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Confissões de Ralfo

SANT’ANNA, Sérgio. Confissões de Ralfo: uma autobiografia imaginária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

Igor Ximenes Graciano
Ilustração: Léo Tavares

Primeiro romance de Sérgio Sant’Anna (Rio de Janeiro, RJ, 1941 – Rio de Janeiro, RJ, 2020) depois de duas coletâneas de contos, Confissões de Ralfo inicia a incursão mais rarefeita do escritor em narrativas longas em seus 50 anos de produção literária. Advogado de formação, tendo estudado na cidade de Belo Horizonte, Sant’Anna mudou-se para Paris em 1967, onde continuou sua formação em Direito, indo em seguida para os Estados Unidos como bolsista do International Writing Program da Universidade de Iwoa. Volta a viver no Rio de Janeiro em 1977.

Conhecido sobretudo como contista, a obra de Sant’Anna é marcada pela experimentação estilística e temática, marcadamente a partir dos contos de Notas de Manfredo Rangel, repórter (1973), o que se demonstra muitas vezes na dificuldade de enquadramento de gênero de suas obras, que não raro extrapolam as características usuais do que se espera da narrativa literária ao imbricar na prosa ficcional o teatro, a poesia, a reportagem e o ensaio, entre outras configurações textuais.

Confissões de Ralfo busca dar conta dessa pretensão experimental, calcada numa abordagem vinculada à contracultura e ao ambiente intelectual do norte global a partir dos anos 1960, que encontrava reverberação no Brasil com a Tropicália e sua releitura pop do Antropofagismo. Pode-se especular, portanto, que a “autobiografia imaginária” de Ralfo repercute a efervescência cultural dos anos de Juscelino Kubitschek (1956-1961) e o trauma político dos acontecimentos que resultaram na ditadura militar (1964-1985).

A vida nas grandes cidades, a luta armada, a tortura, a desigualdade social, a arte, a imprensa, o trabalho, o amor e o sexo, entre outros temas universais e conjunturais ao momento histórico brasileiro em que o romance foi escrito, sucedem-se no mosaico que constitui a vida do personagem-narrador Ralfo, “primeiro e único”, ao longo de nove livros. Essa estrutura diz mais da natureza do protagonista do que do romance propriamente, pois um encadeamento causal mais rígido serviria à necessidade de veracidade e coerência de um personagem tradicional, o que não é o caso de Ralfo. Como ele mesmo declara no “Prólogo”: “passo a viver intencionalmente uma história que mereça ser escrita, ainda que incongruente, imaginária e até fantasista”. No primeiro capítulo do livro I, “A partida”, afirma ainda que não há “nenhuma ideia precisa na cabeça, mas a certeza de que algo tem de acontecer. Porque sou Ralfo, o personagem, à procura de seus acontecimentos”.

Não se trata, portanto, de viver a vida para depois escrevê-la, conjurando-se a escrita pela memória individual e coletiva, mas de buscar a vida desde a fantasia, quando o gesto de produzir literatura, entendida em um sentido amplo de invenção de si e do mundo, apresenta-se como a própria matéria-prima da vida. Se a origem não está nos fatos, estará naquilo que faz de um romance um romance (ao menos na acepção moderna de romance): a ficção como princípio.

O ponto de partida de Ralfo é a decisão pela existência não ordinária, uma recusa do realismo e seus derivados: o testemunho, o documento, as reminiscências, a lógica. Ralfo remete ao tom jocoso e libertário do narrador de A lua vem da Ásia (1956), novela de Campos de Carvalho, que diz ter matado seu professor de lógica em legítima defesa. Trata-se de uma espécie de clown vivendo entre a dureza do real e o disparate, seja como herói revolucionário, seja como prisioneiro, gigolô, viajante, ator etc. Por isso, Benedito Nunes vê Confissões de Ralfo como pertencente a uma família que remete a Tristam Shandy, de Lawrence Sterne, passando no Brasil por Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade.

Essa linhagem de romances picarescos instaura um espaço de abertura para o fazer literário pela digressão, fragmentação e riso, quebrando a quarta parede ao se indagar o leitor. Um antirromance, afinal, se considerarmos o gênero a partir de certa noção de unidade narrativa enquanto estrutura coesa, linear, com personagens complexos e psicologicamente coerentes regidos por um narrador confiável. Não por acaso, entre as epígrafes da obra está a citação de T.S. Eliot: “Em matéria de romance, somente tem valor hoje, ao que tudo indica, aquilo que não é mais romance”.

Em Confissões de Ralfo, a trama se desenrola em um espaço esquivo “entre dois”, de maneira que o que lemos é e não é um romance, é e não é um personagem (no sentido de ser único e unívoco), é e não é uma autobiografia (porque imaginária). A pergunta que o romance pode provocar é sobre essa natureza intermediária, entre o sim e o não das definições. Se o propósito é ser “imaginário e fantasista”, por que recorrer à autobiografia? O que suscita a escrita de si onde a ficção é total? Nessa pactuação burlesca imposta pelo personagem-narrador, talvez o ponto de alguma estabilidade e conexão com o real seja a condição de escritor (de Ralfo e Sant’Anna) como sujeitos da existência dos personagens e dos eventos que protagonizam. A literatura é o tema. Na ficção, Ralfo é o autor de si; na vida, Sant’Anna é o autor de Ralfo. Ralfo se lança no mundo como o escritor se lança à página, procurando dar forma (e sentido) ao turbilhão aberto dos acontecimentos.

Em um momento conturbado da política no Brasil, com o recrudescimento do autoritarismo, Sérgio Sant’Anna decide fazer um elogio da ficção, ou, o que é mais significativo, da arte. Contudo, não se trata de estabelecer um contraponto à “armadilha documental”, conforme a expressão de Flora Sussekind em seu panorama da produção literária do período, em que se evita a denúncia feita pelo registro documental recorrendo-se ao didatismo da parábola ou de alegorias simétricas a fim de se oferecer certa moral da história. A escrita literária – a imaginação criativa – não é (ou não almeja ser) um jogo de luz e sombra a fim de se escamotear um preceito contra ou a favor de qualquer posição política. Tampouco é um escape.

Tal expressividade total está a serviço das possibilidades do escritor, sendo uma maneira de responder ao autoritarismo pelo riso. Em uma modulação da proposição de Coleridge, a literatura se mobiliza não pela suspensão voluntária da descrença – uma maneira de se entregar ao inverossímil –, mas como relativização das certezas. No Livro VI, “D.D.D: Documentos”, Ralfo está internado em um sanatório para doentes mentais onde é narrado em terceira pessoa no diário de Madame X, uma das internas, depois no relatório do Dr. Pestana, cientista responsável pelo sanatório. Em uma festa à fantasia que serviria como experimento, Dr. Pestana anota que “o sr. Ralfo, num claro deboche, fantasiou-se nada menos do que de ‘si mesmo’ (…) Podemos afirmar, então, que se trata de uma loucura inautêntica, desejada, como se a vida fosse um teatro onde as pessoas pudessem arvorar-se um papel e representá-lo enquanto lhes desse vontade”.

A ficção, enquanto “loucura inautêntica”, é um jogo entre identidade e simulação (como se essa dicotomia fosse possível). Não ser autêntico é um propósito ético e estético (certamente programático), pois não se pretende chegar aos fatos ou evitá-los, como uma pedra no meio do caminho da escrita. Daí a recorrência ao teatro na obra de Sant’Anna como signo da representação que não é espelhamento. Não há realidade fora da representação, pois só é possível ter alguma lucidez quando se recusa em considerar as condutas humanas como sintomas de um sujeito consumado, mas a partir de sua permanente construção e iminência.

No Livro IX, “Literatura”, o protagonista está no tribunal para exame público das anotações de seu romance e sua consequente aprovação ou desaprovação. É o momento em que Ralfo/Sant’Anna defende seu projeto literário ridicularizando normas atribuídas ao artesanato realista. Reiteram, portanto, o valor de seus escritos à luz da tradição do “romance desestrutural”, conforme a expressão dos acusadores.

Apesar do apelo a favor de sua originalidade, não há bem ineditismo em Confissões de Ralfo, antes sua inscrição na tradição humorística, autorreflexiva e abertamente farsesca do romance, características um tanto à margem no momento de sua publicação no Brasil. Contudo, o chamado à ficção é e será um contraponto necessário frente à voragem do testemunho e da demanda de indivíduos, ficcionais ou não, ansiosos em celebrar a beleza e a dor de suas verdades.

Para saber mais

GALLAS, Taciana (2021). Passeios pelos bosques da confissão: as escritas de si em Confissões de Ralfo (1975), de Sérgio SantAnna. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria. Disponível em: https://repositorio.ufsm.br/handle/1/22814. Acesso em: 21 set. 2024.

MATSUDA, Alice Atsuko. (2008). A desconstrução do romance em Confissões de Ralfo (uma biografia imaginária), de Sérgio Sant’Anna. Estação Literária, v. 1, p. 4-12. Disponível em: https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/estacaoliteraria/article/view/25060. Acesso em: 21 set. 2024.

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Como citar:

GRACIANO, Igor Ximenes.
Confissões de Ralfo.

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Brasília. 

26 mar. 2025.

Disponível em:

4210.

Acessado em:

19 maio. 2025.