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O paraíso é bem bacana

SANT’ANNA, André. O paraíso é bem bacana. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Mariana Marise Fernandes Leite
Ilustração: Théo Crisóstomo

Nascido em Belo Horizonte e tendo experienciado ao longo da vida a atmosfera de diferentes espaços urbanos no Brasil e no mundo, como São Paulo, Rio de Janeiro e Alemanha, André Sant’Anna (Belo Horizonte, MG, 1964), além de escritor, também é roteirista, músico e publicitário. Sant’Anna tornou-se escritor ainda jovem, em 1998, quando decidiu retomar as anotações derivadas dos seus anos de vida no Rio de Janeiro, transformando-as em Amor (1998), sua primeira publicação. Seu sobrenome, Sant’Anna, soa familiar para um leitor atento da literatura brasileira contemporânea não só por suas próprias criações, mas também pelas de seu pai, o também escritor Sérgio Sant’Anna.

Não é a influência de seu pai, mas de suas próprias experiências que moldam o ponto de partida para seus escritos. Seu romance Amor é um exemplo dessa influência, uma vez que, conta o autor, a obra parte de um comentário inadequado sobre o corpo de uma mulher feito por um chefe no contexto de uma festa da agência publicitária em que Sant’Anna atuava. O paraíso é bem bacana (2006) não é diferente quanto ao ponto de partida de sua escrita. O autor afirma, em entrevista à Revista Z Cultural, que o texto tem como inspiração inicial tanto seu período vivendo na Alemanha quanto sua experiência de meses internado em um hospital brasileiro desde a data de seu retorno ao Brasil. Essas duas vivências a todo momento atravessam a história do protagonista do romance, Mané, Manuel dos Santos, Manuel Mané ou Muhammad Mané.

A obra, no entanto, suplanta as experiências pessoais de quem a escreve a partir da trajetória de seu protagonista, que é um jogador de futebol com carreira em ascensão. É o que destaca Ari Denisson da Silva em “Representações irônicas da brasilidade em André Sant’Anna”, ao detalhar que a narrativa sobre Mané está a todo momento dialogando de forma irônica com a construção do imaginário coletivo a respeito do brasileiro, do futebol e da atuação extraordinária que o país teria no esporte há décadas.

Mané é um jovem jogador de futebol brasileiro, vindo da cidade de Ubatuba e contratado para atuar em um time alemão por seu talento, com a promessa de que dele se desenvolveria um “próximo Pelé”. Tal expectativa é o que possibilita a ida do jogador para Berlim, cidade onde não só trabalha, mas em que conhece e se converte ao islamismo.

Ao contrário do que indicaria o talento do jogador e sua recente ascensão de carreira, o leitor é surpreendido pelo estado do protagonista no presente da narrativa. Mané está em coma em um hospital alemão, acompanhado de dois colegas de quarto, sob os cuidados de uma enfermeira alemã e a vigília de agentes secretos que parecem estar em busca de compreender o motivo que levou Mané ao ato que o deixou em coma: um atentado terrorista.

Na contramão de uma narrativa com a clássica estrutura de início, meio e fim, o ponto de partida do romance não conduz o leitor a um entendimento prévio da condição atual de seu protagonista. Apresenta-se, no primeiro capítulo, um Mané que conta um fragmento controverso de memória de sua infância e da violência física e psicológica sofrida, narração que é interrompida bruscamente por outra história na qual ele, Mané, habita sozinho o paraíso com 72 mulheres. Todas a serviço do seu desejo sexual.

A esses acontecimentos, que se fazem presentes em toda a trama, são acrescidas múltiplas vozes, compondo uma narração polifônica valendo-se de relatos de fragmentos de memória de outros personagens com o protagonista. Nesses trechos, surgem as experiências com Mané, seus pontos de vista a respeito das condições em que o jogador vivia e/ou que o levaram ao seu atual estado de existência.   

Cada uma dessas vozes, com fortes marcas da oralidade e vocabulário que explicita as experiências de violência de quem narra, transpõem em palavras o afeto ou o desafeto pelo protagonista do romance. Assim, contribuem para que o leitor monte um quebra-cabeças e que, com ele, compreenda as razões que teriam levado Mané a atentar contra a própria vida nas condições que o fez.

Além disso, essa narração polifônica proporciona ao leitor a experiência mista de curiosidade e incômodo profundos, que se dão na riqueza de detalhes com que alguns dos episódios mais constrangedores, traumatizantes ou escatológicos dos primeiros anos de vida do protagonista o formaram enquanto pessoa, desde a extrema pobreza com a família em Ubatuba até a promessa de sucesso como jogador de um time alemão.

Atravessam a formação de Mané a vulnerabilidade social, a autodescoberta sexual enviesada pelo trauma de abusos físicos e psicológicos da infância, o desenvolvimento de uma sexualidade reprimida em vestiários de quadras de futebol nacionais e internacionais e constantes insinuações de cunho jocoso sobre seu corpo e sua sexualidade. Essa mesma história é o que faz Mané parecer, no presente da narrativa, alguém que, narrado pelas outras vozes, apresenta pouca comunicabilidade e se mostra em constante fuga do contato com mulheres.

Em meio a um turbilhão de vozes e influenciado pelos fragmentos de memória que parecem traduzir as condições que o levaram até onde está,  ele oscila ao contar sua própria história e compor o mosaico de narradores que também a constroem, entre duas versões de si: uma apresentando o vocabulário e o uso de expressões de cunho sexualizado devido a seu costume de consumir revistas eróticas e pelo convívio em um ambiente onde a percepção sobre o sexo é prioritariamente dominada pelo imaginário masculino; e outra apresentando uma visão infantilizada, na qual o órgão genital é personificado e as vozes de mulheres que permearam de alguma forma seu desenvolvimento são reproduzidas num contexto hipersexualizado.

O incômodo com a narrativa é uma constante e não se faz presente apenas no desconforto diante do delírio erótico do protagonista acamado, mas também no mal-estar generalizado que a miscelânea de vozes da narrativa gera em seu leitor. Isso porque, página a página, são esclarecidos alguns detalhes: enquanto delira com 72 mulheres em seu paraíso artificial, na vida real, Mané já não tem sequer seu órgão sexual.  Ao mesmo tempo em que narra seu rompimento com o próprio filho, a mãe de Mané revela o desejo de prostituir a filha. Enquanto narram o protagonista e a si mesmos, vários personagens revelam seus preconceitos ou os de seu entorno retratados a partir dos fragmentos de seu cotidiano, dos quais emergem percepções equivocadas – e, no entanto, comuns – sobre brasileiros, alemães, africanos e turcos, bem como concepções enviesadas e preconceituosas sobre mulheres, homossexuais e negros.

A narrativa traz à tona ainda, desde sua capa de 2006, a temática de que nos fala Silva (2017) em seu texto: uma visão irônica sobre o futebol brasileiro. Vários jovens, alguns sentados e outros interagindo em um vestiário com camisas de time, representam a atmosfera na qual habita Mané desde sua infância até ingressar no Hertha Berlin. Esse espaço permeia a vida e a sexualidade de Mané de tal forma que o define. Não da maneira saudosa e laudatória que o imaginário coletivo cria, mas, como detalha Silva, de forma a atrelar-se ao esporte a raiz do desejo reprimido e do assédio sofrido pelo jogador, bem como – não diferente de outros “jogadores deslumbrados de Terceiro Mundo” – de forma a justificar a realização delirante do desejo sexual do personagem na tentativa de tornar-se um mártir e estar com todas as mulheres que em algum nível ou circunstância não estiveram ao seu alcance na vida real.

A narração polifônica de Sant’Anna, extremamente descritiva, incômoda, por vezes repulsiva e incrivelmente verossímil, conduz seu leitor a uma resposta possível: para Mané, o paraíso é mesmo bem bacana, pois a realidade já não dá conta do sublimado.

Para saber mais

DIAS, Ângela Maria (2009). O paraíso é bem bacana: a última “teogonia às avessas” de André Sant’Anna. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 33, p. 157-170, jan-jun. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9591. Acesso em: 19 mai. 2024.

LEHNEN, Leila (2009). O paraíso não tão bacana de André Sant’Anna. Estudos de Literatura Brasileira Contem­porânea, Brasília, n. 33, p. 171-191, jan-jun. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9592. Acesso em: 19 maio 2024

SANT’ANNA, André (2020). Tudo se transforma em literatura: entrevista com André Sant’Anna. Revista Z Cultural. Rio de Janeiro, ano 15, n. 3, 2.sem. Disponível em: http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/tudo-se-transforma-em-literatura-entrevista-com-andre-santanna. Acesso em: 19 maio 2024.

SILVA, Ari Denisson da (2017). Representações irônicas da brasilidade em André Sant’anna. Tese (Doutorado em Letras e Linguística) – Universidade Federal de Alagoas, Maceió.

SOARES, Laura Fontana (2016). O jogo narrativo em O paraíso é bem bacana. Mafuá, Florianópolis, n. 26. Disponível em: https://mafua.ufsc.br/2016/o-jogo-narrativo-em-o-paraiso-e-bem-bacana. Acesso em: 19 maio 2024.

Iconografia

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Como citar:

LEITE, Mariana Marise Fernandes.
O paraíso é bem bacana.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

28 mar. 2025.

Disponível em:

4017.

Acessado em:

19 maio. 2025.