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Aquele um

MONTEIRO, Benedicto. Aquele um. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985.

Juliana Florentino Hampel
Ilustração: Espírito Objeto

Benedicto Monteiro (Alenquer, PA, 1924 – Belém, PA, 2008), escritor e advogado de formação, estava envolvido com a política local quando ocorreu o golpe militar no Brasil. Como um político de esquerda e amigo pessoal de João Goulart, foi preso em 1964 e teve seus direitos políticos cassados por mais de 10 anos. Aquele um (1985) é o quarto volume de sua tetralogia amazônica, composta ainda por Verde vagomundo (1972), O minossauro (1975) e A terceira margem (1983).

No posfácio de Aquele um, Monteiro afirma que seu encarceramento e posterior soltura o levaram a idealizar uma saga da Amazônia na qual pudesse “escrever um romance que, pela própria linguagem, formasse a personagem e refletisse o contexto da realidade amazônica totalmente isolada do contexto histórico, político e social do resto da humanidade”. Entretanto, após críticas recebidas no lançamento de Verde vagomundo, o autor revisou suas abordagens.

O crítico literário Leo Gilson Ribeiro apontou que o romance “fraquejava nas partes em que tratava da realidade contextual”. Por outro lado, a escritora Nélida Piñon destacou que o livro era “intenso e profundamente original” ao retratar o depoimento de Miguel, revelando a escrita de um “escritor experimentado”, mas que infelizmente não se poderia afirmar o mesmo do restante da narrativa.

A partir dessas observações, Monteiro decidiu incorporar, nos demais volumes, o contexto sociopolítico do Brasil daqueles anos de chumbo. Dessa forma, nasce um conjunto de romances em que se alternam um material linguístico vasto composto por detalhadas explicações da flora e fauna da região, acrescido de citações de filósofos e estudiosos da Amazônia, além de representações sobre o linguajar dos paraenses e dos amazônidas, tudo isso em meio às denúncias de censura e violência perpetradas contra a cultura local.

Miguel dos Santos Prazeres é o protagonista da obra e conta sua história a três diferentes interlocutores: um major, um geólogo e um geógrafo. Apelidado de Cabra-da-Peste por seu padrinho Possidônio, um sertanejo que havia feito a vida como jagunço, Miguel passa toda a narrativa tentando se distanciar da figura de seu protetor. No entanto, o padrinho, que chegara por aquelas bandas empoderado pela habilidade de lidar com a peixeira e a espingarda, escolhe o afilhado para que o substitua na “profissão”.

Pelas palavras de Miguel, o leitor fica a par do fato de que Possidônio se orgulhava de seu tempo no cangaço, quando se matava com orgulho “um policial, um-gente-grande, um coronel a mando de outro”. Já na Amazônia, a morte acontecia “à traição e de emboscada”, quando se atirava em “caboco por causa de saldo no barracão, invasão de terra, desvio de balata ou castanha”. Apesar de não achar que esse tipo de assassinato era digno de seu passado glorioso, ele não se negava a realizar o trabalho por dinheiro, atirando “de tocaia, sempre pelas costas pra não ter o desgosto de ver o brilho inocente dos olhos do caboco surpreendido pelo rifle”.

O destaque da primeira parte de Aquele um é o tom de denúncia, em que fica clara a exploração de trabalhadores do ciclo da borracha nas primeiras décadas do século XX na Amazônia pelas mãos de latifundiários, típicos exploradores predatórios da floresta. Também na narrativa ao major, é constante a repetição de Miguel de que, embora o padrinho o tivesse iniciado nas artes de se tornar um “cabra jagunço”, ele tinha dificuldades em praticar a pontaria com o rifle, o que justificaria sua falta de vocação para se tornar um matador de aluguel.

Na segunda parte, o protagonista discorre sobre sua real vocação, a pirotecnia, e seu sonho de soltar fogos de artifício durante os festejos de Santo Antônio, porque os foguetes eram a única “coisa alegre e bonita” que ele havia visto na vida. Havia outra razão para essa escolha: Miguel precisava pagar a promessa feita ao santo por tê-lo livrado de seguir com o legado de bandidagem do padrinho. Sua imagem surge, assim, como a de um herói amazônida que quer proteger sua comunidade, obcecado pelo poder de dominar a força do fogo que devasta a floresta. “Agora eu sei por que eu quis sempre ser um pirotécnico. […] eu queria conter a medonha fúria do fogaréu que arrasava a mata; eu queria era barrar a labareda, que na asa do vento consumia todo o campo”.

Como dado histórico, a narração ao geólogo, nessa segunda parte do romance, a mais longa de todas, inicia-se com a informação de que “tinha havido uma revolução no país, a cidade estava toda ocupada pelos militares”. Eles buscavam por “políticos e subversivos e um deputado que falava em reforma agrária”. Nesse ínterim, um coronel quer prender Miguel alegando que ele não possuía autorização da polícia para soltar os fogos durante a festa. Contudo, ele consegue subir no morro e acender todos os foguetes que havia preparado para os nove dias das festividades em apenas algumas horas, completando a façanha do herói que se torna “Senhor do tempo […] um outro tempo, paresque até de rei, de santo e de milagres e de encantes – o senhor sabe?”.

Abilio Pacheco (2017), em artigo sobre a obra de Monteiro, afirma que sua tetralogia amazônica é o primeiro trabalho no qual a Amazônia “não é apenas um repositório de mitos e lendas, detentora de fauna e flora exótica, mas sim [um lugar] inserido num contexto amplo de realidade política, econômica, social e cultural”. O autor defende a tese de que tais romances possam ser lidos como um testemunho da Amazônia, não no sentido de narrar fatos realmente ocorridos, mas de debater problemas que são próprios da região, ao recriar uma realidade que não se inscreve exatamente como verdade histórica. Em vez disso, trata-se de uma reescrita da ideia de verossimilhança e testemunho, uma vez que o contexto histórico-político internacional da Guerra Fria e nacional da Ditadura Militar são conhecidos e foram vivenciados pelo autor.

O diálogo com o compadre Franquilino, que trabalha como capanga para o coronel Laudemiro, é um exemplo dessa verossimilhança recriada. Ao explicar a vastidão do poder exercido pelo coronel, Monteiro estaria recriando uma memória que não é apenas a do protagonista de Aquele um, mas sim de toda uma comunidade que sofre os mandos e desmandos dos latifundiários da região: “Nem o nome carecia que aquele povo aprendesse. O retrato na mente e o voto na urna. A era de cinco em cinco anos e o eleitorado de cabresto curto. Se ele, o Coronel, pudesse botar a marca-de-fogo em vez do nome, bem que os votos iam aparecer no Tribunal com a marca-de-ferro-e-fogo. O ‘L’ grande dentro de um em brasa, ferro-vivo-feito-voto”.

Segundo João Rosa (2003), em dissertação que analisa Aquele um, ao narrar sua própria experiência, “Miguel acaba por reescrever as tradições de sua comunidade, o que o torna representante de uma memória coletiva”. De fato, na terceira parte da obra, ao conversar com um geógrafo e contar detalhes sobre a prole que compõe sua extensa descendência, o protagonista assemelha-se a Macunaíma em suas aventuras com mulheres durante a vida errante pelos rios amazônicos. Desse modo, ao estabelecer um diálogo com diferentes culturas formadoras da gênese brasileira, forja-se a identidade cultural desse herói centrada em um hibridismo étnico-cultural (Rosa, 2003).

Assim, se o romance Aquele um pode ser lido como uma alegoria da Amazônia, Miguel seria a figura alegórica do caboclo amazônico que exalta seu lugar e sua gente, com vistas a subverter a realidade social imposta naquele momento histórico. Esse processo de constituição identitária o faz empreender uma jornada que visa uma transformação social ao procurar inverter o curso da história, ou seja, reescrevê-la de um ponto de vista a realçar o poder de sua própria escolha. Na narração, uma cosmogonia amazônica é evidenciada na descrição da concepção de cada um dos filhos, quando o verde das matas se mescla às imagens de gozo e prazer presentes nos encontros amorosos de Miguel: “Não é pra me gabar, mas no momento que eu plantava um filho, vinha na minha boca um gosto puro de pura festa. Gosto quente e verde de flor e sangue. […] as cores verdes invadiam toda a minha vista. E folhas, folhas verdes, vertendo cores de todas as cores, reverdeciam na água”.

Aquele um, ao sintetizar o conteúdo dos três volumes anteriores da tetralogia amazônica, reafirma o projeto de Monteiro de reatualizar a simbologia da floresta por meio de um diálogo entre o regional e o universal, revelando identidades culturais. Nesse sentido, a obra se torna atual ao propor o desejo de transformação social representado pela figura de Miguel, que instaura um contradiscurso como reação à opressão da classe dominante. Tal intervenção acontece porque o mito é reafirmado, tornando-se fonte inspiradora para munir o homem de coragem, a fim de alterar seu passado e recriar esse universo a partir de novos valores, mais justos e diversos.

Para saber mais

MONTEIRO, Benedicto (1985). Posfácio. In: Aquele um. Rio de Janeiro: Marco Zero. p. 221- 223.

PACHECO, Abilio (2017). Aqueles uns e aqueles outros uns: testemunho na Tetralogia Amazônica de Benedicto Monteiro. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIC – TEXTUALIDADES CONTEMPORÂNEAS, 15., 7 a 11 ago. 2017, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Anais eletrônicos. Rio de Janeiro: Uerj, v. 1, p. 3318-3328.

ROSA, João Jesus (2003). Intertexto e identidade cultural em Aquele um, de Benedicto Monteiro. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

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Como citar:

HAMPEL, Juliana Florentino.
Aquele um.

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26 mar. 2025.

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19 maio. 2025.