SANT’ANNA, Sérgio. A tragédia brasileira: romance-teatro. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.
Edmon Neto
Ilustração: Espírito Objeto
Se existem vozes na prosa brasileira da segunda metade do século XX que levam às últimas consequências o experimentalismo como procedimento estético, é difícil negar que uma das mais notáveis seja a de Sérgio Sant’Anna (Rio de Janeiro, RJ, 1941 – Rio de Janeiro, RJ, 2020). Com domínio pleno das técnicas narrativas, já utilizadas em suas primeiras obras, como Confissões de Ralfo (1975), Simulacros (1977) e Um romance de geração (1980), o autor explora jogos e simulações sem, contudo, perder de vista as tramas de uma geração que testemunhou os desencantos do mundo após os anos 1960. É o que ocorre em A tragédia brasileira: romance-teatro, publicado pela primeira vez em 1987. Nele, o autor rasura as fronteiras entre gêneros literários e conduz os leitores a assumir as próprias rédeas interpretativas do “espetáculo imaginário” anunciado.
O enredo motivador gira em torno do atropelamento da menina Jacira, que viveu entre 1950 e 1962. A cena é elaborada e reelaborada sob perspectivas distintas (ora por um autor, ora por um diretor). Para isso, Sérgio Sant’Anna lança mão de técnicas do texto dramático, do romance e do ensaio, tanto para contar uma história singular do ponto de vista dos modelos formais quanto para eventualmente prever posicionamentos críticos sobre o que está sendo tecido no romance-teatro. Nesse sentido, o plano da obra envolve uma abertura, seguida de três atos e um epílogo nos quais desdobra-se a história de Jacira, intercalada com as agruras do autor-diretor.
Logo de início o leitor é levado ao cenário de um espetáculo teatral. Dão-se as três pancadas de praxe e se estabelece uma atmosfera fria no palco, composta pela lápide da adolescente e por uma cadeira de balanço, contrastada com o soar de uma nota sol e uma luz quente. Em primeiro plano, mostram-se o espectro do rosto de Jacira e o do poeta Roberto – personagem que mantém uma fixação patológica pela menina. Nessa abertura, ao mesmo tempo que se apresentam os elementos do cenário inicial do espetáculo, reflete-se sobre os significados possíveis de cada objeto e cada gesto no espaço cênico, já insinuando algum desfecho de eventos trágicos por excelência.
O primeiro ato, constituído por diálogos a serem encenados, trata de algumas perspectivas sobre a mesma cena principal. O atropelamento em si é testemunhado por Roberto – o poeta voyeur – e por um homem negro que mora num terreno baldio e tenta salvar Jacira. Na sequência, motorista, advogado, delegado e escrivão reconstroem a cena pelo olhar do primeiro, trazendo à tona posicionamentos políticos do contexto dos anos 1950 e 1960 e o modus operandi da burocracia e da justiça brasileiras. Na mesma medida em que se mesclam cenas da vida real, como Pelé na Copa do Mundo do Chile ou a insurgência dos militares como força política, as personagens-testemunhas da tragédia de Jacira constituem o cenário do espetáculo e ao mesmo tempo são capazes de modificá-lo, denunciando a ficção ali encenada.
No caso do poeta Roberto, sua paixão pela adolescente será comparada, de modo explícito, ao procedimento fenomenológico que reconta a mesma história sob perspectivas diferentes. A técnica é utilizada por Lawrence Durrell na tetralogia O quarteto de Alexandria, obra na qual o autor vai acrescentando pormenores, de modo progressivo, ao mesmo fenômeno, como explorar, por exemplo, categorias da psicanálise freudiana para dar conta de soluções literárias: “Estou me acostumando com a ideia de considerar todo ato sexual como um processo em que quatro pessoas estão envolvidas […] Sigmund Freud”. Análogo a Durrell, Sant’Anna explora a vida de Roberto criança, sua relação com a mãe, com o pai gaúcho e major do exército, e com o psiquiatra, por meio de cenas que se alternam com o poeta adulto, já movido pela paixão, a escrever sobre Jacira. Tensionam-se ainda mais as questões sobre sexualidade e perversão quando elas são desenvolvidas em contextos cristãos, algo muito presente nas cenas posteriores.
O segundo ato d’A tragédia brasileira volta-se para as personagens que interpretam a história principal. Como se o ocorrido anteriormente já fosse o espetáculo, os atores agora saem de cena e ganham existências materiais, mesmo que suas autonomias estejam afetadas de algum modo pela história da menina. Chamam a atenção as cenas denominadas “Metamorfoses”, em que os espectadores (ou leitores) são “transportados” ao “recolhimento das divagações dentro do seu próprio cenário interior”. É nesse momento que acontece um entrecruzamento de histórias, desdobradas do enredo-fonte, como a transformação de uma confissão católica de três adolescentes em um cenário de sala de aula da década de 1980, sendo o professor um duplo de Roberto. Em seguida, a tragédia de Jacira é discutida como exercício pedagógico nessa mesma escola, e temas sensíveis são abordados de forma não ortodoxa. Quer no apartamento do autor-diretor, onde se prepara uma “Cena X”, quer num restaurante chinês, onde se reúne o elenco da peça e uma menina misteriosa passa a se relacionar com o diretor, o segundo ato segue uma sequência metarreflexiva em que a narrativa pensa a própria construção. E o contato com a menina misteriosa tanto é problemático que faz aquele senhor questionar o absurdo irrepresentável da peça ou a falta de domínio sobre suas relações interpessoais, a não ser sobre aquelas movidas pelo gesto criador.
“Não existe meio-termo em Arte: ou se parte decididamente para a experimentação, ou se produz para o público”, conclui o autor-diretor em certa altura. E parece ser com essa investida que o terceiro ato representa uma volta a mais no parafuso d’A tragédia brasileira, para lembrar a obra The Turn of the Screw, do escritor Henry James, aludida por Sérgio Sant’Anna e cuja expressão sugere um grau maior de pressão e crueldade aplicado a essa história. O leitor nesse momento é levado ao espaço da região Norte do país, mais especificamente a um restaurante na rodovia Belém-Brasília, lugar no qual se desenrola uma situação narrativa entre um motorista, uma prostituta adolescente, um garçom, um malandro e um jovem homossexual. Pode ser que se trate da “Cena X” com a qual o autor-diretor encontrava-se às voltas no ato anterior: a tentativa de encenar uma outra tragédia, ainda mais anônima, vinculada a um outro Brasil. A pista está na revelação de que a prostituta adolescente se chama Altamira (cidade do Médio Xingu cuja história é perpassada por episódios de construção e ruína), algo que torna a correspondência com o enredo de Jacira a sinalização de que as tragédias brasileiras, embora ocorram todos os dias, não encontram, em nenhum autor ou diretor, elaboração suficiente.
O romance-teatro de Sérgio Sant’Anna tem seu ocaso no epílogo em que figuras religiosas ou mistificadas são colocadas na arena narrativa, em um final ainda mais aberto às possibilidades interpretativas. Com sua pena experimental e associado a uma linhagem “brutalista”, próxima a Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, o autor ajudou a renovar a prosa brasileira, sobretudo porque foi capaz de mobilizar o sistema literário (para usar o conceito do teórico Antonio Candido) ao desestabilizar as posições supostamente confortáveis do autor, do texto e do leitor.
Para saber mais
CANDIDO, Antonio (1976). Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Editora Nacional.
GONGORA, Anderson Possani (2017). A espetacularização da violência em A tragédia brasileira, de Sérgio Sant’Anna. Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea, v. 9, n. 18.
SCHØLLHAMMER, Karl Erik (2009). Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Iconografia