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A grande arte

Marina Maximiano Ferreira de Souza
Ilustração: Théo Crisóstomo

O segundo romance do escritor Rubem Fonseca (Juiz de Fora, MG, 1925 – Rio de Janeiro, RJ, 2020), A grande arte, publicado em 1983, foi lançado dez anos após seu primeiro romance, O caso Morel (1973). Antes de se dedicar integralmente à carreira literária, Fonseca trabalhou como advogado criminalista e comissário da polícia, experiências que influenciaram diretamente sua escrita. Seus livros são conhecidos por retratar a violência urbana e o erotismo utilizando uma linguagem crua e objetiva. Além disso, apresentam frases e/ou palavras em outros idiomas, que nunca são traduzidas, deixando essa responsabilidade para o leitor.

Outro aspecto é a intertextualidade, pois Fonseca sempre faz referências a diversos elementos da cultura e da arte ao longo de seus textos; um exemplo são as referências bíblicas e literárias da obra em questão, “começando com Caim – a Bíblia é um livro de histórias de homicidas – e seguindo com Ulisses, Édipo, Electra, Otelo, Macbeth, Raskolnikov, Sorel e por aí afora”.

A grande arte é dividido em duas partes: “Percor”, em referência a “um conjunto de técnicas e táticas de manejo de armas brancas” e “Retrato de família”, que se refere à obra fictícia de Basílio Peralta sobre a família Lima Prado, publicada em 1949 e um fracasso de venda. A narrativa acompanha o advogado criminalista Mandrake em sua investigação do assassinato de três mulheres. Os homicídios ocorrem pouco após um encontro delas com Roberto Mitry, “um homem da sociedade” com “nome nas colunas”. Mitry havia contratado as prostitutas, mas ao deixar o apartamento de Elisa de Almeida, vulgo Gisela, esquece uma fita de videocassete, pertencente a terceiros; para recuperá-la recorre aos serviços de Mandrake e de seu sócio Wexler. No entanto, no início da investigação, as prostitutas começam a ser assassinadas: Elisa-Gisela é “a primeira que mataram”; depois “uma massagista de nome Carlota, vulgo Danusa”; e por último Oswalda, cujo nome de guerra é Cila, também conhecida como Laura Lins. Mandrake, com isso, começa a investigar seu próprio cliente, Roberto Mitry, “um pé-frio?” ou “um assassino?”.

O tema central da história é a chantagem, e, a partir daí, Mandrake se envolve em um mundo de assassinatos, corrupção e violência, levando-o até Corumbá (MS), fronteira com a Bolívia. Segundo o advogado, os acontecimentos não foram obtidos de “maneira ordenada”: “foram sabidos e compreendidos” pelas suas deduções, ou então a partir “dos Cadernos de anotações de Lima Prado”, além dos diálogos mantidos com Miriam, que o “ajudaram a entender as relações de Zakkai, o Nariz de Ferro, com Camilo Fuentes”, um assassino de aluguel boliviano, e “das informações de Monteiro, o vendedor de armamento bélico”.

Mandrake fez sua estreia com o conto “O Caso de F.A.” do livro Lúcia McCartney (1967). Ele ainda aparece em outras obras do autor, como nos livros Feliz Ano Novo (1975), O cobrador (1979), E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto (1997), Mandrake – A bíblia e a bengala (2005) e Calibre 22 (2017). A personagem foge dos clichês de um investigador policial, “caminha o tempo inteiro na linha tênue entre o heroísmo tradicional e o anti-heroísmo” (Bonacorci, 2020), carismático e mulherengo, não se relaciona muito profundamente, suas motivações levam o leitor a questionar constantemente suas ações e integridade. De acordo com Falleiro (2018), “a ausência de uma descrição física lhe é proposital, [já que] o que mais conta são os seus pensamentos, o que ele deixa transparecer por meio dos seus atos e de seus relacionamentos com as demais personagens”.

Rubem Fonseca retrata com uma notável profundidade personagens violentos e complexos, revelando suas motivações, dilemas e conflitos internos. Segundo Porto (2021), o escritor, em A grande arte, utiliza a solidão “dos indivíduos nas grandes metrópoles” como um elemento central na construção dos enredos e no desenvolvimento dos personagens. Fonseca escreve: “Ela me olhava, e eu a ela, como se não nos conhecêssemos e Ada me dava a impressão dolorosa de que supunha que eu a encarava com piedade, e talvez fosse verdade”.

Outro aspecto marcante da obra é sua crítica social incisiva e frequentemente devastadora, que transporta o leitor para o Rio de Janeiro de 1980. Segundo Almeida (2002), Rubem Fonseca entrelaça a pobreza e a violência por meio de “micro-cenas da vida cotidiana”. Em uma passagem, Mandrake descreve mendigos disputando restos de comida nos fundos de um restaurante, contrastando com a exclusividade dos “serviços aos que podem pagar”; em outra cena, o assassino de aluguel Fuentes reflete sobre a comercialização de tudo, quando negocia a compra de uma córnea, “No mundo, pensou Fuentes, tudo se comprava e vendia, a mulher sabia disso”.

De acordo com Porto (2021), ao longo da narrativa, a ordem cronológica dos eventos é frequentemente interrompida, despertando a curiosidade do leitor e estimulando-o a atuar como um detetive, na tentativa de solucionar o mistério. O romance se distingue pela ambiguidade nas relações entre as personagens, sem uma separação nítida entre heróis e vilões. Essa ambiguidade é exemplificada pela citação: “Pode ter sido qualquer pessoa. Pode ter sido você, Mandrake”.

O tema policial é comum nos romances fonsequianos, que utiliza cenas de violência, linguagem crua e temas adultos. Seus romances frequentemente abordam homicídios, “tráfico de drogas, prostituição, traição, assassinatos, corrupção, indivíduos marginalizados” (Falleiro, 2018). O sexo também permeia a trama, em diversas formas: consensual, pago, extraconjugal, entre outros.

Porto (2021) destaca que A grande arte se distingue dos romances policiais tradicionais pela maneira como o autor constrói seu detetive. Em vez de retratar um herói típico do gênero, Fonseca apresenta Mandrake com traços mais humanos, agindo guiado pela intuição e não pela frieza, assim, o diferencia dos protagonistas do gênero.

A obra A grande arte oferece uma trama com personagens complexos, além da crítica afiada. Fonseca retrata a realidade brasileira de maneira autêntica, abordando temas relevantes de maneira provocativa. O escritor utiliza frases fragmentadas e uma linguagem direta para expor a crueza da realidade de temas como criminalidade e poder, proporcionando uma reflexão crítica sobre a sociedade.

Para saber mais

ALMEIDA, Marco Antônio (2002). Quem é o bandido? a narrativa policial na literatura brasileira. Revista de Ciências Sociais: RCS, v. 33, n. 2, p. 64-83. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=8437149. Acesso em: 18 jul. 2024.

BONACORCI, Ricardo (2020). Livros: A grande arte – O segundo romance de Rubem Fonseca. Bonas histórias. Disponível em: https://www.bonashistorias.com.br/single-post/2020/09/17/livros-a-grande-arte-o-segundo-romance-de-rubem-fonseca. Acesso em: 18 jul. 2024.

FALLEIRO, Mari Alves da Silva (2018). Literatura policial em A grande arte, de Rubem Fonseca. Dissertação (Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras) – Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia.

PORTO, Teresa Cristina de Oliveira (2021). O gênero policial e os vieses da violência em A grande arte, de Rubem Fonseca. Desenredos, Teresina, n. 37, p. 111-133, out. Disponível em: http://desenredos.com.br/wp-content/uploads/2022/11/37-artigo-Teresa-Porto.pdf. Acesso em: 18 jul. 2024.

REIS, Murilo Eduardo dos; LEONEL, Maria Célia de Moraes (2018). Violência e refinamento discursivo em A grande arte, de Rubem Fonseca. Alea: estudos neolatinos, v. 20, n. 1, p. 34-46, jan.-abr. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/alea/article/view/18711/0. Acesso em: 18 jul. 2024.

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Como citar:

SOUZA, Marina Maximiano Ferreira de .
A grande arte.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

26 mar. 2025.

Disponível em:

3810.

Acessado em:

19 maio. 2025.