CARRARA, Mariana Salomão. Não fossem as sílabas do sábado. São Paulo: Todavia. 2022.
Ludimila Moreira Menezes
Ilustração: Catalina Chervin
A escritora e defensora pública paulistana Mariana Salomão Carrara (São Paulo, SP, 1986) conta com uma extensa e premiada produção ficcional em sua biografia. Além de um livro de contos, há romances, como Se deus me chamar não vou (Editora Nós, 2019), É sempre a hora da nossa morte amém (Editora Nós, 2021, finalista do Prêmio São Paulo 2022 e entre os 10 indicados ao Jabuti 2022), Não fossem as sílabas do sábado (Todavia, 2022, Vencedor do Prêmio São Paulo 2023 de Melhor Romance do Ano) e A árvore mais sozinha do mundo (2024). Recebeu pelo roteiro do longa-metragem É lá que eu quero morar o segundo lugar no Prêmio Guiões (Portugal, 2019).
Nas obras de Mariana Salomão Carrara, a morte figura-se como força motriz de ficções que acionam uma voz narrativa feminina em primeira pessoa. Outro estilema dos romances dessa escritora são as relações de amizade entre personagens femininas que deflagram em seus microcosmos domésticos e subjetivos tensões que perpassam a intimidade de crianças, adolescentes, mulheres adultas e idosas. Além da perspectiva feminina ser o recurso estilístico para explorar temas como memória, puberdade, tensões raciais, doenças; ela também entrega dicções e construções espaciais que focalizam experiências, dilemas e elaborações subjetivas de um universo feminino às voltas com conflitos familiares, ausências, sofrimentos psíquicos e mortes.
Outra marca dos universos ficcionais de Carrara são os títulos longos de Se deus me chamar não vou (2019) e É sempre a hora da nossa morte amém (2021), que evocam uma fratura ou chiste com o universo religioso. Mesmo em Não fossem as sílabas do sábado há algo de litúrgico, e a construção frasal escalonada além de aglutinar ritmo vertiginoso e lirismo ainda se vale de reminiscências que temos com a canção Construção de Chico Buarque “morreu na contramão atrapalhando o sábado”. Desse entrecruzamento de rastros mnemônicos, de um lirismo de pulsão dramática e de um apelo ao trágico, os títulos indiciam os enredos, seus personagens e a temporalidade agônica que forjam os romances.
Se tempo e a memória são balizadores metafísicos nos romances de 2019 e 2021, em Não fossem as sílabas do sábado, luto e sororidade catalisam a transvaloração das relações de família e amizade e impulsionam reflexões sobre os efeitos da solidão em duas mulheres que se descobrem vizinhas e viúvas logo no início da trama. Uma ficção calcada em uma voz lírica de uma mulher, viúva e mãe que transforma os efeitos do evento trágico de sua vida em uma linguagem que excede o trabalho de luto, em uma história sobre uma possível amizade feminina absoluta e outras configurações de parentalidade desde a presença de uma criança órfã.
Maternidade solo, suicídio, dois homens mortos em uma trama que explora o tempo estagnado do luto e a incompreensão, ainda que velada, do suicídio. A cidade de São Paulo e o prédio de um bairro de classe média paulistana despontam para além de cenários e se investem ao longo da narrativa de uma concretude sensorial desatadora de ensimesmamentos e afetos negativos como culpa e raiva. A narradora Ana, de 28 anos, ao se descobrir grávida, decide enquadrar um pôster de um filme caro ao casal e, no retorno para casa, solicita ajuda ao marido para carregá-lo. O marido demora. Ao sair do prédio, André é atingido e morto por Miguel e, em um compasso de sincronicidade e fatalidade, essa queda afetará para sempre a vida das duas viúvas, Ana e Madalena.
Vinga em Não fossem as sílabas do sábado uma espessura traumática, a voz confessional da narradora Ana forja uma possessão de solidão, dor e uma espécie de anomia social diante da morte trágica de seu marido André na manhã que ela revelaria a gravidez. Uma morte dupla desorbitando a noção de destino ideal, de uma parentalidade em simbiose: o vizinho do décimo andar, Miguel, que despenca em uma queda suicida, coloca inicialmente a esposa Madalena como estrangeira e intrusa nessa nova configuração de família em escombros.
Culpa e luto como entes peregrinos se instalam em uma cinética doméstica de digressões, memorabílias, tentativas fracassadas de cartografar os passos que antecederam o evento cataclísmico por parte de Ana; a Madalena é entregue como fatura do evento, o interdito sobre o marido, Miguel, que paira fantasmático nas especulações de Ana. Por meio de uma narrativa atenta às minúcias da arquitetura do prédio, à disposição da mobília do apartamento, aos gestos de silêncio e raiva de Ana e aos detalhes dessa amizade paradoxal com Madalena, o romance aposta em fluxos de tempos bifurcados, um tempo da escrita (algo entre o diário e o testemunho) e outro da narração (misto de relato mais distanciado) que lida com a transformação dos personagens diante de suas dores, memórias e desejos.
O romance é construído desde uma linguagem melancólica e um controle narrativo que, além de evidenciar uma plasticidade estagnada do apartamento diante do luto, do medo, da raiva, da culpa, também consegue fundir o substrato das recordações do passado (o medo de esquecer o marido morto) e a dolorosa ambivalência de uma amizade impossível em cenas que esculpem temporalidades e intimidades de uma década. Fluxo de consciência e uma sobreposição de tempo presente e passado nos conduzem pela subjetividade hipervigilante de Ana que reverbera sensibilidade e consciência de classe ao se debruçar sobre a dinâmica doméstica em um ciclo narrativo de 10 anos, nesses densos fotogramas, o incômodo e o alívio suscitados pela presença da babá delineiam uma trama que se espirala entre dor, autocrítica, vazio existencial, maternidade e a jornada de crescimento de Catarina.
Diante de uma cidade que se constitui por uma sintaxe de barulhos, de corpos e veículos em trânsito, a narradora, que é arquiteta, se vê destituída da espacialidade e vivência familiar conhecidas, do manejo de um controle interior e exterior e, aturdida com a promessa da chegada de um bebê, a filha Catarina vê no contato com Madalena uma fagulha de alteridade. Nessa outra espacialidade do corpo e de si, Ana se vê diante de um périplo-pesadelo que envolve IML, delegacia e um retorno epifânico e trágico à nova casa, agora atravessada pela ausência de André, a dor de se ver sozinha, o medo de criar uma criança sozinha e raiva do vizinho suicida. Raiva que será vetorizada à vizinha, esposa de Miguel, a professora de português e vizinha Madalena. Mesmo que a história ganhe tração pelas percepções e ânimos de Ana, os efeitos de presença de Madalena nos chegam para além da aparente figuração intrusiva inicialmente construída pela narradora. Madalena acende o rastilho de alteridade em um campo minado pela depressão e solidão.
Ainda que Madalena seja a pessoa que reconvoque queda e morte e atice uma pulsão pela culpabilização por parte de Ana, a personagem, vista inicialmente como força intrusiva, torna-se aquela em partilha extrema dos desdobramentos domésticos, psíquicos e afetivos da narradora gestante. Desde um luto simbiótico e uma hostilidade difusa e ambivalente, que ora faz Ana se sentir uma viúva melhor que a vizinha ora vê nessas trocas circunstanciais com Madalena elo de cuidado e promessa de acolhimento, o romance redimensiona essa amizade paradoxal, repleta de silêncios e fases distintas.
O nascimento de Catarina torna as visitas de Madalena, antes contingenciais, em presença desejada, ainda que inconscientemente. Nesse novo microcosmo doméstico que envolve puerpério, a chegada de uma babá e a força de Madalena como uma espécie de cicerone dessa nova jornada, consolida-se o rastilho deixado pela epígrafe de Lygia Fagundes Telles “Se é difícil carregar a solidão, mais difícil ainda é carregar uma companhia”. A primazia do gestual pelas outras mulheres (colo, limpeza, preparo da comida) faz eco sobre a linguagem deprimida de Ana, às voltas com um corpo fragmentado e que quase se dilui pelo medo do devir.
O arco dramático do romance se forja tanto pelos sintomas do sofrimento psíquico de Ana quanto pela complexidade de um convívio que aglutina atritos, luto e confiança. A solidão de Ana e o distanciamento dos amigos retroalimenta o pacto tácito entre as vizinhas de união e comunhão. Uma união abrupta, longe daquelas do familismo tradicional ou das redes de apoio advindas de consanguinidade, mas que se perfaz sob o signo do desamparo e da mobilização de forças amorosas para a criação de uma criança.
O romance de Mariana Salomão Carrara, ainda que invista em um apelo realista inegociável sobre a morte, o pranto, e o luto, traz a reboque uma imagística quase tátil e sonora, por isso, poética, da maternagem em sua exaustão, em seus cálculos agônicos de futuro, do corpo que se dilui em leite, sono, letargia e medo. A experiência limite do corpo grávido, da subjetividade de uma puérpera, de uma criança que cresce tendo a morte como família, de duas viúvas que esculpem, entre danações de um processo judicial e partilhas generosas acossadas pelas ausências, de uma amizade permitem a ascensão de um lirismo embotado que não se presta à catarse, nênia. Toda a linguagem ali tem um fluxo de remetimento a um outro (relembramentos, queixas, melancolia), muito mais pela urgência da escuta, de uma partilha incessante de si, das dores de se continuar viva.
Para saber mais
PROENÇA, Giovana (2022). Não fossem as sílabas do sábado: ficção de afetos marcada pela tragédia. Pensar-Estado de Minas. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/pensar/2022/12/09/interna_pensar,1431299/nao-fossem-as-silabas-do-sabado-ficcao-de-afetos-marcada-pela-tragedia.shtml. Acesso em: 28 mar. 2025.
ARAÚJO, Cynthia Pereira de (2022). É sempre a hora da nossa morte. Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/blogs/morte-sem-tabu/2022/06/e-sempre-a-hora-da-nossa-morte.shtml. Acesso em: 28 mar. 2025.
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