NOLL, João Gilberto. A céu aberto. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Edmon Neto
Ilustração: Carolina Vigna
O escritor João Gilberto Noll (Porto Alegre, 1946 – 2017) é comumente associado à prosa pós-moderna, tendo conseguido captar na década de 1980 o espírito de uma “individualidade desprovida de conteúdo psicológico, sem profundidade e sem projeto”, nas palavras do professor Karl Erik Schøllhammer. No momento que se discutia o fenômeno da profissionalização do escritor, a sociedade já passava pela transformação de todas as suas práticas em espetáculo midiático, sendo que muitas obras de Noll ficaram marcadas pela perda radical de sentido e de referências, como Rastros do verão (1986), Hotel Atlântico (1989) e Harmada (1993), para citar alguns exemplos. E é justamente essa a condução de A céu aberto, romance de 1996, que, de acordo com o professor, é uma das narrativas responsáveis por tornar o autor gaúcho “o intérprete mais original do sentimento pós-moderno”.
Ao sonho interrompido logo na abertura do romance, que remete à infância de dois jovens irmãos, se segue uma busca pelo acampamento do pai, soldado de guerra e de nome Nicolau. Eles estão à procura de auxílio para o irmão mais novo, que sofre de uma doença desconhecida. O mais velho, por sua vez, é quem narra A céu aberto e, ao conseguir amparo médico para o irmão, vai se tornando uma sentinela naquele ambiente militar. Sua nova vida é narrada ao sabor de experiências homoeróticas, ora sugeridas (“boiando em mim a sobrevida de uma pulsação perigosa”), ora rememoradas ou francamente explícitas. Exemplo disso é a relação do narrador com o pianista Artur, de quem o jovem era uma espécie de “eminência parda”, pois dava conta de resolver questões práticas do músico que estava entregue aos prazeres fortuitos e incapaz de assumir a postura de um adulto funcional. Velho amigo de Nicolau, ele não demonstra, entretanto, qualquer sinal de interesse sexual pelo filho do amigo, que via naquela velha amizade o motivo de não ser querido de outra forma por Artur: “já cansei de me manter o garoto casto em cujo ombro ele mal toca temeroso e retesado para que a mão não suba nem principalmente desça”. Numa outra cena protagonizada pelo filho mais velho, um beijo terno na face de um soldado franzino; noutra, ainda, o sexo com um general.
“Ora, todas as guerras têm nome ou alguma coisa assim que clareie o entendimento”. Não é esse, entretanto, o caso de A céu aberto. Isso porque as noções de tempo e de espaço e a elaboração psicológica das personagens muitas vezes são insuficientes para se consolidar uma percepção sobre elas. Há uma crise instaurada desde sempre na representação de certos tipos sociais ou personagens redondas cujo desenvolvimento psicológico pode ser dado e consabido. Certas caracterizações na narrativa de Noll aos poucos vão sofrendo interferências no seu processo de construção identitária, comprometendo qualquer materialidade, de modo que alguns projetos vão sendo abandonados no caminho e os leitores vão se sentindo à deriva. A técnica do autor, contudo, de efeito análogo ao do cinema, faz com que, mesmo desamparados, os leitores de Noll se deixem conduzir em vertigem pelas imagens que se desprendem umas das outras.
No recrudescimento da guerra inscrita e deflagrada num lugar vazio e sem referência geográfica, o irmão mais novo e o pai se perdem do irmão mais velho, que às vezes expressa um desejo de apagamento ou de retorno a um lugar de onde não se deveria ter saído. O irmão mais novo, aos poucos, surge com feições ditas femininas, seja pela “suavidade no olhar”, seja pelas roupas e túnicas religiosas, criando, com o que era até agora cenário militar, uma ambiência constituída de signos religiosos. Não havia, porém, rezas nessa igreja senão rastros de desejo sexual de um padre pelo irmão mais novo, narrado de modo lacônico, sem evidências emocionais. Enquanto isso, junto à hipótese de assassinato do pai, Nicolau, a metamorfose do irmão em mulher do narrador cria uma transição insólita que beira o sonho. Isso passa a fazer com que a imagem do irmão coabite as ações dessa mulher, como a sugerir o incestuoso ou como se juntos, por um momento, eles formassem um duplo.
Já os cenários, sempre precários, de repente são outros. “Em que país estou?”, pergunta o narrador num paiol em meio aos bichos. A narrativa de João Gilberto Noll ganha outros circuitos espaço-temporais à medida que outras personagens vão surgindo e se consolidando, e assim um outro esboço de vida é traçado para o protagonista. E quando compartilhar os dias com a mulher parece se assentar junto à vigilância do paiol, surge, de modo repentino, o filho do pianista Artur, personagem encontrado na cama com a mulher do narrador. Trata-se de um jovem iniciado na dramaturgia, a contar histórias da vida em Estocolmo, dos projetos criativos e das notícias do pai e da cuidadora. Seu projeto era o Teatro da Aparição, cujas personagens surgiriam do nada e sumiriam para o nada, pensando o rapaz estar “criando a sua própria poética”, segundo comentário irônico do narrador.
Curiosamente, esse procedimento é empregado pelo próprio Noll, autor empírico a desenvolver a personagem do jovem dramaturgo na medida em que suas relações íntimas vão sendo costuradas com o filho mais velho e com sua mulher num triângulo amoroso impreciso, de modo que alguns vínculos são friamente desfeitos, como se fosse possível “limpar o estrago com o devido estoicismo”. Outras amarras e nós dramáticos são resolvidos muitos anos depois, via cortes temporais abruptos, vertidos em algum arremedo frustrado de reviravolta.
Os últimos fatos ocorrem ainda na presença fantasmática do irmão mais novo a habitar as hipóteses do narrador sobre um suposto destino. Após receber notícias sobre o retorno da guerra, que culminam na transformação do protagonista em um refugiado, ele parte, acompanhado de seu comandante, rumo ao desconhecido, como espreitador do mundo pela janelinha de um navio cargueiro, para, quem sabe um dia, poder ancorar em terra firme e segura.
Esse, portanto, é o cenário derradeiro de A céu aberto, em cujo desfecho se vê um mundo irrespirável: “quando se espera um perdão, vem, sei lá, uma lição de moral, ou uma cusparada”. Não se pode afirmar que o narrador personagem encontra amparo em algum país distante, pois se convive, ao fim e ao cabo, com os estilhaços de um mundo derruído e sustentado pela linguagem poética de João Gilberto Noll.
Com a intenção de produzir “um afresco” do fim de século, o autor pôde abordar na obra a “impossibilidade do tempo” e a “sedução pela instantaneidade”, conforme entrevista para a Folha de São Paulo. Eis um motivo da sensação de perambular por paisagens obtusas na leitura desse texto literário, algo que ao mesmo tempo pode explicar o sucesso da trajetória de um dos escritores mais instigantes e desafiadores de sua geração.
Para saber mais
AJZENBERG, Bernardo. A céu aberto ilumina a escuridão de João Gilberto Noll. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/11/09/ilustrada/1.html. Acesso em: 18 maio 2024.
SCHØLLHAMMER, Karl Erik (2009). Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
SÜSSEKIND, Flora (2003). Ficção 80: dobradiças e vitrines. In: SÜSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. p. 257-272.
Iconografia