TREVISAN, João Silvério. Em nome do desejo. São Paulo: Codecri, 1983.
Lilian Reichert Coelho
Ilustração: Espírito Objeto
Referência na literatura, no cinema, no teatro, no jornalismo e no movimento social LGBTQIAPN+, João Silvério Trevisan (Ribeirão Bonito, SP, 1944) compartilha, no romance Em nome do desejo, as experiências homoeróticas inaugurais de um garoto de 13 anos, Tiquinho, e suas vivências em um seminário católico. A narração das memórias é do “saturado” João que, aos quarenta anos, decide revisitar, após “um pileque”, o colégio de sua adolescência, transformado em orfanato.
Autobiográfico, Em nome do desejo tem lugar especial na historiografia literária brasileira LGBT, sendo hoje reconhecido como “clássico queer”. Isso se deve à abordagem do tema da homossexualidade, à construção do narrador (que, ao contar suas memórias, explicita sua condição), ao desvelamento das violências da religião (hipocrisia, pedofilia) e à publicação no contexto da ditadura militar. Sentindo ameaças devido à repercussão de seu filme Orgia ou o homem que deu cria (1970), precedido do curta-metragem Contestação (1969), e à militância na pauta da diversidade sexual, Trevisan deslocou-se em autoexílio. No retorno, criou, com outros artistas, o Grupo de Afirmação Homossexual, o Somos (fundado em 1978 e ainda em atividade), e o jornal alternativo O lampião da esquina, que circulou mensalmente entre 1978 e 1981.
Em nome do desejo trata das rememorações de um homem frustrado por não ter tido coragem de desafiar as imposições normativas da sociedade. Por um movimento impensado no tempo e no espaço, de retorno pela memória ao lugar das primeiras e arrebatadoras experiências amorosas – que ele chama de “pesquisa arqueológica”, “escavação”, no decadente casarão que abriga o seminário –, João diz que busca “decifrar um mistério”. Ele se pergunta o que teria acontecido entre Tiquinho e “um certo Abel”. Insiste em mencionar a existência de mistérios, não restritos a fatos ocorridos no passado, mas se refere também a fundamentos cristãos católicos, à impossibilidade de sentir novamente as sensações das primeiras experiências amorosas e sexuais, que o teria levado a reprimir seus desejos homoeróticos vida afora.
Tudo isso é exposto no prólogo, intitulado “Intróito”. É o momento da chegada de João ao antigo casarão. Em sua visão perturbada pela insônia e pela frustração, o ambiente sagrado do presente revela-se macabro, composto por sombras, escuridão, neblina, coisas disformes e um vaso em forma de crânio com lírios brancos. Há uma insinuação de loucura ou mesmo possibilidade de morte de João na breve apresentação do personagem, do espaço e das motivações da narrativa.
Os capítulos são construídos na forma de diálogo, espécie de entrevista entre João e um interlocutor imaginário, ele mesmo como um duplo. A estrutura de entrevista provoca uma mudança no foco narrativo (João conta o passado de Tiquinho em terceira pessoa) ao encenar uma confissão católica por meio de uma teatralidade afetada que aciona a estética camp na partilha dos “pecados”. A convocação do camp está diretamente afinada a elementos da cultura LGBT, que alcança visibilidade midiática (sobretudo no ambiente do pop) a partir dos acontecimentos de Stonewall (1969), e ao tratamento do tema central do desejo e da impossibilidade de sua tradução em palavras, assim como de sua recuperação ou reconstituição total pela memória. O tom das respostas de João às perguntas, as associações de imagens religiosas e profanas, o transbordamento de emoções ao tratar os temas do amor e da sexualidade e a escolha pela encenação configuram expressões do camp no romance.
A sensibilidade camp está na narrativa e também na estilização barroca das respostas de João, que permite ao leitor conhecer os fatos e visualizar seus gestos, seu corpo, enquanto se expressa. Com isso, ele se individualiza, inscrevendo sua subjetividade dissonante da normatividade, compartilhando o que consegue articular sobre as sensações mais recônditas de suas experiências adolescentes. Mais do que simplesmente saber como era a vida dos meninos no seminário, os leitores acessam as emoções, ainda que nubladas, de difícil nomeação, vivenciadas pelo menino Tiquinho. As descrições são exuberantes, hiperbólicas, como as situações devem ter sido experimentadas pelo garoto em sua autodescoberta. Esse traço ambíguo, que revela a confusão, a perturbação de Tiquinho, está diretamente ligado ao gesto discursivo principal adotado por Trevisan no livro, que é posicionar em contiguidade figuras hierarquicamente diferentes, distantes, como Abel, amado de Tiquinho, os diretores modernos e Jesus, todos vistos como corpos em sua carnalidade, portanto, desejáveis pelo menino em seus delírios místicos e hormonais.
Nessas justaposições reside o mistério que Tiquinho tenta compreender ao se deparar com o desejo e, para isso, dispõe da exegese bíblica, acionada de modo próprio e deformado num contexto em que tudo está ou parece estar distorcido. A paixão fascina Tiquinho em termos físicos, de sensações que ele não entende bem, ainda que deliciosas (vertigens, espasmos, gozos), carnais, e em termos espirituais, fornecidos pela religião (paraíso, transfiguração, mistério). Um exemplo de justaposição pode ser dado pelo trecho em que João explica o entendimento de eucaristia de Tiquinho: “— Jesus amava Tiquinho demais? – Seu amor era tão grande que Jesus queria ficar todo dentro de Tiquinho”. As experiências homoeróticas são, portanto, atravessadas pela interpretação que o garoto tem dos ensinamentos católicos e vice-versa, e tudo se embaralha nele. Mas, não se pode esquecer que há uma organização da narrativa, há um conhecimento completo dos fatos (enevoados pela memória, pela distância de quase trinta anos), já que não é Tiquinho quem narra no presente dos acontecimentos, mas João, num tempo futuro.
Por tudo isso, Em nome do desejo é transgressão. Portanto, não é apenas pela perspectiva da experiência autobiográfica do escritor que se reconhece sua importância, mas pelas escolhas estéticas e políticas tal como conectadas na composição do romance. É evidente que há uma crítica à religião, às suas violências e hipocrisias, notada pela tomada de posição política face à história do Brasil, na qual a religião cristã, o catolicismo, desempenhou papel fundamental como instrumento da colonização, manutenção e justificação de múltiplas formas de violência contra sujeitos desviantes e insurgentes. E, de modo mais contextual, relativo ao período de escrita e publicação do romance, deriva uma crítica ao autoritarismo, à repressão da ditadura militar (1964-1985) e ao falso moralismo de setores civis da sociedade que a apoiavam sob o disfarce da defesa de valores supostamente corretos e elevados. Soma-se a isso a propagação do pânico social causado pelo surgimento da AIDS e sua homofóbica associação às pessoas homossexuais promovida pela mídia.
Diferentemente de romances brasileiros de períodos anteriores que abordaram ou sugeriram a temática da homossexualidade, como O bom crioulo (1895), de Adolfo Caminha, e O Ateneu (1888), de Raul Pompeia, Em nome do desejo reivindica a ambiguidade não para camuflar o desejo homoerótico, mas para evidenciar o corpo como lugar de desejos e experiências incontíveis e inexprimíveis em palavras. A compreensão totalmente racional dos fatos e das sensações é interditada pela passagem do tempo, mas também por se tratar de outro domínio, o do mistério. E, enquanto tal, inexplicável. Além disso, a ambiguidade perpassa as relações entre os meninos e com os diretores, entre a religião e a sexualidade. Essas são sugeridas pela citação de dois religiosos católicos místicos: Teresa D’Ávila (Santa Teresa), por seu êxtase e legado escrito, e São João da Cruz, por seus poemas.
São oito capítulos em forma de diálogo, narrados em ordem progressiva linear, da chegada à saída de Tiquinho do seminário. O foco é a paixão por Abel Rebebel, do despertar do desejo à consumação do amor, passando por sinais de abandono, desprezo (de anjo bom, Abel passa a ser um anjo rebelde), culpa (isolamento de Tiquinho), vingança (denúncia de Abel numa baderna dos meninos em uma noite de falta de energia elétrica) e dissolução do vínculo (castigo e expulsão de Abel, esgotamento físico e mental de Tiquinho).
No epílogo, intitulado “Missa Est”, a narração recupera a primeira pessoa do prólogo. João parece retornar à sobriedade, afirmando-se como “um ser anestesiado”, mas se desequilibra novamente ao ser informado de que alguém chamado Abel o espera na sala de visitas. Ele sente novamente a paixão e o romance termina sem sabermos se Abel estava realmente lá ou se tudo não passou de alucinação ou do desejo de João.
Embora dialogue com referências literárias, religiosas e artísticas diversas em suas duzentas páginas, Em nome do desejo é de leitura fluida, mesmo para um/a leitor/ não especializado/a, interessado/a na temática do amor e do homoerotismo na produção literária brasileira do início dos anos 1980 e na literatura queer.
Para saber mais
CASTRO, Mably Lopes de (2019). Amor que tão ternamente feres: um estudo das relações de amor e erotismo no romance Em nome do desejo (1983), de João Silvério Trevisan. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros.
FALCÃO, Maria de Fátima Lopes Vieira (2015). Homoerotismo e homossociabilidade no romance Em nome do desejo, de João Silvério Trevisan. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Tocantins, Araguaína.
SILVA, Samuel Lima da (2014). Santa é a carne que peca: estudo sobre o homoerotismo na obra Em nome do desejo, de João Silvério Trevisan. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade do Estado de Mato Grosso, Tangará da Serra.
SILVA, Samuel Lima da (2019). “Hei de confessar-te um dia o meu desejo”: o romance homoerótico brasileiro contemporâneo e a estética da absolvição. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade do Estado de Mato Grosso, Tangará da Serra.
VENTURELLI, Paulo Cesar (1993). A carne embriagada: uma leitura em torno de João Silvério Trevisan. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba.
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