LUFT, Lya. As parceiras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
Lúcia Osana Zolin
Ilustração: Manuela Dib
Publicado no raiar da década de 1980, As parceiras, romance de estreia de Lya Luft (Santa Cruz do Sul, RS, 1938 – Porto Alegre, RS, 2021), faz reverberar o contexto sociocultural e político em que emerge, marcado pelo declínio da ditadura militar e pela consequente insurgência de vozes dissonantes, cada vez mais conscientes da necessidade de se repensar pautas político-sociais, identitárias e culturais, até então submetidas ao jugo do patriarcado e do autoritarismo. No que diz respeito à arte literária, tradicionalmente reconhecida como sendo da ordem do masculino, observa-se uma decisiva mudança de rumos. As vozes femininas, por tanto tempo silenciadas e marginalizadas, conquistam, graças aos avanços feministas galgados paulatinamente no decorrer das décadas anteriores, o direito à expressão.
Luft junta-se a dezenas de escritoras que parecem impelidas a problematizar em seus escritos as maneiras pelas quais a ordem patriarcal paralisa e tolhe a subjetividade feminina. O contexto torna-se oportuno às representações de dramas existenciais de mulheres flagradas em situação-limite, em que avultam as arbitrariedades sobre seus corpos, privados do direito ao prazer, impingidos à maternidade compulsória e ao confinamento nos limites da casa, submetidos a toda sorte de violências de gênero e, além disso, silenciados.
A vasta produção literária da autora inclui também, além de ensaios, literatura infantil, coletâneas de contos e de poesia e os romances A asa esquerda do anjo (1981), Reunião de família (1982), O quarto fechado (1984), A sentinela (1994), O ponto cego (1999) e O tigre na sombra (2012). Essas narrativas, em geral, problematizam relações familiares, com ênfase na condição feminina face aos perversos valores do patriarcado, de modo a iluminar retratos da incomunicabilidade, do silenciamento, da solidão, da melancolia, da loucura, da morte, entre outras tragédias que permeiam as relações familiares e de gênero.
O romance em questão é narrado pela protagonista, Anelise, durante o período em que se recolhe no chalé da família para tentar reorganizar o caos existencial que marca seu momento presente, após experiências frustradas de maternidade, materializadas em sucessivos abortos, na morte do único filho, ainda bebê, e no decorrente fracasso do casamento. Organizado em sete capítulos, nomeados com os dias da semana em que Anelise permanece no refúgio, o romance é construído de modo a fazer avultar, em meio às reflexões da narradora acerca de suas dores, as trajetórias das mulheres da família, no conjunto, reconhecidas como “parceiras” de infortúnios, “família de doidas”, “um bando de mulheres malsinadas”, “legião de perdedoras”, ramificações de uma “árvore temida”. Trata-se de uma escolha estética que ganha importância no âmbito da crítica literária feminista na medida em que confere voz a várias gerações de mulheres silenciadas, a quem jamais fora permitido expressar angústias face ao sistema de valores patriarcais que regulava suas existências.
Entre a cama e os frequentes momentos em que se deixa embalar pelo balanço da rede na varanda, ou durante os passeios nas trilhas ao lado do cão Bernardo, por entre penhascos, ou ainda quando se permite relaxar na esteira sob o sol à beira-mar, Anelise passa em revista toda a sua trajetória desde a infância, salientando a perda repentina dos pais em um acidente aéreo, a infância no casarão, junto à avó Catarina e às tias Beatriz e Sibila, a primeira experiência afetiva na adolescência, com o primo Otávio, o tempo em que morou na cidade com a tia Dora, o casamento com Tiago, o desgaste decorrente das tentativas fracassadas de experienciar a maternidade e a separação, até chegar no presente da narrativa. Nesse percurso, tenta encontrar respostas para suas angústias, revisitando as experiências de dor das mulheres da família e construindo uma espécie de mosaico, cujas peças vão sendo encaixadas com vistas à compreensão da exata medida em que suas existências completam o retrato da dor e da solidão que as irmanam.
As memórias da infância e da adolescência são preenchidas por essas trágicas existências, que gravitam sem esperança no entorno da tirania do avô, representante do patriarcado, cujas práticas de violência atingem de forma mais incisiva a avó Catarina, mas se propagam sobre as demais mulheres da família.
Sendo uma mulher que não se enquadra nos padrões femininos de seu tempo, certamente por não ser capaz de aceitar a normalidade do casamento, expressa em termos de violência sexual, Catarina refugia-se no sótão do casarão, onde constrói uma espécie de mundo paralelo de menina, compatível com seu desejo de resgatar um tempo em que ainda não havia tido sua subjetividade adolescente devastada. Disso decorre ela ser tachada de louca. Nas memórias da neta, a avó era só solidão e medo, misturados ao cheiro de alfazema que emanava dela, uma espécie de símbolo de sua dor. O gesto de resgatar e problematizar as violências sexuais sofridas pela avó implica, finalmente, a quebra de seu silêncio e, consequentemente, um primeiro passo rumo à montagem do quebra-cabeças da “sina” de perdedoras que paira sobre as cabeças das mulheres da família.
Também a trajetória de Norma, mãe da protagonista, é revisitada. É uma das três filhas que a avó teria tido, nos intervalos dos abortos, enquanto tinha o corpo imaturo “arrombado” pelo marido insaciável. Tendo conhecido pouco a mãe, Anelise traz na lembrança as marcas do alheamento dela em relação ao mundo circundante. Embora sempre amparada pelo marido em sua fragilidade, diferentemente de Catarina, que tinha no dela o seu algoz, a existência de Norma era tão irreal quanto a vivenciada pela mãe no sótão.
A trajetória da tia Beatriz, ou Beata, não é menos trágica que a das demais mulheres da família. É viúva, virgem e infeliz, uma vez que o marido teria se suicidado três semanas após o casamento, por não conseguir desempenhar as funções conjugais. Daí ela ter dedicado sua existência à religião e aos cuidados da mãe louca e da irmã com nanismo, Sibila, a última filha de Catarina e, na avaliação da narradora, “o fruto mais caprichado da árvore temida”, cuja figura grotesca assombrava sua infância e adolescência: “Feia, cabeça pequena, olhinhos suínos, cabelo ralo e preto. Nunca lhe nasceriam os dentes”.
A tia Dora é a única que escapa, em alguma medida, desse círculo de horrores, uma vez que se afasta do casarão e, após dois casamentos fracassados, vive sua solidão, cercada de pessoas igualmente solitárias e tristes, que, atraídas pelo seu jeito maternal, embora um tanto rude, e seu humor sem amargura, estabelecem com ela uma comunidade afetiva, denominada por tia Beata de “fauna de Dora”: veados, mundanas e vigaristas.
Ao iluminar essas trajetórias das mulheres fracassadas da família, Anelise procura a causa de seu próprio fracasso. Ela se reconhece como a última peça do mosaico que constitui esse painel de mulheres malsinadas, cujo denominador comum é, finalmente, reconhecido como derivado do perverso sistema de valores patriarcais que o avô representa e dissemina, em cujo centro está a maternidade. Ela e as demais mulheres da família são culpabilizadas e penalizadas por não conseguirem cumprir seu destino e darem a seus maridos o filho homem que lhes garantiria o legado. Nesse sentido, o discurso que circunscreve essas mulheres como uma legião de perdedoras e fracassadas, numa espécie de retórica essencialista, é desconstruído para, então, afirmar-se que se trata, na verdade, de mulheres vitimadas pelos desmandos do patriarcado, assentados na legitimidade da subjugação e na objetificação feminina, segundo a qual a maternidade bem desempenhada é tomada como único ponto de chegada possível.
No contexto do feminismo crítico contemporâneo, esse importante romance, que marca a estreia literária de Luft, nos anos 1980, tem sua atualidade reconhecida, na medida que vem provocando muitos debates, como aquele no entorno do direito das mulheres à expressão. A “escrita do eu” se expande no universo da literatura recente produzida por mulheres, de modo que sujeitos femininos são largamente representados, a exemplo da narradora de As parceiras, tomando posse da palavra e do direito de narrar. São elas narradoras-protagonistas que colocam luz, a partir da própria perspectiva, nos dramas pessoais e de outras parceiras de gênero, tornados tabu ao longo da história do patriarcado e silenciados pela lei do pai.
Para saber mais
FAÉ, Geneviève; ZINANI, Cecil Jeanine Albert (2011). Maternidade em As parceiras, de Lya Luft: destino cultural feminino. Revista Cerrados, Brasília, v. 20, n. 31, p. 213-227. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/cerrados/article/view/26057. Acesso em: 13 dez. 2024.
FRAITAG, Katia; BATTISTA, Elisabeth (2014). Narração e conexão retrospectiva: trânsitos da memória em As parceiras, de Lya Luft. Revista Athena, Tangará da Serra, v. 6, n. 1, p. 44-55. Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.php/athena/article/view/351. Acesso em: 13 dez. 2024.
SANTOS, Maria Juliana de Jesus; GOMES, Carlos Magno (2021). O duplo lugar de fala em As parceiras, de Lya Luft. Revista Entrelaces, Ceará, v. 11, n. 23, p. 163-174. Disponível em: http://www.periodicos.ufc.br/entrelaces/article/view/60803. Acesso em: 13 dez. 2024.
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