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Becos da memória

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006.

Aline Alves Arruda
Ilustração: Théo Crisóstomo

Membro da Academia Mineira de Letras, Conceição Evaristo (Belo Horizonte, MG, 1946) é uma das escritoras brasileiras contemporâneas mais reconhecidas. Becos da memória é seu segundo romance publicado e o primeiro a ser escrito. Segundo a própria autora, em prefácio no romance, o livro teria ficado engavetado mais de vinte anos, até sua publicação, em 2006. O primeiro publicado foi Ponciá Vicêncio, em 2003, também pela editora Mazza, de Belo Horizonte. Num misto de testemunho e ficção, em Becos da memória, a autora volta à infância e início da adolescência para contar sobre a vida e os sentimentos dos moradores de uma favela que seria desmanchada e seus habitantes deslocados – desfavelizados – no final da década de 1960. O tema, portanto, além de estar presente nos dois romances da escritora, é parte de sua biografia. A capa da primeira edição traz fotos do arquivo pessoal da autora, de sua família, confirmando que sua memória individual está ali mesclada à memória de tantos brasileiros e dos personagens que ficcionalizou.

Depois de ser publicado pela editora mineira em 2006, o livro saiu pela extinta editora Mulheres de Florianópolis, em 2013 e, por último, pela editora Pallas, em 2017. Além dos dois romances já citados, a autora publicou também, em 2008, Poemas de recordação e outros movimentos; em 2011, o livro de contos Insubmissas lágrimas de mulheres, que foi reeditado em 2016; em 2014, o premiado Olhos d’água, também de contos; em 2016, Histórias de leves enganos e parecenças (reeditado em 2017), livro de contos e novelas; Canção para ninar menino grande, outra novela, publicado em 2018 e reeditado em 2022, e o mais recente, Macabea, flor de mulungu, conto ilustrado, publicado em 2023.

O enredo de Becos da Memória entrelaça várias histórias de moradores de uma favela não nomeada que está prestes a ser destruída. A protagonista Maria Nova, uma menina de 13 anos, é quem transporta o leitor para dentro da favela. Através do seu olhar, narram-se vidas afrodescendentes de uma forma sensível e poética, como é típico da literatura de Conceição Evaristo, e os personagens como Tio Totó, Bondade, Cida Cidoca, Ditinha, Vó Rita e outros vão tecendo suas memórias, sonhos e perspectivas numa espécie de “colcha de retalhos” da memória coletiva daquele povo. Tem-se, então, um romance coletivo, com uma multiplicidade de personagens e uma narrativa intermitente, descontínua, que alterna o foco narrativo na primeira e na terceira pessoa.

Becos da Memória é um excelente exemplo do conceito de “escrevivência” criado por Conceição Evaristo. O termo compreende a ideia de que a experiência de vida vivida por pessoas negras no Brasil é fundamental para a produção literária. Segundo ela, seria “a escrita de um corpo, de uma condição, de uma experiência negra no Brasil”. Ao adotar o termo, Evaristo destaca a necessidade de incluir as experiências históricas, sociais e culturais da comunidade negra na produção literária. Ela busca romper com estereótipos e preconceitos, dando voz e visibilidade às experiências de vida únicas de indivíduos negros no Brasil. A escrevivência, portanto, vai além de simplesmente escrever sobre a experiência; ela incorpora a vivência de forma autêntica e profunda, enriquecendo assim a literatura com perspectivas antes marginalizadas.

Maria Nova, personagem e narradora do livro, percorre os becos da favela que está em gentrificação para recolher as memórias de seus moradores. A menina carrega muitos dos traços da autora: menina negra, filha de lavadeira, que vive a infância na favela, gosta de escrever e enxerga na escrita a resistência para preservação de sua memória e dos seus. Nessa escrevivência, Evaristo faz emergir em sua literatura as vozes afrodescendentes das favelas, por anos silenciadas, e permite que a memória coletiva diaspórica afrobrasileira seja contada por uma mulher negra.

Refletindo sobre essa mescla entre biografia e ficção, Becos da memória, como observa o pesquisador Luiz Henrique S. de Oliveira, rompe com a tradição do que Lejeune (1980) chama de “pacto autobiográfico”. Segundo o teórico francês, a diferença entre a autobiografia e o romance seria o pacto feito entre o leitor e o autor da escrita de si. Para ele, há um acordo tácito entre o autor e o leitor, no qual o autor assume a veracidade dos eventos narrados como sendo sua própria vida. O leitor, por sua vez, aborda a obra com a expectativa de que está acessando informações autênticas sobre a vida do autor. O que Oliveira quer dizer quando afirma que Conceição Evaristo com esta obra cria “um novo espaço autobiográfico” é que, embora o nome na capa do livro seja diferente do nome da personagem que escreve as memórias de seus vizinhos, familiares e amigos, Conceição se desdobra em Maria Nova de forma autobiográfica.

Há de se observar também em Becos da memória a importância do espaço e as diferenças da favela onde personagens como Vó Rita e Tio Totó moravam com a retratada nas ficções literárias de escritores como Geovane Martins e Ferréz, por exemplo. De Quarto de despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus, e da favela onde vive Maria Nova para a literatura contemporânea muita coisa mudou na realidade desse espaço quanto ao tráfico, à violência, ao surgimento da milícia, ao tratamento da polícia com os moradores. Infelizmente o que permanece é o descaso com a população de maioria negra que lá reside e que tem seus jovens assassinados todos os dias.

Com sua escrita poética, Conceição Evaristo traz ao leitor, por meio de seus personagens, a ideia de lar que a favela também tem. Tio Totó diz a Maria Nova que não quer se mudar, que já “perdeu as forças” e que seu corpo “pede terra”. Na história diaspórica e errante desse personagem negro descendente de africanos escravizados, não cabe mais recomeçar à força, pela imposição dos que os arrancam sempre de suas raízes. E é isso que Becos da memória vem ressaltar: sujeitos de sua própria história, donos de suas memórias e de seus territórios, a pluralidade da população negra resiste.

Para saber mais

EVARISTO, Conceição (2007). Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In.: ALEXANDRE, Marcos Antônio (org.). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza.

CRUZ, Cristina Jane (2016). Uma análise da personagem narradora em Becos da memória, de Conceição Evaristo. Dissertação (Mestrado em Literaturas de Língua Portuguesa) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.

LEJEUNE, Philippe (2008). O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes; Organização de Jovita Maria Gerheim Noronha. Belo Horizonte: Editora UFMG.

MARINGOLO, Cátia Cristina Bocaiúva (2014). Ponciá Vicêncio e Becos da memória de Conceição Evaristo: construindo histórias por meio de retalhos de memória. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara.

OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva de. “Escrevivências”: rastros biográficos em Becos da memória, de Conceição Evaristo. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-criticos/1732-luiz-henrique-silva-de-oliveira-escrevivencias-rastros-biograficos-em-becos-da-memoria-de-conceicao-evaristo. Acesso em: 16 fev. 2024.

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Como citar:

ARRUDA, Aline Alves.
Becos da memória.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

26 mar. 2025.

Disponível em:

4123.

Acessado em:

19 maio. 2025.