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Nove noites

CARVALHO, Bernardo. Nove noites. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Carlos Wender Sousa Silva
Ilustração: Théo Crisóstomo

Bernardo Carvalho (Rio de Janeiro, 1960) é escritor e jornalista. Lançou-se como ficcionista com Aberrações (1993) e escreveu, entre outros, os romances Onze (1995), Os bêbados e os sonâmbulos (1996), Teatro (1998), Reprodução (2013) e os mais recentes O último gozo do mundo (2021) e Os substitutos (2023). Nove noites (2002) recebeu o Prêmio Portugal Telecom (2003) de Literatura Brasileira e o Prêmio Machado de Assis (2003) conferido pela Biblioteca Nacional. O estilo literário do escritor é marcado pela fragmentação da narrativa e por tensionamentos e movimentos entre realidade e ficção.

Nove noites se baseia numa história real de um antropólogo norte-americano, Buell Quain, que se suicidou, aos 27 anos, quando retornava, acompanhado de dois indígenas, de uma visita à aldeia dos krahô, localizada no atual território de Tocantins. Trata-se de uma espécie de metaficção historiográfica, visto os aspectos culturais e políticos que emergem como subsídios da própria constituição literária. Bernardo Carvalho inspirou-se em um artigo de jornal escrito por uma antropóloga que citava esse caso. Curioso pela história, o autor pesquisou a respeito do homem e buscou, na ficção, construir uma solução para o suicídio. A narrativa é marcada por uma dualidade entre o real e o ficcional.

O romance está subdividido em 19 capítulos, nos quais se intercalam duas vozes narrativas: de um lado, Manoel Perna, narrador fictício, amigo do protagonista, cujo texto está destacado em itálico na primeira e na mais recente edição da Companhia das Letras, a partir de quem são constituídos alguns indícios, ainda que vagos, das vivências e dos embates experimentados pelo personagem central; do outro lado, um narrador autobiográfico em primeira pessoa que busca incluir elementos da sua própria experiência ao texto. Manoel Perna, engenheiro, era um interlocutor de Buell Quain e foi para a casa dele que os indígenas se dirigiram para anunciar o suicídio e entregar objetos do antropólogo. A segunda e principal voz narrativa é do narrador-jornalista, que, durante o processo de preenchimento dos espaços deixados pelo outro narrador com elementos investigados, suscitados, imaginados, constatados e ficcionalizados, torna-se também parte dessa história ao trazer, para o centro da narrativa, a sua autobiografia.

Na construção do texto, Bernardo Carvalho se valeu de um diário de campo que trazia muitas das características psicológicas e emocionais do antropólogo, conforme relatou na entrevista Um escritor na Biblioteca (2024). Para isso, o autor incluiu fotos, informações de arquivos públicos, memórias e elementos de outros escritos que envolvem personagens reais e imaginários na construção do romance. Nesse sentido, é uma narrativa formada a partir da precariedade, de incertezas e de fragmentos da memória, aspectos dos quais o leitor já toma conhecimento desde o início. Do suicídio, Buell deixou alguns objetos como roupas, fotografias e cartas. O sertanejo Manoel Perna, que conviveu com os indígenas desde criança, também tentou buscar, posteriormente, os motivos do suicídio do etnólogo e se indagou sobre quais os interesses por trás de todos que direta ou indiretamente contribuem para a reconstituição dessa história. “Ou você acha que quando nos olhamos não reconhecemos no próximo o que em nós mesmos tentamos esconder?”.

O narrador autobiográfico (principal), por sua vez, também descobre um interesse profundo pela história do etnólogo. Ele ouve falar pela primeira vez de Buell Quain em 2001, quase sessenta e dois anos após a morte do antropólogo em 1939. Ele conhece a história do personagem em um artigo que traz as cartas de outro antropólogo que também morreu entre indígenas. Mas o que levaria alguém a se interessar por uma história de suicídio décadas depois? Ao montar um quebra-cabeça, esse narrador constrói uma imagem do antropólogo que se matou, bem como a sua própria: “ao pronunciar aquele nome em voz alta, ouvi-o pela primeira vez na minha própria voz”. O contexto histórico e político dos acontecimentos é o do Estado Novo no Brasil. Muitos intelectuais eram perseguidos e presos pelo regime, acusados de serem comunistas. As cartas deixadas por Buell Quain, por sua vez, nada dizem sobre as razões de sua morte. O narrador se interessa então por outras cartas que não encontrou, por algum elemento que o personagem tentou ocultar. O mistério funciona como elemento estilístico e literário no romance.

Esse narrador busca algum registro ou evidência que denuncie os desejos e sentimentos do etnólogo morto. Mas, nas cartas, encontra apenas informações práticas sobre a passagem do personagem pelo Brasil e sobre questões burocráticas da vida civil. Entre suas pesquisas, surge o nome de uma eventual companheira afetiva do jovem antropólogo, mas, embora tenha se apresentado como casado ao chegar ao Brasil, não havia “nenhum outro indício ou referência a mulher alguma em nenhum outro documento ou correspondência anterior ou posterior à sua morte”. O narrador então se questiona: “O que Buell Quain queria tanto esconder?”. À procura das impressões que a figura de Quain tinha deixado nas pessoas, apenas recortes e fragmentos desse personagem eram obtidos pelo narrador. Ouvia, por exemplo, relato de que não se sabia nada da vida particular do etnólogo nem que tivesse algo de especial, ou que o personagem central tentava preservar a vida privada. Mas o narrador-jornalista “Procurava qualquer indício que confirmasse ou não o que me parecia o ponto crucial”. Mas não encontra qualquer elemento que forneça alguma conclusão, ainda que incompleta.

Manoel Perna, por seu turno, narra ter compartilhado nove noites com Buell após a aproximação entre os dois. Fatos que então se misturam entre relato da experiência pessoal e projeções psicológicas e imagéticas. “O que agora lhe conto é a combinação do que ele me contou e da minha imaginação ao longo de nove noites”. Revela-se que Buell assistiu no cinema, com amigos, a uma história de amor “proibido pelas leis de uma sociedade de nativos. Um amor condenado pelos deuses. Um tabu”. O personagem não sabia o quanto daquele amor proibido ele carregava dentro de si. Além disso, buscava, em suas pesquisas junto à experiência de povos indígenas e de outras culturas, questionar as normas e leis da sua própria sociedade, encontrar talvez um mundo no qual pudesse reservar para si algum espaço. Mas esse movimento impunha também contradições, dilemas, fugas.

Esse narrador lembra que Buell Quain carregava consigo um sentimento de ter vivido fora de si, como um estrangeiro. Afirmava que Quain viajava para que pudesse voltar para dentro de si. A viagem aparece como metáfora de um espelho: era preciso conhecer o outro para então reconhecer-se a si mesmo, seus desejos, seus sentimentos. A viagem era também uma fuga. O narrador conclui que a fuga de Quain foi resultado do seu próprio fracasso. A morte do personagem central revela talvez um desejo de deixar de se ver em um mundo onde não mais se reconhecia como parte. Em algum grau, enxergar-se exige enfrentar medos, incertezas e ideias inacabadas formuladas pelo próprio indivíduo e por terceiros. Esse movimento incompleto, e, por vezes, contraditório, perpassa toda a narrativa. Manoel Perna, um humilde sertanejo, como ele mesmo se define, aponta essas descontinuidades e a construção de mapas e imagens por alguém “que não conhece o mundo e nunca viu a neve e já não pode dissociar a sua própria imaginação do que ouviu”. O narrador autobiográfico, por sua vez, ao tentar traçar os seus próprios mapas e imagens, questiona se Quain fugia apenas de um fantasma pessoal ou de algo objetivo e concreto. Certo é que, a partir dos vestígios que pouco ou nada dizem sobre as razões de uma atitude humana, o narrador principal conclui: “Cada um lê os poemas como pode e neles entende o que quer, aplica o sentido dos versos à sua própria experiência acumulada até o momento em que os lê”.

O narrador autobiográfico fala de si também, da sua relação com o pai, das visitas dos dois às fazendas de Mato Grosso e Goiás. O pai, que articulou em Brasília, já na década de 1970, a compra de latifúndios no sertão e o recebimento de subsídios para implementar seu projeto agropecuário, ambições em consonância com o programa do governo militar, “que sob o pretexto de desenvolvimento da Amazônia não só subvencionou a compra de centenas de milhares de alqueires a preço de banana, como em seguida financiou nababescamente os projetos de ocupação pelos fazendeiros”. Esse narrador conta essa experiência do projeto econômico-político desenvolvimentista do regime ditatorial brasileiro, do qual seu pai se beneficiou: “em geral, bastava derrubar a mata, plantar capim e encher as fazendas de gado. Meu pai devia ter os contatos certos”.

Os elementos autobiográficos se misturam à estrutura ficcional, nos conduzindo para o que ora são projeções da memória ora são construções ficcionais. O narrador-jornalista conclui que esse interesse pelo passado de alguém – e pelo seu próprio – não teria consequências concretas, afinal, são apenas pontos de tensão entre fragmentos da memória pessoal e histórias inventadas. Mas é justamente nesses espaços de tensão que a literatura se revela como ferramenta capaz de suscitar em nós a construção de um movimento de consciência crítica das experiências e dos interesses humanos. Nove noites assume essa postura. De um lado, um narrador-autobiográfico que tenta buscar no outro, em um desconhecido, respostas para sua própria experiência. De outro, um narrador fictício que assume trazer consigo uma mistura entre fato e imaginação, propondo ao leitor mesmo que imagine aquilo que ele, narrador, não pode contar ou escrever sobre nós. Esse movimento de dupla-biografia expõe uma narrativa na qual a multiplicidade de posicionamentos e perspectivas vai se ajustando para constituir um todo.

Ao leitor, marcado pela sua própria experiência e visão de mundo, é transferida a responsabilidade de completar as lacunas, construir um sentido para a história que lhe faça sentido. “Só você pode entender o que quer dizer, pois tem a chave que me falta. Só você tem a outra parte da história”. E é justamente dessa multiplicidade de vozes, sons, imagens e perspectivas que se desenvolve Nove noites, formando uma dimensão da reflexão humana ora real ora ficcional.

Para saber mais

BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ (2024). Um escritor na Biblioteca – Bernardo Carvalho. Cândido 149. Disponível em: https://www.bpp.pr.gov.br/Candido/Pagina/Um-Escritor-na-Biblioteca-Bernardo-Carvalho. Acesso em: 6 maio 2024.

COSTA, Claudia (2020). Nove noites desconstrói as estratégias da narrativa realista. In: Jornal da USP. Publicado em 05 de jun. 2020. Disponível em: https://jornal.usp.br/cultura/nove-noites-desconstroi-as-estrategias-da-narrativa-realista/. Acesso em: 6 maio 2024.

MATA, Anderson Luís Nunes da (2005). À deriva: espaço e movimento em Bernardo de Carvalho. In: Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, Abril/Maio/Junho, Vol. 2, Ano II, n. 2, p. 1-20.

MICALI, Danilo Luiz Carlos (2008). A viagem de Nove noites rumo ao “outro”. In: Travessias – Educação, Cultura, Linguagem e Arte, v. 3, p. 1-22.

Iconografia

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Como citar:

SILVA, Carlos Wender Sousa.
Nove noites.

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brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

27 mar. 2025.

Disponível em:

3949.

Acessado em:

19 maio. 2025.