CARNEIRO, Flávio. A confissão. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
Marina Maximiano Ferreira de Souza
Ilustração: Léo Tavares
Uma das principais marcas da obra do escritor Flávio Carneiro (Goiânia, GO, 1962) é a sua versatilidade: o autor transita entre diversos gêneros e públicos. Além de escritor — tendo publicado romances, contos, crônicas, novelas infantojuvenis e ensaios literários —, é roteirista de cinema, crítico literário e professor no Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Entre os prêmios conquistados, destacam-se o Barco a Vapor, em 2007, na categoria Literatura Infantojuvenil, e o Prêmio Jabuti de 2021, com o livro de crônicas Histórias ao redor (Cousa, 2020).
O escritor estreou na cena literária em 1986, com a narrativa infantojuvenil Acorda, Rita!, e na ficção adulta em 1994, com o livro de contos Da matriz ao beco e depois, no qual, ao longo de seus dez contos, a cidade desempenha um papel central. Seu primeiro romance, O campeonato, foi lançado em 2002 pela Editora Objetiva. O romance policial tem como protagonista André, um jovem viciado em romances policiais. Conforme analisado por Teixeira, em “A ficção policial de Flávio Carneiro” (2011), um sonho de André, em que um homem sequestra uma mulher e conta uma longa história enquanto ela está amarrada, antecipa a trama de A confissão (2006), o segundo volume da Trilogia do Rio de Janeiro, que se completa com A ilha (2011).
A obra de Carneiro destaca-se por sua versatilidade, como analisa Marra em “A confissão antropofágica de Flávio Carneiro” (2015), por integrar diferentes gêneros discursivos e adaptar-se às necessidades estéticas do autor. Com pouco mais de duzentas páginas, A confissão vai além do romance policial, mesclando, também, elementos do fantástico, como o vampirismo — elemento central da trama —, a separação entre corpo e alma, e a duplicação de si mesmo, além do terror psicológico. A narrativa também tem traços de um romance autobiográfico com características do “gênero confessional, ainda que às avessas”, como observa Marra. Nesse contexto, o narrador torna-se o “palco de uma busca por si mesmo”.
O título do romance leva o leitor a se perguntar: quem confessa?, o que é confessado?, a quem se dirige essa confissão?, e por que confessar?. Ao longo dos dez capítulos, Carneiro vai gradualmente desvendando as respostas para essas perguntas. A obra destaca-se pela construção em discurso direto, em que apenas uma voz se faz presente: a do sequestrador, um homem adulto sem nome e de idade indefinida, de quem pouco se sabe — sua origem, seu passado, sua família ou até mesmo suas verdadeiras intenções. O narrador dirige-se a uma mulher, sequestrada e amarrada a uma poltrona, em um ambiente descrito como quarto — “as paredes, as janelas, as portas, até mesmo o piso e o teto” são à prova de som —, localizado em uma “praia quase deserta” e com “apenas uma ou outra casa, a uma boa distância”.
Logo na primeira frase, “A senhora me escute, por favor” o silêncio imposto à vítima é também imposto ao leitor. O uso do discurso direto não oferece respiro nem diálogo: é uma fala contínua que domina completamente a narrativa. Essa escolha estilística lembra Grande Sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa, em que o narrador Riobaldo interpela diretamente seu interlocutor: “Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não […]”. De maneira semelhante, o início de A confissão dita o ritmo e os rumos da narrativa para que “seja minimamente agradável”. Enquanto a mulher, sem poder falar, e o leitor, sem poder interferir, são conduzidos por um enredo cheio de mistério e de tensão.
A trama desenrola-se de forma lenta: o narrador começa relatando seus dezenove anos, sua vida precária e sem expectativas, com certa propensão a vagar “pela cidade, flanando”, “um ladrãozinho muito do chinfrim” que roubava livros “de bibliotecas públicas, ou de universidades, vez ou outra arriscava uma livraria também”, enquanto se embriagava com vinho barato, como protagonista flâneur perdido nas ruas do Rio de Janeiro e depois do mundo — Espanha, Portugal, Alemanha, Holanda…—, vagando por sua própria mente e que, à primeira vista, parece não levar a lugar nenhum, mas que gradualmente revelam camadas ocultas de sua personalidade e de sua obsessão: “Andar à toa pela cidade também me dava alguma sensação parecida com alegria, eu me sentia bem ao caminhar a esmo, perambular pelas ruas, olhar vitrines, pessoas, cartazes, às vezes pelo simples prazer físico de andar andar andar até os músculos da perna doerem […]”.
A reviravolta ocorre quando ele encontra Emma, na porta de um “restaurante no Leblon, de nome francês, que imita um bistrô”, e decide convidá-la para almoçar. Sem esse gesto, crucial para a guinada em seu destino, ele acredita que estaria “fadado para sempre à condição de simples admirador, a passar a vida do lado de fora [..]”, gostando “para sempre dos vinhos vagabundos servidos em canecas engorduradas”. Ao longo da narrativa, o protagonista envolve-se com outras mulheres, como a médica Agnes. Segundo Ramos (2013), enquanto seu relacionamento com Emma o faz tomar consciência de sua situação, a conexão com Agnes o ajuda a compreender melhor sua própria identidade. “[Sou] um vampiro, talvez”, admite em certo momento. Contudo, para ele, o rótulo é irrelevante; o que realmente importa é a descoberta de seu “novo lugar no mundo”.
Em A confissão, o narrador do romance estabelece uma dinâmica perversa com suas vítimas: ele retira delas o conhecimento que deseja para si, em troca de oferecer um momento de “prazer supremo”. Ainda que afirme ter amado todas as mulheres com quem se envolveu — “[…] amei todas elas, não se iluda, do meu jeito, sim, mas foi amor” —, ele não sente culpa por explorá-las. Em sua mente, a ausência de culpa é justificada pela certeza de que não era responsável por seus atos. “Tinha certeza de que não era culpado”, ele reflete, comparando sua falta de responsabilidade à mesma que alguém teria “por ter nascido louro ou moreno, alto ou aleijado, por exemplo”. Sua visão de si mesmo como alguém sem limites o leva a se comparar a uma divindade: “Eu me sentia Deus, ou quase […] tudo estava praticamente ao meu alcance, podia ter a mulher que desejasse, podia roubar memórias, passados, sonhos, sensações de toda a espécie, podia obter o que me interessasse, um sorriso, um segredo, uma iluminação”. Com essa visão, o protagonista confunde o poder de manipulação e o controle com prazer e realização pessoal.
A obra de Flávio Carneiro reinterpreta o arquétipo tradicional do vampiro, apresentando-o não como uma criatura que se nutre do sangue alheio, mas sim como um amante com dilemas e inseguranças, oferecendo uma abordagem mais contemporânea ao tema. Nas histórias tradicionais de vampiros, a transformação da vítima em vampiro ocorre após um ataque, marcado pelo consumo de sangue e pela consequente transformação. No entanto, em A confissão, a revelação chega ao protagonista de forma gradual. Ele se depara com a notícia da morte de Emma e a partir daí começa a pesquisar o que estava acontecendo. Carneiro revisita essa ideia da transformação vampírica, oferecendo uma metamorfose menos visível, substituindo a transformação física do protagonista por um processo mais profundo: “Eu passava por uma transformação, [..] não uma transformação meramente física, metamorfose, essas coisas exóticas e estúpidas de histórias fantasiosas, algo de verdade estava se modificando em mim, para sempre […]”. Dessa forma, a obra propõe uma reflexão sobre a dualidade entre o dom e a maldição, simbolizando a busca incessante por identidade e significado.
Para saber mais
MARRA, Fernanda Ribeiro (2015). A confissão antropofágica de Flávio Carneiro. Dissertação (Mestrado em Letras e Linguística) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia.
RAMOS, Juliana Silva (2013). O vampiro é o leitor: o processo de vampirização do leitor na literatura fantástica. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
ROSA, João Guimarães (2019). Grande sertão: veredas. 22. ed. São Paulo: Companhia das Letras.
SILVA, Vera Maria Tietzmann (2013). A confissão, ou um vampiro carioca. In: Quatro ficcionistas goianos: José J. Veiga, Jesus de Aquino Jaime, Flávio Carneiro e Adelice da Silveira Barros. Goiânia: Kelps. Disponível em: https://www.flaviocarneiro.jiap.com.br/comentarios/confissoesdeumvampirocarioca.html. Acesso em: 04 jan. 2025.
TEIXEIRA, Gismair Martins (2019). A ficção policial de Flávio Carneiro. Rio de Janeiro. Disponível em: https://flaviocarneiro.jiap.com.br/wp/2019/05/31/a-ficcao-policial-de-flavio-carneiro/. Acesso em: 13 out. 2024.
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