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A obscena senhora D

HILST, Hilda. A obscena senhora D. São Paulo: Massao Ohno, 1982.

Gabriel Pinezi
Ilustração: Léo Tavares

Após sua morte, a escritora paulista Hilda Hilst (Jaú, SP, 1930 – Campinas, SP, 2004) tornou-se internacionalmente reconhecida como uma das mais importantes autoras da literatura brasileira contemporânea. Mesmo tendo escrito peças de teatro bem recebidas, foi aclamada especificamente pelas narrativas herméticas e experimentais e por sua primorosa modernização da lírica medieval. Em vida, no entanto, costumava reclamar publicamente da pouca atenção dada a ela pela crítica especializada ou pelo grande público, que a conhecia menos por lê-la e mais pelas extravagantes anedotas biográficas: uma “quase” noite de amor com Marlon Brando; uma vida reclusa entre cães na famosa Casa do Sol; os sete anos que passou gravando vozes inexplicadas pela ciência que, para ela, vinham do “além”.

À primeira vista, um olhar treinado tenderia a reconhecer nessa imagem o exagero típico de lenda. Afinal, seria fácil demais aceitar uma biografia tão afim ao estilo literário de Hilst, marcado pelo despojamento tragicômico, pelo humor ácido, pela obscenidade deslavada e pela insana busca pelo sentido das coisas invisíveis. Mas não se trata, nesse caso, de forçar a barra, pois Hilst era (mesmo!) uma figura ímpar. Certa vez, o poeta Claudio Willer contou em palestra que seu colega de versos Roberto Piva ia à casa de Hilst para discutirem ufologia e vida extraterrestre madrugada adentro. Um espectador perguntou, estupefato: “mas eles levavam isso a sério?” E Willer, antes que a pergunta pudesse dissipar-se no silêncio: “Sim! Seríssimo”.

Embora nunca tenha se aventurado pela autobiografia ou pela autoficção, o amálgama entre ficção e vida é um traço característico da obra de Hilst que a alinha a uma tradição romântica que não é a brasileira dos indianismos nacionalistas, mas a filosófica-existencial de um F. Schlegel. Como não reconhecer na busca fragmentária de seus personagens pelo saber absoluto a obsessão da própria Hilst, cuja vida foi dedicada quase exclusivamente à escrita de sua obra? Tudo o que indicasse a existência de um “outro” mundo, de um “além” ainda não experimentado ou não cognoscível, interessava não apenas à escritora reclusa, mas também às inúmeras personagens filosofantes que habitam sua ficção.

A leitura de A obscena senhora D., novela publicada originalmente em 1982, revela o inequívoco caráter filosófico da obra: quando se lê a narração da personagem principal, Hillé, quase que se ouve a voz da própria Hilst enunciando as infinitas perguntas sem respostas que se acumulam página a página, como que caídas abruptamente de um altíssimo guindaste idealista sobre a oca materialidade deste mundo. De novo, não se trata de exagero: para uma novela de pouco mais de 80 páginas, são exatos 335 pontos de interrogação.

Se se levam em consideração apenas as ações, o enredo de A obscena senhora D. é de uma chocante simplicidade: uma mulher sexagenária, Hillé, relembra vivamente os diálogos que tinha com seu marido morto, Ehud, de quem tenta inutilmente fazer o trabalho de luto. Nesses diálogos com um morto, a morte mesma torna-se o tema reiteradamente perguntado: “um dia vou compreender, Ehud | compreender o quê? | isso de vida e morte, esses porquês”. A complexidade do enredo, portanto, não é propriamente a da intriga, da causalidade dos fatos, mas mais exatamente a da experiência de um mistério: trata-se de uma busca pelo inalcançável sentido da vida, ou como quer Hillé: “uma aventura obscena, de tão lúcida”.

Em suas memórias, Hillé se descreve como marcada pela espera dessa compreensão impossível, submetida à experiência ascética de exílio do mundo enquanto mora debaixo de uma escada. Ao esperar, rejeita sistematicamente as investidas sexuais de seu marido, nostálgico por amá-la carnalmente, como faziam quando jovens. De fato, as passagens mais cômicas da prosa de Hilst decorrem precisamente dessa marcante incomunicabilidade entre os dois personagens, que se multiplica nas inúmeras oposições binárias que estruturam a novela: se Ehud é homem, Hillé é mulher; se Ehud traduz do hebraico “amor”, Hillé traduz do grego antigo “a matéria”; Ehud vê o mundo de forma simples, é pragmático, não questiona os porquês, e Hillé questiona tudo, histeriza a verdade, destrona os saberes, abdica das ações em nome da mera contemplação.

Em resumo: Ehud é um triste comum, conformado com as nítidas fronteiras entre a vida e a morte, enquanto Hillé é uma melancólica que se entende desde sempre como o Lázaro sobrevivente: viva, mas prenhe de morte. Por isso, lamenta debaixo da escada (como Dante na selva escura, ou Hamlet numa cova, ou Fausto em seu estúdio, ou Baudelaire nas ruas de Paris…) a inevitável e aterrorizante passagem do tempo, cujo mistério é, ao mesmo tempo, obscuro e claro, evidente e incognoscível. Afinal, nada é tão certo e lógico quanto a morte: todo homem é mortal, Sócrates é homem, logo… o que mesmo é a morte?

Tempo e morte são as duas palavras-chave da novela, que se misturam com o antiquíssimo topos melancólico do Chronos-Saturno que devora os próprios filhos: se a divindade deu aos homens a vida, foi apenas para poder, em seguida, violentamente retirá-la. É a constatação dessa ambivalência que motiva o “querer falar” obsessivo de Hillé: “queria te falar, te falar da morte de Ivan Ilitch, da solidão desse homem, desses nadas do dia a dia que vão consumindo a melhor parte de nós, queria te falar do fardo quando envelhecemos, do desaparecimento, dessa coisa que não existe mas é crua, é viva, o Tempo.” Do outro lado dessa lamúria infinita, desse desejo de inominável, Ehud aparece como um homem de quereres simples, carnais, frustrados porque bem definidos: “foder, ouviu Hillé? te amo, ouviu? antes de você escolher esse maldito vão da escada, nós fodíamos, não fodíamos Senhora D.?”.

Se Bakhtin tivesse lido a A obscena senhora D., teria certamente criticado a falta de ancoragem histórica e social dos personagens, a limitada descrição do espaço, o fluxo narrativo que corrói as fronteiras entre as vozes em vez de demarcá-las nitidamente. Digamos que não se trata de um romance polifônico, que comporta uma pluralidade de posições ideológicas, mas – forçando uma expressão pouco aproveitada pela teoria literária – de uma narrativa “disfêmica”, na qual o diálogo fantasmático entre a velha louca Hillé e seu marido morto Ehud é marcado por gaguejos: repetições, cacofonias, iterações que giram em falso em torno de um ponto em si mesmo irrepresentável.

Se Jakobson dizia que a poeticidade de um texto é reconhecível pelos paralelismos, pelas estruturas circulares, pode-se então reconhecer o poético na prosa de Hilst não apenas no emprego engenhoso das metáforas, na esmerada construção do ritmo e no uso deliberado de assonâncias, aliterações e rimas, mas também em sua estrutura narrativa circular: se há um fluxo de consciência em Hilst, ele não é aquele prosaico que escapa em linha reta pela tangente, fugindo de seu centro, e sim aquele que gira em torno de um vazio inalcançável. Trata-se de uma escrita orbital: por cair infinitamente, não pode efetivamente cair.

Não é exagero dizer, portanto, que a estrutura narrativa de A obscena senhora D. é idêntica à da famosa peça de Samuel Beckett, Esperando Godot: em ambas as obras, os personagens “esperam” por aquele que nunca se apresenta e, no entanto, retorna insistentemente como assunto, tema, vazio central; em ambos, o reconhecimento do absurdo desemboca num riso triste e numa tragédia cômica. Se, às vezes, o leitor se pega gargalhando com o livro de Hilst na mão, é porque escorregou na casca de banana do desespero e acabou caindo com a boca escancarada cheia de dentes no vazio da existência.

Mas, enquanto na peça de Beckett a profecia de Zaratustra se cumpre integralmente, em Hilst, a negatividade de Deus é sentida menos como morte e mais como abandono: o outro nome de Hillé é D., de Deus, mas também de “Derrelição”: “daqui por diante te chamo A Senhora D. D de Derrelição, ouviu? Desamparo, Abandono, desde sempre a alma em vaziez”. A crítica talvez não tenha ainda se atentado para a importância desse amor ambivalente de Hillé por Deus, que se expressa na estrutura narrativa da novela como o talvez mais extravagante dos triângulos amorosos da literatura brasileira: lá em cima, no topo, o Deus-menino-porco indiferente à humanidade; na base, de um lado, a pobre Hillé abandonada por seu amado Deus inatingível e, do outro, o lamento do pobre Ehud corneado, incapaz de tocar sua amada e louca esposa: “eu um homem te tocando porque te amo e porque o corpo foi feito para ser tocado, toca-me também sem essa crispação, é linda a carne, não mete o Outro nisso, não me olhes assim, o Outro ninguém sabe, Hillé”.

Não é certo que Hilst tenha sido justa ao reclamar que, apesar de famosa, era pouco lida, já que podemos encontrar entre 1989 e 2004 várias dissertações e teses versando sobre sua ficção, além de inúmeros artigos acadêmicos que tentavam decifrar o hermetismo de suas narrativas — um hermetismo que, diga-se de passagem, se esclarece relativamente bem quando se conhece a obra de Ernest Becker, a quem Hilst dedicou A obscena senhora D. É mais provável que ela tivesse percebido que a ânsia metafísica característica de sua obra gerava resistência por parte de um público acostumado com uma literatura que se acreditava tão mais brasileira e inteligível quanto mais flertasse com a estética realista ou com o romance social, ao modo de um certo Graciliano Ramos e de todo Jorge Amado.

Fugindo dessa tradição, tal como Clarice Lispector e Machado de Assis, Hilst é um caso atípico no cânone da literatura brasileira, por ter forçado o mais alto reconhecimento de uma crítica especializada tão avessa à ironia, ao hermetismo, à obscenidade e ao ímpeto tragicômico. Sua leitura, hoje, como em sua época, serve de antídoto às tendências mais moralizantes e realistas que sempre dominaram o sistema literário brasileiro. Os críticos continuam bestas, sem compreendê-la integralmente, é verdade; mas não seria isso, ainda, compreendê-la bem?

Para saber mais

ANDRÉ, Willian (2016). Entre gaguejos: Hilst, Beckett e os limites da linguagem. Tese (Doutorado em Letras — Estudos Literários) — Universidade Estadual de Londrina, Londrina.

FOLGUEIRA, Laura Santos (2018). Eu e não outra: a vida intensa de Hilda Hilst. São Paulo: Tordesilhas.

DINIZ, Cristiano (org.) (2013). Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst. São Paulo: Globo.

PÉCORA, Alcir (org.) (2010). Por que ler Hilda Hilst. São Paulo: Globo.

PÉCORA, Alcir (2018). Notas sobre a fortuna crítica de Hilda Hilst. Disponível em: https://unicamp.br/unicamp/sites/default/files/2018-07/Notas_sobre-a-Fortun-critica_Hilda-Hilst.pdf. Acesso em: 14 out. 2024.

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Como citar:

PINEZI, Gabriel.
A obscena senhora D.

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literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

26 mar. 2025.

Disponível em:

4169.

Acessado em:

19 maio. 2025.