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As meninas

TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.

Nilton Resende
Ilustração: Manuela Dib

É junho de 1970, tempo dos anos de chumbo da ditadura militar (1964-1985) no Brasil. A Universidade de São Paulo está em greve. Três jovens universitárias moram num pensionato de freiras e aproveitam para se dedicar ao que lhes é urgente. Esse é o ponto de partida de As meninas (1973), terceiro romance da escritora Lygia Fagundes Telles (São Paulo, SP, 1918 – São Paulo, SP, 2022).

As meninas mostra a busca incessante da autora por novas formas de expressão, o que pode ser comprovado ao se compará-lo a seus dois romances anteriores, Ciranda de pedra (1954) e Verão no aquário (1964), em que já se podia perceber a maestria na escolha das vozes narrativas. No primeiro, uma terceira pessoa parcialmente onisciente faz dos leitores testemunhas da interioridade da protagonista, ao ponto de se saber apenas o que ela sabe, tornando a visão restrita à que ela tem do mundo; no segundo, uma primeira pessoa de visão também limitada promove um mergulho na intimidade da narradora, não sendo possível conhecer coisa alguma que não seja sabida por ela. Em As meninas, encontram-se unidas características desses dois antecedentes: o uso da terceira pessoa, a limitação do ponto de vista, a narrativa em primeira pessoa e o aprofundamento na interioridade.

Tendo três garotas como protagonistas, esse não é apenas um livro sobre juventude. Ao tratar de Ana Clara, Lia e Lorena, Telles desenvolveu um modo narrativo ainda não usado por ela e que dá a experiência de aproximar o leitor dos desejos, medos e sonhos de três jovens que vivem sob uma ditadura. Diz-se que um conto é um momento na existência de alguém a partir do qual sua vida não será mais a mesma; pode-se dizer o mesmo sobre esse livro, sobre esses dois ou três dias quando serão mudadas para sempre as vidas dessas três meninas, neste quase romance de formação que não espera anos para o amadurecer de suas protagonistas, mas as lança na voragem dos eventos em um curto espaço de tempo, sem complacência, sem piedade.

Ana Clara é modelo e estudante de psicologia, mas está com a matrícula trancada. É linda, mas tem uma baixíssima autoestima, advinda de uma história de privações e de abusos quando criança. Viciada em entorpecentes, namora Max, um jovem traficante que vem de uma família decadente. Durante quase todo o livro, os dois estão chapados e tentam entabular impossíveis diálogos em que avultam os contrastes entre suas infâncias. Querendo ascender socialmente a todo custo, Ana Turva (como é chamada pelas amigas) planeja uma operação de reconstrução do hímen para poder casar-se, virgem, com um homem rico a quem ela despreza e por quem sente repulsa.

Lia (ou Lião) é estudante de ciências sociais e dedica-se a lutar contra a ditadura. Seu namorado, Miguel, está preso, e talvez haja a possibilidade de ser libertado em troca da soltura de um embaixador sequestrado pela guerrilha. Se Ana Clara vive presa ao passado, Lia luta por um futuro e está bastante atenta ao presente, tanto que lê para uma das freiras do pensionato um relato de tortura sofrida por um homem nos porões do DOI-Codi. Esse relato foi recebido pela própria escritora, que resolveu colocá-lo dentro do livro, vindo a ser o primeiro testemunho dessa natureza presente em uma obra de ficção brasileira.

Lorena (ou Lena) é estudante de  direito e mora no maior e melhor quarto do Pensionato Nossa Senhora de Fátima. Em sua “concha”, ela faz passos de balé, lê e recita poemas, escuta músicas, acende incensos, e pensa em M.N., que é médico, casado, e com quem ela sonha perder sua virgindade. É Lena quem ajuda financeiramente Ana Turva e Lião, seja dando dinheiro para a “operação na zona sul”, seja emprestando o carro de sua mãe para ações subversivas. Também é ela quem narra a maior parte do romance, que tem uma perspectiva multifacetada, sendo narrado pelas três meninas e por uma voz em terceira pessoa.

Assim, ora a história é dada por essa narração em terceira pessoa, ora o leitor é testemunha dos pensamentos das amigas, que tentam compreender-se e compreender o mundo, numa alternância às vezes abrupta, sem qualquer sinalização. Mas não há caos, pois a linguagem é ordenada, e cada uma das meninas tem seus modos próprios, sua sintaxe, seu léxico. Se de início pode haver alguma dificuldade, mais à frente ela tende a desaparecer, pois nesse romance Telles alcança o ponto alto de sua obra no que diz respeito ao uso da linguagem, emprestando a cada personagem narradora um modo específico de falar, ao ponto de se abrir o livro em qualquer página e ser possível identificar quem está narrando, pois cada personagem tem uma identidade própria, manifestada não apenas no âmbito das ideias, mas da própria sintaxe e do léxico.

À época de seu lançamento, o romance dialogava muito com seu tempo pelas menções a pessoas, obras e eventos contemporâneos. Pode-se dizer que nele há inclusive uma trilha sonora, por conta de músicas e artistas citados, tais como Maria Bethânia, Aracy de Almeida, Jimy Hendrix, The Rolling Stones. Há também uma “trilha política”, que pode ser percebida nas referências a Che Guevara, Rosa Luxemburgo, Angela Davis. Mesmo havendo essas referências, mesmo tendo sua história se passando no Brasil dos anos 1970, o livro não é datado, pois o mundo de Ana Clara, Lia e Lorena é universal e atemporal, uma vez que se vê nele o que também avulta no mundo atual: estados de exceção, totalitarismos, preconceitos, perseguições, insegurança, medo, fuga da realidade, desconhecimento do outro, incomunicabilidade, orfandade, pobreza, mentiras, guerrilha, conservadorismos, delações, fascismo, nazismo.

Exemplos disso avultam na obra, como uma das conversas travadas entre Lia e seu amigo Pedro, em que ela diz: “Conheço uma freirinha que você olha e diz, bom, não tem uma avozinha igual. Precisa ler as cartas anônimas que escreve pra todo mundo. Só espero que não ache o endereço do Dops, está quase cega”. Mais à frente, Pedro fala: “Acho que tenho mais medo da gente lá de casa do que da polícia. Meu irmão mais velho faz parte daquela onda de tradição e família, você precisa ver como ficou histérico. Morro de medo dele”.

Muito se fala sobre As meninas não ter sido censurado, afinal, ele é um romance de contracultura, um romance de “sexo, drogas & rock’n’roll”. Diz-se que os censores não passaram da metade do livro, desistindo dele graças à sua linguagem, que exige bastante do leitor. Talvez tenha contribuído para isso a ironia presente em seu título, que remete a algo pueril, característica que, contudo, está distante dessa obra cujo título dialoga com um romance muito lido nas primeiras décadas do século XX e que trazia lições de moral: As meninas exemplares, publicado em 1858 pela Condessa de Ségur. No romance de Telles, as meninas prescindem da adjetivação, visto que não são nada exemplares. De algum modo, as protagonistas são três importantes faces que coexistem em todos, havendo vez ou outra a predominância de uma delas: em Lorena, percebe-se que realidade demais pode tornar a todos amargos, e uns grãos de ilusão podem ajudar a suportar o dia a dia; Ana Clara mostra que no íntimo todos são frágeis, muito frágeis, e o passado pode ser uma âncora que impede de seguir em frente; Lia vem dar a mão às duas, dizendo-lhes que, unidas, podem construir um futuro melhor. As meninas é um romance sobre amizade em tempos sombrios, feito de um amálgama de sonho e fragilidade, como “a estrutura da bolha de sabão”.

Para saber mais

LUFT, Lia (1979). Três espelhos do absurdo: a condição humana em As meninas de Lygia Fagundes Telles. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/170744. Acesso em: 15 dez. 2024.

RESENDE, Nilton José Melo de (2013). A caça em marcha: leituras e edição crítica do livro Antes do baile verde, de Lygia Fagundes Telles. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Universidade Federal de Alagoas, Maceió. Disponível em: https://www.repositorio.ufal.br/handle/riufal/2376. Acesso em: 15 dez. 2024.

RIBEIRO, Lucilene Canilha (2017). O bildungsroman feminino de Lygia Fagundes Telles: uma leitura da mulher brasileira no século XX. Tese (Doutorado em História da Literatura) –  Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande. Disponível em: https://repositorio.furg.br/handle/1/9079?show=full. Acesso em: 14 jan. 2025.

TELLES, Lygia Fagundes Telles (2023). As meninas: edição crítica comemorativa de 50 anos. Org. Nilton Resende. Arapiraca: Eduneal.

TORQUATO, Carolina Pizzolo. Eco de vozes: tradução e análise de As meninas de Lygia Fagundes Telles. Tese (Doutorado em Literatura) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/19381. Acesso em: 15 dez. 2024.

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Como citar:

RESENDE, Nilton.
As meninas.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

26 mar. 2025.

Disponível em:

4177.

Acessado em:

19 maio. 2025.