Ir para o conteúdo

Os 7 mistérios da casa queimada

SASSI, Guido Wilmar. Os 7 mistérios da casa queimada. Florianópolis: Editora da UFSC, 1989.

Raul José Matos de Arruda Filho
Ilustração: Ruben Zacarias

Quando o Modernismo chegou em Santa Catarina, o movimento brasileiro já havia deixado de ser moderno. Em 1947, o Círculo de Arte Moderna (que mais tarde seria chamado de Grupo Sul) estabeleceu um ponto de ruptura tardio. Parte significativa desse grupo de artistas (escritores, artistas plásticos, atores, cineastas) residia em Florianópolis ou em cidades próximas. Guido Wilmar Sassi (Lages, SC, 1922 – Rio de Janeiro, RJ, 2002) foi uma exceção: funcionário do Banco do Brasil, residia, naquela época, no interior do estado.

Sassi foi um escritor inquieto que transitou por diversos gêneros literários. Embora parte significativa de sua obra esteja centrada no realismo, ele nunca deixou de buscar a universalidade. Desejava produzir uma literatura que ultrapassasse as fronteiras do provincianismo e transcendesse o regionalismo. Ainda que seus dois livros de contos Piá (1953) e Amigo velho (1957) sejam considerados essenciais para compreender a luta pela terra e as complexas relações do homem serrano com a Araucária angustifólia (pinheiro), o ponto alto de sua produção literária é o romance Geração do deserto (1964), que focaliza, pela primeira vez na literatura brasileira, a Guerra do Contestado (1912-1916), um conflito messiânico ocorrido em Santa Catarina e no Paraná. O livro foi adaptado para o cinema como A guerra dos pelados, com direção de Silvio Back (1971).

O romance Os 7 mistérios da casa queimada (1989) difere inteiramente dos outros livros publicados por Sassi. Ele é ambientado no Planalto Catarinense, durante as primeiras décadas do século XX, mas não se relaciona diretamente com o ambiente rural. Confirmando que os conflitos das classes privilegiadas constituem o alicerce das narrativas burguesas, é na cidade de Gales (anagrama de Lages) que vive a família disfuncional e os agregados do farmacêutico Thiago Valtrichi.

Como se trata de uma narrativa que oscila entre o real e a ficção, algumas fontes especulativas posicionam geograficamente a Casa Velha, a Casa Nova, Casa de Trás, o pomar e as edificações ao seu redor (Casa dos Negros, Puxado, Puxadinho) em um ponto específico de Lages. O Reduto (como é chamado o conjunto de edificações), “um verdadeiro latifúndio no centro da cidade”, possivelmente estaria localizado na quadra entre as atuais ruas Hercílio Luz e Jorge Lacerda, cortada, no lado direito, pela rua João de Castro. Na esquina da parte de cima funcionava, nos anos 1980, o Restaurante Caravelle. Porém, isso é incerto: talvez sejam pistas enganosas que o autor plantou para despertar a curiosidade dos leitores.

Seguindo esse ritmo difuso, algumas figuras da vida pública de Lages são transportadas ficcionalmente para Gales. O célebre médico anarquista italiano Cesar Sartori (1867-1945) é citado várias vezes. Etelvina, com um exemplar de Alma cabocla nas mãos, recorda o período em que Paulo Setúbal (1893-1937) viveu na região (1918-1919). A proprietária do bordel, Davina Bico Preto (Mãe Davina), evoca Teresa Bicuda, uma conhecida da zona do meretrício nos anos 1970/80. Nesse cruzamento entre o real e o imaginado, entre a história e a ficção, o romance vai tecendo um retrato da vida social da cidade.

O livro divide-se em sete capítulos, cada um abordando um mistério (que não são exatamente mistérios, mas um conjunto de acontecimentos), sendo alguns divididos em subcapítulos numerados. Um narrador onisciente, em terceira pessoa, alterna o relato com Carlos Alberto Valtrichi, o Betinho, um dos filhos de Thiago Valtrichi. A linha básica da narrativa gira em torno da grande catástrofe: o incêndio do Reduto. Contudo, antes que seja esclarecida a causa do infortúnio, uma miríade de histórias paralelas vai sendo acrescentada, muitas delas dialogando com clássicos da literatura mundial. Por exemplo, Simeão Valtrichi, ao se olhar no espelho, imagina ver Edmond Dantés (O Conde de Montecristo, de Alexandre Dumas), mas seu apego ao dinheiro o aproxima de Harpagão (O avarento, de Molière); o prego trazido por Basilissa da Terra Santa remete a um episódio de A relíquia (Eça de Queiroz); e o amor proibido entre Valentim e Veridiana tangencia Romeu e Julieta e Otelo (ambos de William Shakespeare). No entanto, essas referências não causam estranhamento, pois o romance está repleto de citações literárias e cinematográficas.

Na opinião de Betinho, “a vida é um dramalhão, um folhetim cheio de mistérios”. As descrições de alguns episódios protagonizados por sua família comprovam essa afirmação. Maria de Fátima (Fatiminha), depois da morte do marido, mergulha na prostituição. Toda vez que ocorre algo fora do seu controle, Thiago começa a rasgar papel. Esse comportamento compulsivo constitui um muro de proteção contra o horror instalado pela realidade. Outra forma de distanciamento se apresenta na transformação do menino medroso — Luís Valtrich, o Lula, que, depois da adolescência, para horror de seu pai, o Coronel Toninho Valtrich, adota o fascismo integralista.

A narrativa assume um tom de ópera bufa no relacionamento amoroso entre Etelvina e o farmacêutico Conrado Mansutti, culminando na descoberta de que ele sabotava a reprodução das mudas de flores para eliminar a concorrência no plantio de violetas e amores-perfeitos. Para evitar que a noiva obtivesse direitos indevidos de herança, o contrato de casamento entre Amantino e Veridiana exigia filhos. Isso era impossível. O velho teve orquite em algum ponto de sua vida e ficou estéril. No entanto, a sua esposa engravidou. Quando a criança nasceu, o espanto se fez presente e anulou quaisquer possibilidades de acesso aos benefícios econômicos. Outro episódio grotesco é a morte de Raquel, que estava grávida de pai desconhecido e foi encontrada enforcada. Na versão oficial, suicídio. No contexto retratado no romance, o preconceito determina o futuro das personagens e impede que exista perdão para aqueles que infringem as regras mais elementares de um mundo que, pelas questões morais relacionadas com o comportamento feminino, remete ao tempo da colonização do Planalto Catarinense, no século XVIII.

O romance abrange três ou quatro décadas e várias gerações. Nesse período, o progresso avança lentamente em Gales. No entanto, na transição das velas e lampiões para a luz elétrica, a modernidade modificou hábitos e costumes na cidade. Mas não o suficiente. A superstição, o cristianismo exacerbado, a sexualidade descontrolada, a hipocrisia da classe média, a violência intrafamiliar, entre outros — são elementos que caracterizam o texto. Como Sassi era um escritor pessimista, que não acreditava em redenção ou na alegria de estar vivo, nenhum dos personagens que aparecem em Os 7 mistérios da casa queimada consegue escapar de seus destinos trágicos, traçados desde a primeira página do romance.

Depois de muitas especulações sobre a causa do incêndio que destruiu o Reduto (são mencionadas a fiação precária de energia elétrica, a crise nervosa de algum dos personagens, algum tipo de vingança), é somente na página final que surge o esclarecimento: “Uma rajada de vento fecha a porta, com violência. O deslocamento de ar faz o fogareiro cair e rolar até junto do monte de papel”.

Para saber mais

RICCIARDI, Giovanni (1992). Os 7 mistérios da casa queimada: uma leitura. In: SOARES, Iaponan; MIGUEL, Salim. Guido Wilmar Sassi: literatura e cidadania. Florianópolis: Editora da UFSC. p. 113-125.

Iconografia

Tags:

Como citar:

ARRUDA FILHO, Raul José Matos de.
Os 7 mistérios da casa queimada.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

30 mar. 2025.

Disponível em:

4019.

Acessado em:

19 maio. 2025.