ACIOLI, Socorro. A cabeça do santo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
Raíssa Abreu Gomes
Ilustração: Guilherme Franzoni
O Brasil esconde histórias que até Deus duvida. Abundam, por exemplo, vestígios de obras anunciadas com fins eleitoreiros, iniciadas sem o planejamento adequado e fatalmente largadas pela metade. Imagine-se, pois, que a obra abandonada em questão é uma estátua de vinte metros de altura do santo padroeiro de uma cidade do interior do Nordeste e que o abandono resultou em ser o corpo do santo deixado acéfalo por mais de trinta anos no topo de um morro, a poucos quilômetros de sua cabeça decepada. Ao ler sobre a inusitada história real da cidade de Caridade, no Ceará, a escritora Socorro Acioli (Fortaleza, Ceará, 1975) se viu diante dos elementos para construir uma narrativa fantástica à brasileira. Foi o que fez em A cabeça do santo (Companhia das Letras, 2014).
Acioli, que é jornalista, tradutora e autora de mais de vinte obras publicadas em diversos gêneros, como romances, literatura infantojuvenil e biografias, tem predileção pela cultura popular do interior do Ceará. O misticismo local já havia aparecido em suas histórias e voltaria a surgir em Oração para desaparecer (Companhia das Letras, 2023). Contudo, foi com A cabeça do santo que a autora, vencedora do Prêmio Jabuti na categoria infantil em 2013 com Ela tem olhos de céu (Gaivota, 2012), se tornou conhecida no Brasil e no mundo — o romance já foi traduzido para o inglês e o francês.
Após a pesquisa em Caridade, Acioli apresentou a ideia que inspirou A cabeça do santo ao escritor colombiano Gabriel García Márquez, e pôde desenvolvê-la na última oficina de escrita ministrada pelo Nobel de Literatura, em 2006, em Cuba. É a García Márquez que o romance é dedicado e parece vir dos mundos mágicos que ele criou algo da solidão que assola Candeia, a cidade que se acredita amaldiçoada pelo santo degolado, na fábula da escritora.
É rumo a essa Macondo cearense que caminha o jovem Samuel, maltrapilho e esfomeado, por uma estrada cheia de romeiros de Padre Cícero e São Francisco. O que o guia, porém, não é a fé, mas um compromisso firmado no leito de morte de sua mãe, Mariinha: ela o fizera prometer que procuraria pela avó e pelo pai que ele nunca havia conhecido e que acenderia três velas aos santos de sua devoção. Samuel não acreditava em santo algum e tinha ódio do pai, Manoel, pois, imaginava que o pai tinha abandonado a mãe. É assim que Samuel chega a uma Candeia quase deserta e procura pela casa da misteriosa avó, D. Nicéia. Ela, no entanto, não permite que o rapaz entre na casa e o expulsa dali.
Atacado por cães do mato, ele acaba, então, encontrando abrigo no que à noite lhe parecia uma gruta. Porém, ao ser despertado às cinco da manhã por um vozerio de mulheres rezando — e elas rezavam muito, afinal, “[…], no sertão, mulher que não casa é mandacaru sem flor” —, Samuel se dá conta de que a tal gruta em que havia dormido era, na verdade, nada menos que a cabeça oca da estátua degolada de Santo Antônio, do topo do morro, e que, dentro dela, podia ouvir as preces que eram dirigidas ao santo pelas mulheres da cidade, pedindo casamento. “Uma cabeça de santo. Mesmo coberta de plantas, via-se que o nariz era grotesco, dois buracos enormes, boca pra cima, lábios grossos, fechados, olhos esbugalhados, expressão séria […]. Aquilo era delírio, ele pensava. Mordida de cachorro louco, enlouquecera também”.
Apesar do susto inicial, Samuel, que passara a vida vendendo chapéus aos romeiros de Padre Cícero em Juazeiro com a mãe, não demora a perceber que pode tirar alguma vantagem de sua nova situação. Então, com a ajuda de Francisco, o filho do coveiro que costumava buscar a privacidade da cabeça para ver revistas pornográficas, ele começa a identificar as vozes que se dirigiam ao santo e a agir em nome dele para facilitar a união dos casais locais. Faz-se o primeiro casamento — ou “milagre” — entre a filha da dona da bodega e o doutorzin, e o segundo, e o terceiro. A fama do mensageiro de Santo Antônio rapidamente se espalha e eis que Candeia, de cidade esquecida por Deus, se torna ponto de turismo religioso. “Candeia renasceu. Voltou à vida pelas mãos das mulheres com sua fé, fazendo novena ao redor da cabeça do santo, acendendo velas, rezando dia e noite e esperando uma oportunidade de falar com o mensageiro. Queriam casar”.
O renascimento de Candeia, porém, e todo alvoroço gerado pelos milagres de Samuel, causam a fúria daqueles para quem a morte da cidade era um bom negócio. Para esses, é preciso que o rapaz desapareça — como desaparecera, anos antes, seu pai Manoel, uma figura que, conforme Samuel descobre, é chave para entender o mistério que ronda a estátua e a cidade.
Apesar da influência de García Márquez e seus contemporâneos da América Latina no que se refere à representação da cultura popular no continente, a própria Socorro Acioli entende que o termo realismo mágico se refere a um movimento literário específico e aos autores que o protagonizaram. Em sua análise de A cabeça do santo, Saulo Barbosa (2024) opta pelo uso do termo “realismo maravilhoso”, gênero caracterizado pela naturalização de acontecimentos insólitos, entendidos como fatos corriqueiros em narrativas marcadas pela religiosidade e pela mitologia. “[…] os fatos sobrenaturais que ocorrem durante a narrativa são validados pelas crenças religiosas dos personagens. Além disso, a obra apresenta um sertão que, apesar de ficcional, tem raízes imbricadas na realidade, mesclado ao componente místico proporcionado pela religiosidade popular”.
Em A cabeça do santo, o efeito provocado pelo insólito é a comicidade: o humor é uma das principais marcas da narrativa de Socorro Acioli. No romance, as moças que se dirigem a Santo Antônio são insistentes ao ponto de causarem “crises de enxaqueca” que fazem tremer o abrigo de Samuel. E ai do santo se não atender aos seus pedidos: sua imagem vai parar debaixo da cama, debaixo da terra, dentro do balde d’água. E de cabeça para baixo! A pesquisadora Edna Polese explica que, desde a colonização, as formas de vivenciar o catolicismo na América Latina sempre estiveram muito ligadas à intimidade, para desespero das autoridades da Igreja. “Uma população já numerosa e dispersa, com poucos padres para tomar conta das ovelhas, vivenciava essa religiosidade sem se dar conta de que algo tão cotidiano como jurar pelo santo já poderia ser considerado blasfêmia”.
O humor também confere fluidez a um texto rico em construções poéticas e fortemente marcado pela prosódia nordestina, que lembra os grandes narradores da região. Impossível não pensar na dupla de malandros João Grilo e Chicó, imortalizada em O auto da compadecida, obra cinematográfica, adaptação do livro homônimo de Ariano Suassuna, publicado em 1955, ao acompanhar as aventuras de Samuel e Francisco: “Estudavam os planos, faziam projetos de ganhar dinheiro explorando o descanso do santo, que deixou o rádio do seu pensamento ligado para Samuel escutar. Iam fazer estrago em Candeia. Riam das desgraças, suas e dos outros. Desgraça é tudo coisa de se rir”.
A cabeça do santo é, sobretudo, uma história de esperança. Ao transformar o insólito em literatura, Socorro Acioli coloca em evidência o cotidiano mágico do sertão, cuja diversidade de crenças e influências culturais não pode ser mapeada pelos instrumentos da razão. Nesse universo de gente sofrida e sonhadora, se a mistura da fé de muitos com a ganância de poucos nunca concorre para o bem comum, a inventividade e o desejo de viver, apesar de tudo, podem fazer milagres.
Para saber mais
BARBOSA, Saulo da Silva (2024). O insólito no sertão contemporâneo: elementos do realismo maravilhoso em A cabeça do santo de Socorro Acioli. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Letras/Português) – Universidade Federal de Campina Grande, Cajazeiras. Disponível em: http://dspace.sti.ufcg.edu.br:8080/xmlui/handle/riufcg/38211. Acesso em: 13 out. 2024.
BEZERRA, Viviane Santos (2024). Entre estátuas, estradas e estruturas, o (extra)ordinário: a universalização da cultura popular em A cabeça do santo. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Estadual de São Paulo, Assis. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/items/11da73ba-c2c0-4f69-b127-926f6c0c548a. Acesso em: 13 out. 2024.
BRITO, Thaís (2023). Cabeça gigante de Santo Antônio vai virar filme brasileiro; conheça a história. Portal G1 Ceará. Disponível em: https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2023/09/17/cabeca-gigante-de-santo-antonio-vai-virar-filme-brasileiro-conheca-a-historia.ghtml. Acesso em: 13 out. 2024.
POLESE, Edna da Silva (2021). O fantástico e o humor na religiosidade: uma leitura da obra A cabeça do santo, de Socorro Acioli. Revista Graphos, João Pessoa, v. 23, n. 1, p. 115-132. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/graphos/article/view/58662. Acesso em: 13 out. 2024.
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