NEJAR, Carlos. Um certo Jaques Netan. Rio de Janeiro: Record, 1991.
Carolina Montebelo Barcelos
Foto: Regina Dalcastagnè
Luiz Carlos Verzoni Nejar (Porto Alegre, RS, 1939), conhecido no meio literário como Carlos Nejar, é poeta, romancista, crítico literário e tradutor, ocupante da cadeira número 4 da Academia Brasileira de Letras desde 1988. Por sua profícua produção poética, cujo início data de 1960, é chamado de o “poeta do pampa brasileiro”. Em 1991, publicou seu primeiro romance, por vezes também considerado uma novela – muito em função de sua extensão breve – Um certo Jaques Netan.
O romance é dividido em cinco capítulos sem títulos, com número variado de fragmentos em cada um. Trata-se de uma narrativa não linear e monofônica, uma vez que o foco é no personagem Jaques Netan; os outros personagens raramente mencionados são Tamisa, sua esposa, e Cristiana, sua filha. Embora a voz narrativa seja heterodiegética, ou seja, o narrador não participa efetivamente da história, a professora e pesquisadora Marcele Franceschini observa que mesmo ausente esse narrador exprime a sensação de fragilidade e de isolamento que circunda o protagonista.
Jaques Netan é um médico e as poucas passagens no romance que tangenciam o real mencionam, por exemplo, seu consultório, clientes, ou o relacionamento com Tamisa. A memória do protagonista sobre como conheceu Tamisa, sua descrição dos atributos físicos da amada, os anos que passaram juntos e a vinda da filha Cristiana marcam os poucos momentos de brandura do romance.
No mais, a obra se insere em um universo onírico e, tal como no sonho, a narrativa é fragmentária, carregada de simbologias. Também o narrador evoca os sonhos do protagonista, desde aqueles prazerosos ou que suscitam curiosidade e que iniciam o romance, dos quais ele não quer sair, passando pelo afastamento do plano terreno com “Não mais sonhava, pois tudo era sonho”, até chegar ao pesadelo e, a partir de então, não querer mais sonhar.
O sonho é uma das imagens que atravessam o romance; outra imagem é a do espelho. O espelho, para o protagonista, serve como metáfora do tempo: “Verificável pela oscilação das imagens”; reflete uma imagem ou a esconde. Também, o espelho, para além de refletir – ou esconder – uma imagem, adquire camadas: “Os espelhos nos captam os olhos, que também são espelhos. Em outro mais dentro ainda”, igualmente, são capazes de se aprofundar no ser que reflete, pois “não sabem como somos, mas como sonhamos”. Assim, essas duas imagens, a dos sonhos e a dos espelhos, que também são encontradas na poética do autor, algumas vezes se interseccionam no romance.
Uma terceira imagem recorrente em Um certo Jaques Netan é o muro. Tal qual o espelho, o muro faz parte do universo onírico do romance – “o muro se fora armazenando no sonho de Jaques” – , tangenciando o pesadelo do protagonista. O muro é símbolo da opressão e da repressão. Em certo momento do romance, Jaques Netan ouve no rádio que o país estava sob Lei Marcial, o governo civil havia sido deposto e uma junta militar estava agora no comando. Um cartaz avistado pelo protagonista avisava que os cidadãos deveriam servir ao governo, que a este se reservava o direito de vida e morte sobre todos e, mormente, que “o muro é o tributo que o Novo Regime impõe” e, ainda, que “os que obedecerem ao muro, florescerão junto a ele”.
Logo o muro ganha grandes proporções, avança, e por desobediência a ele cidadãos são fuzilados. Jaques Netan encara a recém-empossada junta militar com indignação e, portanto, é avesso ao muro, por isso o muro é seu pesadelo. Para ele, “A Lei Marcial e o muro são muitos mortos juntos”. Dessa forma, o muro age no romance como alegoria de uma ditadura militar. Assim como ocorreu no Brasil de 1964 a 1985, em Um certo Jaques Netan, o governo pratica a censura à imprensa, persegue, prende e assassina quem não se alinha a ele e, por meio de coações e torturas, chega aos opositores através das delações.
O muro, símbolo da tirania, do terror do regime que se impõe, toma a casa de Jaques Netan e, assim, ele é amarrado e preso. O protagonista havia sido delatado. Mas não se resigna e promete, em um bilhete, resistir com seus companheiros. Porque, para Netan, a palavra é resistência, é o que nunca irá ruir em meio ao terror e à iminência da morte. Netan não se sente derrotado e não se mostra abatido, pois tem a força da palavra.
Embora não haja qualquer referência ao Brasil, mas a um “País”, visto que “Jaques não tinha pátria”, é possível fazer a analogia do romance com a Ditadura (1964-1985) ocorrida no Brasil. A imprecisão do título do romance – “um certo” – já acena para essa despretensão de se orientar pelo real. Desse modo, ao escrever as histórias de Jaques Netan, Carlos Nejar traz à tona um passado recente do Brasil por meio de símbolos e alegorias.
Em Um certo Jaques Netan, Nejar realiza um exercício de intertextualidade, pois são diversas as citações no romance. Há referências, por exemplo, à Baleia Branca e a Ahab, de Moby Dick, em que o autor compara a Baleia Branca, que no romance de Herman Melville mutilou a perna de Ahab, com o “muro”. Tal qual Ahab, Netan quer se vingar da Baleia Branca-muro. Podem ser vistas também citações diretas, como as de um Canto do “Inferno”, da Divina Comédia (Dante Alighieri): “Tinham de sangue os rostos salpicados, que lhes caía ao peito e aos pés também”. Nessa passagem, mais uma vez, a referência é ao muro, local onde eram realizadas as execuções.
Outros exemplos de citações vão de Romeu e Julieta (William Shakespeare), do poema La sangre derramada (Federico García Lorca) ao Eclesiastes do Antigo Testamento, além de alusões a imagens utilizadas como alegorias, caso da referência ora direta ora indireta à pintura de Van Gogh, Campo de trigo com corvos. Vale também notar outras citações que podem remeter ao próprio Carlos Nejar, como a Jorge Luis Borges e Fernando Pessoa, ambos iniciaram a vida literária escrevendo poesias e posteriormente voltaram-se também para a prosa.
Uma das citações à supracitada pintura de Van Gogh ocorre quando Jaques Netan encontra-se preso: “Netan sentia-se em um pé de trigo, com os corvos sobre ele. Como o trigal pintado por Van Gogh.”. A citação funciona como um presságio do porvir, já que a obra foi realizada pelo artista um pouco antes de sua morte. O próprio narrador afirma serem verossímeis tais símbolos.
Como diz o narrador de Um certo Jaques Netan, “Não há democracia sob a morte. Há mortos”. Dessa maneira, se considerarmos o testemunho como aquele que não é elaborado somente pela vítima ou sobrevivente, mas também por quem dele se solidariza, o romance de Carlos Nejar se insere em uma manifestação literária de testemunho sobre o regime de exceção no Brasil. Se no cânone literário, há um destaque para a literatura testemunho, no Brasil, tem-se a literatura testemunhal que abarca a Ditadura (1964-1985), variando de narrativas escritas por vítimas do regime àquelas elaboradas por quem, como Carlos Nejar, procura fazer com que o passado recente e traumático não seja esquecido ou ignorado. Assim, Um certo Jaques Netan se sobressai tanto pelos seus atributos literários como pelo seu caráter arquivístico, no sentido de resgate de memória.
Para saber mais
FRANCESCHINI, Marcele Aires (2020). Na dimensão onírica de Um certo Jaques Netan, de Carlos Nejar, e Sistema lacrimal, de Lirinha. In: FRANCESCHINI, Marcele Aires; CAMPOS, Jefferson; CAMARGO, Hertz Wendell de. Imagens, discursos e textualidades culturais. Londrina: Syntagma Editores, p. 197-215.
MONGELLI, Lênia Márcia (1992). Nejar, Carlos. Um certo Jaques Netan. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 34, p. 227-228. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/70695/73520. Acesso em: 30 jan. 2024.
SELIGMANN-SILVA, Márcio (2012). Direito pós-fáustico: por um novo tribunal como espaço de rememoração e elaboração dos traumas sociais. In: ARAÚJO, Maria Paula; FICO, Carlos; GRIN, Monica (orgs.). Violência na história: Memória, trauma e reparação. Rio de Janeiro: Ponteio.
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