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A casa das sete mulheres

WIERZCHOWSKI, Leticia. A casa das sete mulheres. Rio de Janeiro: Record, 2003.

Sheila Jacob
Ilustração: Dona Dora

A casa das sete mulheres é um romance histórico que se passa na Região Sul do Brasil durante a Guerra dos Farrapos, ocorrida entre 1835 e 1845. Escrita pela gaúcha Leticia Wierzchowski (Porto Alegre, RS, 1972) e publicada em 2002, a trama foi adaptada para uma minissérie da Rede Globo um ano após seu lançamento, e foi veiculada em mais de quarenta países, tornando o livro um grande sucesso editorial. O romance integra uma trilogia, composta por Um farol no pampa, de 2004, e Travessia, de 2017. Além desses três títulos, a escritora possui mais de trinta obras publicadas, inclusive livros infantojuvenis. Em 2023, foi publicada pela Maralto, uma versão em quadrinhos do romance, em adaptação assinada pela autora e por Verônica Berta.

Segundo a autora, a ideia para a escrita do livro surgiu após a leitura do romance Os varões assinalados (1985), de Tabajara Ruas, que apresenta as revoltas farroupilhas por meio de uma abordagem épica, tal como anunciado pelo título, com foco nas batalhas e tendo como protagonistas os homens e generais daquele período, como Bento Gonçalves da Silva e Antônio de Souza Netto. Em dado momento da obra, cita-se a “casa das sete mulheres”, uma referência à Estância da Barra, à beira do rio Camaquã, onde por uma década ficaram abrigadas as irmãs, a esposa, as filhas e as sobrinhas de Bento Gonçalves. Foi a partir dessa menção que a autora optou por narrar a guerra não do tradicional ponto de vista masculino, mas a partir de uma perspectiva marginal, historicamente silenciada, e por um viés romantizado: a das mulheres enclausuradas, fadadas a aguardar por notícias e rezar pela volta de seus parentes, tal qual Penélope espera o retorno de Ulisses, analogia explicitamente referenciada no romance: “Sim, sempre os homens se vão, para as suas guerras, para as suas lidas, para conquistar novas terras, para abrir os túmulos e enterrar os mortos. As mulheres é que ficam, é que aguardam”.

Após uma espécie de prólogo, que contextualiza o enredo e apresenta as principais justificativas para a eclosão da chamada “Revolução Farroupilha no Continente de São Pedro do Rio Grande”, a primeira voz que se anuncia é a de Manuela, cujos registros em primeira pessoa inscritos em seus cadernos se revezam com a voz de um narrador onisciente. Sobrinha de Bento Gonçalves, nos diários ela apresenta a sua perspectiva particular daquela experiência coletiva, contando suas premonições, narrando os fatos históricos e avaliando os acontecimentos de que, à distância, se faz testemunha, graças às visitas e às cartas que chegam ao local em que estava reclusa com a família. “Restei eu, como um fantasma, para narrar uma história de heróis, de morte e de amor, numa terra que sempre vivera de heróis, morte e amor. Numa terra de silêncios, onde o brilho das adagas cintilava nas noites de fogueiras. Onde as mulheres teciam seus panos como quem tecia a própria vida”, conforme registro no “Cadernos de Manuela”, Pelotas, 4 de junho de 1900.

Manuela inicia seus relatos com a chegada do ano de 1835, logo apresentando os membros da família que serão acompanhados ao longo das páginas seguintes: a mãe, Maria Manuela; as tias, Antônia, Ana Joaquina e Caetana, sendo esta a esposa uruguaia de Bento Gonçalves; as irmãs, Rosário e Mariana, as duas personagens fictícias da trama que, com Manuela, completam o time das “sete mulheres”. Há, ainda, o irmão Antônio; os primos Pedro, José, Joaquim, Bento Filho e Caetano; além dos primos mais novos, dos empregados e dos negros escravizados que servem à família, estes sem grande destaque no enredo. Segundo a narradora, havia, naquele momento, um clima tenso, de insatisfação com o Império, principalmente devido às altas taxas impostas pelo governo ao charque nacional, que reduzia o lucro dos latifundiários do Sul do país. A narrativa começa, então, com um presságio de sangue e morte, contrastando com a noite de festa em que se davam as boas-vindas ao Ano-Novo. “Como não percebem?”, questiona a jovem, prevendo a temporada de sofrimentos e perdas naquele ano que se inaugurava.

Na cena inicial, a chegada da família à Estância da Barra apresenta o retrato de um Brasil escravocrata, patriarcal e profundamente desigual ao mencionar a opulência da família e sua relação com os negros explorados pela família, mostrando como os primeiros homens que se mobilizaram contra o governo central pertenciam às classes abastadas e tinham inicialmente o interesse de manter seus privilégios. “Naquela mesma tarde (de dezenove de setembro de 1835), chegariam para longa estada as sete mulheres da família, carregadas com suas mui extensas bagagens, com as suas negras de confiança, criadas e amas-de-leite, pois junto vinham, em alegre confusão, os quatro filhos pequenos de Bento Gonçalves e Caetana, sendo que Ana Joaquina, a mais pequenina de todos, estava para completar seu primeiro ano por aqueles dias, e ainda mamava na teta da negra Xica”. Depois, com o tempo, outras demandas se vão somando à causa, como anseios republicanos e abolicionistas.

Ao longo do texto, há uma certa naturalização da relação entre os senhores com os personagens escravizados, especialmente quando se trata da violência sexual e do machismo historicamente presentes na relação com as meninas mais novas, embaçando a imagem idealizada do herói farroupilha que muitas narrativas procuram sustentar. Lê-se, por exemplo, nas páginas iniciais: “Encontrou Bento Gonçalves sentado na varanda, tomando um mate. […] Ainda há pouco vira passar uma cabocla que trabalhava na casa, uma rapariga duns quinze, dezesseis anos, no más, e estava pensando o quanto era apetitosa uma carne jovem daquelas, de moça virgem, que cheirava a coisa nova”. Mais à frente, a constatação: “Bento Gonçalves da Silva não era perene, não era um deus e nem possuía qualquer arremedo de divindade – era, como nós, mortal, sofredor, um iludido com a vida”.

A obra estrutura-se a partir de uma extensa pesquisa documental, repleta de referências a acontecimentos históricos que suspendem temporariamente o foco no que se passava naquela “vida coletiva e feminina”, típica dos membros da elite da época, dentro da “casa das sete mulheres”. Narram-se as muitas batalhas que compõem historicamente a Guerra dos Farrapos, como o cerco a Porto Alegre; a proclamação da República Rio-Grandense em 1836, também conhecida como República de Piratini; a prisão e a fuga de Bento Gonçalves; a tomada de Laguna (SC) e a instauração da República Juliana; a derradeira batalha de Porongos, “a última grande tragédia daquela guerra”; e a morte dos Lanceiros Negros, grupo de soldados negros escravizados que se somou aos revoltosos graças a uma promessa de alforria nunca cumprida.

A chegada de Giuseppe Garibaldi também é narrada no livro, com foco na paixão de Manuela por ele, sentimento sempre referenciado em seus relatos íntimos e que a acompanharia até o fim da vida. Segundo crônicas da época e registros históricos, ela ficou conhecida em Pelotas como a “noiva de Garibaldi”, mesmo depois de o italiano ter se casado com Anita, a brasileira que participou ativamente das batalhas ao lado dos revoltosos e sobre quem, em carta endereçada por José para a mãe D. Ana, conta-se que “muito lutou, tão bravamente como um homem. Já se fala nas ruas de sua coragem excepcional”.

Às vitórias e pequenas conquistas dos republicanos sucediam derrotas e perdas importantes, tanto de lutadores quanto do apoio das populações que habitavam os lugares tomados pelos revoltosos, como observado por D. Ana: “Às vezes, afigurava-lhe, no entanto, que estavam construindo castelos sobre a areia. Num sopro de brisa, tudo desandava sem solução”. Manuela chega a perguntar: “Por que se lutava e por que se morria? Nunca hei de sabê-lo. E nenhum regime sob o céu me haverá de justificar esta guerra”. Seis anos depois de iniciada a revolta, novamente a jovem questiona: “De que tinham valido todos aqueles anos? O Continente estava empobrecido, tantos dos seus tinham morrido, outros pereciam à míngua, e a guerra permanecia como uma nuvem de tempestade sobre a cabeça de todos”.

Para além dos campos de batalha, pequenos acontecimentos interrompem a monotonia da espera feminina, como a chegada de mensageiros e a visita surpresa de membros da família; as músicas tocadas ao piano e as festas que suspendem temporariamente a atmosfera de guerras; o nascimento das filhas de Perpétua; e alguns relacionamentos amorosos que principiam e outros que chegam a se concretizar, como a relação entre Mariana e um dos peões da fazenda, chamado João Gutierrez, de quem a jovem chega a engravidar, colhendo o desprezo da mãe como consequência. Uma das tramas mais interessantes, que imprime um tom de realismo mágico à história, são as recorrentes visitas espectrais do jovem uruguaio Steban para Rosário, na biblioteca da fazenda. Ele é uma espécie de fantasma, ou alucinação, por quem a jovem se apaixona. Ferido na testa, a imagem sempre demonstra pavor e desaparece quando é mencionado o nome de Bento Gonçalves, dando a entender que consiste em uma de suas vítimas de tempos atrás, durante a Guerra da Cisplatina. Essas aparições recorrentes borram os limites entre realidade e imaginação na trama, assim como o próprio romance que se tem em mãos.

A casa das sete mulheres, assim como as suas continuações, possibilita que os leitores, principalmente aqueles que não são da Região Sul do Brasil, conheçam capítulos importantes da história do país por meio de uma narrativa ficcional que preenche com criação estética e linguagem literária as lacunas deixadas por referências documentais.

Para saber mais

LACERDA, Denise Pérez (2006). Do imaginário o real: a história (re) contada em A casa das sete mulheres. Dissertação (Mestrado em História da Literatura) – Fundação Universidade do Rio Grande do Sul (FURG), Porto Alegre.

MAESTRI, Mário (2004). As Sete Mulheres e as Negras sem Rosto: Ficção, História e Trivialidade. Cadernos IHU Ideias, São Leopoldo, ano 2, n. 17, p. 1-24. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/images/stories/cadernos/ideias/017cadernosihuideias.pdf. Acesso em: 24 out. 2024.

RUAS, Tabajara (1985). Os varões assinalados. Porto Alegre: L&PM.

WIERZCHOWSKI, Leticia; BERTA, Verônica (2023). A casa das sete mulheres. São Paulo: Maralto.

ZATI, Jhonatan (2021). Literatura e história em A casa das sete mulheres, de Leticia Wierzchowski. Revista Fórum Identidades, Itabaiana, v. 33, n. 1, p. 101-112. Disponível em: https://periodicos.ufs.br/forumidentidades/article/view/15498. Acesso em: 24 out. 2024.

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Como citar:

JACOB, Sheila.
A casa das sete mulheres.

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literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

27 mar. 2025.

Disponível em:

4151.

Acessado em:

19 maio. 2025.