
Sobre essa trama, o livro apresenta vários méritos formais. É o caso das cenas e suas transições: com o controle que exerce delas, Rodrigues sempre consegue que causem efeitos desejados (espanto, compaixão, desconforto) e façam a ação avançar cadenciadamente. De fato, no romance, os sentidos da trama vão se revelando gradativamente, em benefício da fruição; entretanto, quando tudo se esclarece, nota-se que os elementos necessários para a montagem do quebra-cabeças já haviam sido todos dados. Também chama atenção o fato de este ser um romance “com história”: apesar do peso das discussões de fundo e do apuro estético de sua realização, o livro nunca se esquece de se oferecer à plena fruição.
É também interessante ver como o autor, que é também pesquisador nos campos da filologia e da etimologia, permite-se um narrador que pratica uma variante oral, em vez da estrita e artificial norma culta (adjetivos como “fácil” e “disparado” aparecem com função de advérbio, vírgulas nem sempre são antepostas a conjunções adversativas etc.). O recurso reveste o livro de organicidade. Também chama atenção o fato de o autor modular distintos modos enunciativos para diferentes tipos de capítulos. No “ensaio”, por exemplo, Rodrigues assume um registro alusivo à não ficção. Com isso, mesmo sem abandonar a ficção, o livro gera um efeito de credibilidade histórica para o que é ficcionalmente apresentado ali.
Algo semelhante ocorre na abertura e no desenlace: num jogo linguístico sagaz, uma atípica segunda pessoa do singular duplamente falseada é empregada para contar o episódio em que Murilo Filho reproduz na tevê, para Neto assistir, o lance de Pelé. Por que “duplamente falseada”? Porque encena, semanticamente, a primeira pessoa do livro (usa-se “você” para dizer do que se passa com o “eu” principal da história, Neto) e porque o faz num livro que, preponderantemente, modula-se na terceira pessoa.
A estratégia estabelece camadas de significação e reveste a obra de uma complexidade formal que serve à história. Com o recurso, o que inicialmente restaria como uma experiência do e circunscrita ao protagonista ganha transitividade e alcança o leitor, o “você” do livro. De repente, forma e conteúdo estão em plena sintonia, no objetivo de dar a ver o caráter transpessoal da fruição futebolística na história brasileira e tudo de metafórico que ela assume no livro.
Ainda merece menção o uso natural, contextualizado e sem concessões, que Rodrigues faz de termos da cultura preconceituosa brasileira, como tiziu, crioulo, negão, neguinho, bugres, sarará, mulatona, beiçorra, baitola, perobo. No romance, personagens e narrador falam sem serem policiados, explicados ou justificados por qualquer intenção moralista do autor, o que ajuda o romance a estabelecer de forma verossimilhante o panorama nacional em que sua trama se desenvolve. Além disso, O drible enfileira imagens que nunca apelam para o lugar-comum, mérito particularmente destacável num livro de tema tão vocacionado para as frases feitas.
O trabalho com os nomes próprios também merece menção. Filho e pai chamam-se Neto e Filho, deslocamento de chaves que simbolizará o caráter in media res da inserção de ambos na “grande história do futebol” (e da nação, da humanidade) e seu arestado trânsito entre gerações. Das mulheres que se instauram como mote simbólico para a disputa lúdica vivida por eles vida afora (serão várias), a mais relevante chama-se justamente Lúdi (aqui, paralelamente ao sentido psicanalítico, vale lembrar do termo “ludopédio”, sinônimo de futebol). Por fim, temos Peralvo, a vítima arquetípica das agruras do racismo nacional. Pensemos nos sentidos que se desdobram desse nome.
Como prefixo latino, “per” alude a “através de”, “por meio de”, “por entre” e exerce a função de reforçar o conteúdo semântico das palavras a que se prepõe. Já como preposição arcaica do português, “per” tem como descendente o nosso “por”, que evoca sentidos como “em correspondência a”, “como se fosse”, “na categoria de”, “no nível de”. Por fim, “alvo”, como adjetivo, remete a “muito claro”, “branco”, e conota sentidos de pureza, inocência, ao tempo em que alude, como substantivo, ao ponto de mira que se procura atingir – o objetivo visado para destruição.
Em dado momento, O drible também estabelece para Peralvo a capacidade de ver a aura das pessoas e viver no futuro, “um segundo na frente”, num flerte moderado com o sobrenatural. Nisso, o livro também se situa na esteira de uma tradição: a de se mobilizar o transcendente para dar conta do caráter imprevisível do fenômeno futebolístico.
A face mais conhecida dessa tradição talvez seja o “Sobrenatural de Almeida” de Nelson Rodrigues, fantasma responsável pelas derrotas do Fluminense. A menos conhecida, talvez mais estruturante, é a do “Espectro da Ponte Preta”, mito criado por Renato Pompeu em A saída do primeiro tempo (Editora Alfa-Omega, 1978) como uma visagem que vagaria por Campinas provocando alterações nos pensamentos e atos das pessoas.
O drible também se insere no rasto de uma segunda “tradição” estabelecida por Pompeu: a de se entremear, na ficção do futebol, um ensaio sobre o esporte. Na parte central de A saída do primeiro tempo, Pompeu já apresentava um capítulo denominado “O futebol: crítica da economia política”, em que discutia, em voz própria e não ficcionalizada, a relação do futebol com o trabalho e o lazer.
Em seu livro, Rodrigues faz avançar o procedimento estético de Pompeu, pois, diferentemente dele, concebe seu “ensaio” – denominado “Por que Peralvo não jogou a Copa” – com enredo e ludicidade, divide-o em duas partes, distribuindo seu impacto no conjunto, e atribui sua autoria a um personagem do próprio livro (Murilo Filho) em que ambos (ensaio e personagem) estão. Por fim, o autor ainda “ensaia” não sobre a objetiva realidade extraficcional do futebol, mas sobre um jogador fictício que é também personagem do romance.
Com esse procedimento, o romance promove um jogo de tensionamento e retroalimentação entre a ficção sobre o futebol e a reflexão conscienciosa que, historicamente, sempre tentou objetivar a sua subjetividade. O recurso acrescenta uma sutil, mas sofisticada camada de metalinguagem à obra, incorporando-a de ainda mais complexidade.
Para saber mais
VALENTE, Valdemar (2015). Sérgio Rodrigues – O drible. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 45, p. 479-483. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/10030. Acesso em: 15 dez. 2024.
EFFTING, Marilda Aparecida de Oliveira (2018). Memórias a passos e passes em O Drible. Revista Criação & Crítica, São Paulo, n. 22, p. 132-142. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/criacaoecritica/article/view/145772. Acesso em: 15 dez. 2024.
FACCIOLI, Luiz Paulo (2013). O futebol-arte na literatura: Resenha do romance “O drible”, de Sérgio Rodrigues. Jornal Rascunho, Paraná, n. 164, dez. Disponível em: https://rascunho.com.br/ensaios-e-resenhas/o-futebol-arte-na-literatura/. Acesso em: 15 dez. 2024.
RODRIGUES, Sérgio (2018). Paiol literário: Sérgio Rodrigues. Jornal Rascunho, Paraná, n. 220, ago. Disponível em: https://rascunho.com.br/paiol-literario/sergio-rodrigues/. Acesso em: 15 dez. 2024.
ROSALEN, Eloisa (2017). Em tempos de ditadura brasileira: analisando O drible sob uma perspectiva de gênero. SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO GÊNERO 11 & 13º WOMEN’S WORLDS CONGRESS, 2017, FLORIANÓPOLIS. Anais eletrônicos… Florianópolis: UFSC, 2017, p. 01-11. Disponível em: https://www.en.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1498663106_ARQUIVO_fazendogenero11.pdf. Acesso em: 15 dez. 2024.
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