KARAM, Manoel Carlos. Cebola. Florianópolis: FCC, 1997.
Giuliano Lellis Ito Santos
Foto: Isis Gamell
Manoel Carlos Karam (Rio do Sul, SC, 1947 – Curitiba, PR, 2007) construiu sua carreira literária na cidade de Curitiba, onde passou a residir em 1966 e viveu até sua morte. Na década de 1970, escreveu e dirigiu peças de teatro, passando a dedicar-se à literatura a partir dos anos 1980. Em 1995, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa da Fundação Catarinense de Cultura, que viabilizou a publicação de Cebola em 1997.
Karam possui uma trajetória no jornalismo, trabalhando em diversos veículos de imprensa do Paraná, mas o que mais se destaca é sua produção ficcional, composta por sete romances. Entre eles, ressalta-se a trilogia Alhures do Sul, formada por Fontes murmurantes (1985), O impostor no baile de máscaras (1992) e Cebola (1997).
Cebola talvez narre uma grande festa, uma reunião de personagens marginais que buscam entender seu lugar no mundo – ou melhor, um lugar que já está bem delimitado pela casa, cenário de toda a narrativa. Nesse sentido, o leitor adentra um universo a partir de um espaço reduzido, onde as mais diversas discussões cotidianas ganham ares de filosofia.
Na orelha da segunda edição de Cebola, o escritor Joca Reiners Terron (2010) relata: “Certa vez Manoel Carlos Karam me explicou qual era a lógica por trás de seus livros publicados até então. Os livros Fontes murmurantes (1985), O impostor no baile de máscara (1992) e Cebola (1997) […]”. Segundo Terron (2010), essa explicação aconteceu em um encontro marcado por um cenário peculiar: “Era uma noite quente em Curitiba e estávamos siderados por dois fenômenos verdes que ocorriam no quintal de sua casa no Bom Retiro: vagalumes e Heinekens. Creio que estas últimas são o motivo de eu não lembrar quase nada da explicação de Karam”.
O comentário de Terron (2010) remete justamente ao ambiente onde se passa o romance de Karam: a ideia de que conversas corriqueiras e esquecíveis podem conter reflexões mais profundas. E é exatamente isso que encontramos em sua narrativa – essa mistura entre o banal e o filosófico, marcada por uma boa dose de nonsense.
O livro é dividido em quatro partes: “Comédia”, “Contos”, “Combustão” e “Charada”. Não há uma linearidade no encadeamento da narrativa, mas, como sugere o próprio título, Cebola, as histórias inseridas nessa estrutura funcionam como camadas, exigindo que o leitor refaça as conexões para identificar um sistema subjacente. O formato da cebola, com suas sobreposições, reflete essa estrutura, em que a compreensão se dá pelo desdobramento sucessivo de elementos interligados. Essa ideia de camadas se manifesta também na estrutura do romance, que se organiza de maneira que reflete a divisão em quatro partes. Nesse caso, não parece mera coincidência que tanto o título do livro quanto os nomes das partes comecem com a letra “C”. O formato semicircular dessa letra, curvado e aberto, pode ser associado à forma como essas partes se encaixam, sugerindo continuidade e interdependência.
Talvez por isso, algumas histórias são contadas e recontadas, às vezes com uma mudança de ponto de vista, às vezes modificadas pelo mesmo narrador. Assim, o romance acaba por criar um mundo em devir, no qual a frase “o mundo dá voltas dentro desta casa” o sintetiza muito bem. O leitor pode supor, então, que há a projeção de um microcosmo, fazendo com que a casa figure como um mundo complexo, complicado e cheio de conflitos.
Boa parte da narrativa é construída por meio de diálogos, embora não sejam apresentados de forma convencional, com travessões ou marcações típicas. Apresentam-se, antes, em fluxo, tentando retratar a pluralidade de vozes presentes no mesmo espaço. Um trecho do livro que ilustra essa estrutura é o do diálogo entre jogadores, em um jogo de pôquer: “Manfredo viu que ela escondia os óculos escuros atrás do leque de cartas. / Fala logo, porra. / Manfredo falou. / Eu acredito numa coisa. / Que ninguém aqui pretende ir além do inesquecível. / Em resposta, todos pediram cartas”. Essa estruturação corresponde ao mundo em conflito presente no romance, com personagens em debate constante sobre os mais diversos assuntos, como religião, guerra, terrorismo, Al Capone, Buñuel, Barão de Itararé, Kierkegaard, entre muitos outros.
O romance também brinca com a ambiguidade ao apresentar personagens com nomes que evocam figuras históricas ou ficcionais. Napoleão e Olavo B. sugerem Bonaparte e Bilac? O mesmo acontece com Cândico, Manfredo, Ema e Batatinha, possíveis referências a Voltaire, Byron, Flaubert e Manda-Chuva, já que este último é o animal de estimação da casa. O mais curioso é que nenhuma delas possui características marcantes que coincidam com as personalidades de nomes semelhantes, que parecem referenciar.
Quanto à organização da narrativa, a primeira parte, “Comédia”, dividida em capítulos numerados de um a nove, apresenta o espaço e as personagens, permitindo ao leitor adentrar o universo nonsense da casa e acompanhar os diálogos de pelo menos quinze personagens. Essa parte se encerra com a cena da sopa de letrinhas, servida pelo fantasma que habita a cozinha. Em seguida, a segunda parte, “Contos”, estrutura-se por meio de títulos individuais para cada narrativa, trazendo histórias brevíssimas que, em alguns momentos, retomam passagens da parte anterior. Já a terceira parte, “Combustão”, organiza-se em capítulos dispostos em ordem alfabética e acompanha um incêndio que consome a casa. Apesar do caos instaurado, as personagens seguem suas rotinas sem grandes alterações, enquanto o fogo passa a ser um tema recorrente nas conversas. Por fim, a quarta parte, “Charada”, apresenta pequenas narrativas fragmentadas, separadas apenas por asteriscos, algumas das quais recuperam episódios já mencionados ao longo do livro.
A partir dessa estrutura, é possível perceber dois movimentos distintos na narrativa. Enquanto a primeira e a terceira partes estabelecem certa continuidade, seja pela numeração progressiva dos capítulos ou pela sequência alfabética, a segunda e a quarta sugerem uma fragmentação do discurso, como se as histórias ocorressem de modo isolado dentro do espaço da casa.
Cebola é um romance de leitura fluida, mas desafiadora, principalmente para leitores acostumados a narrativas lineares. Sua construção dialoga com ideias de vanguarda, evidenciadas por referências a autores como Buñuel e Beckett, cuja influência reforça o caráter experimental da obra. Contudo, a presença de nomes como Sam Peckinpah, diretor e roteirista, faz uma ligação com o cinema hollywoodiano, estabelecendo uma ponte com a cultura de massa.
Por tudo isso, esse romance de Manoel Carlos Karam destaca-se como expoente de uma literatura que se alimenta de diversos discursos contemporâneos como forma de construção narrativa, fazendo com que o leitor permaneça em constante dúvida sobre a intenção dessas referências, ora irônicas, ora enigmáticas.
Para saber mais
PUJOL FILHO, Reginaldo (2014). Ensaios e resenhas: O circo de Karam está sempre armado. Até os dentes. Rascunho – O jornal de literatura do Brasil, Porto Alegre, n. 166. Disponível em: https://rascunho.com.br/ensaios-e-resenhas/o-circo-de-karam-esta-sempre-armado-ate-os-dentes/. Acesso em: 12 mar. 2024.
TERRON, Joca Reiners (2010). Certa vez Manoel Carlos Karam me explicou… [Orelha de livro]. In: KARAM, Manoel Carlos. Cebola. Florianópolis: Kafka.
UFPR TV (2019). Depoimento de Karam. [Entrevista concedida a] Sérgio Brandão. Memórias Paraná. Persona, 1 vídeo (33 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LeGwnWwRhIs. Acesso em: 12 mar. 2024.
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