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Menos que um

MELO, Patrícia. Menos que um. São Paulo: LeYa Brasil, 2022.

Jordan Benjamin Jones
Ilustração: Moreno Lago

Escritora, roteirista e dramaturga premiada, Patrícia Melo (Assis, SP, 1962) estreou na literatura com Acqua Toffana em 1994 e, desde então, vem publicando livros regularmente. Destacam-se O matador (1995), Inferno (2000, ganhador do Prêmio Jabuti de 2001) e Mulheres empilhadas (2019), todos os quais abordam a violência em vários contextos. Ao longo da carreira, Melo (que passou a morar na Suíça em 2009) tem se mostrado destemida em escrever sobre temáticas difíceis presentes na sociedade brasileira, inclusive o tráfico de drogas, a traição, o feminicídio e a pobreza, entre outras.

Em Menos que um (2022), a autora apresenta um panorama de personagens que pertencem (ou pelo menos se associam) a um grupo extremamente vulnerável e muitas vezes invisibilizado na sociedade brasileira: os moradores de rua. O tom do livro é de um realismo ao mesmo tempo duro e poético, que não se esquiva de expor detalhadamente as injustiças e tragédias que perseguem os personagens. Menos que um se centra principalmente nas pessoas desabrigadas, que nem cortiço ou favela têm para insulá-las da fome, do frio e da violência bruta da cidade. Assim, o livro gira em torno de um lugar restrito: a praça da matriz de uma grande cidade, marco zero e coração geográfico da metrópole.

O romance é dividido em três partes, cada uma das quais tem dezessete capítulos. Esses capítulos são narrados em terceira pessoa e alternam entre as perspectivas de seis personagens principais (e outros indivíduos ao seu redor): Seno Chacoy, imigrante venezuelano que se considera melhor que os muitos moradores de rua que encontra e que enxerga no Brasil sinais de uma decadência semelhante à que o levou a deixar seu país natal; Chilves, homem negro que sobrevive como catador, sonha em viver na comunidade de luxo fechada Swiss Life Residence e encontra uma ideologia revolucionária que o leva a tentar abrir os olhos de seus companheiros de rua às injustiças que sofrem, baseadas em grande parte no racismo; Jéssica, adolescente negra (e namorada de Chilves) que enfrenta ao mesmo tempo a maternidade e o vício em drogas; Douglas, coveiro em um cemitério da cidade que perde a fé devido à morte em massa de grandes porções da população (que ele mesmo ajuda a enterrar); Iraquitan, escritor sem abrigo que cata palavras e as registra em cadernos, buscando um público para seus escritos sobre aquilo que observa no espaço urbano, e Glenda, mulher trans que luta para reaver um espaço próprio na cidade e deixar para trás sua antiga identidade como homem chamado Weverton. Os personagens secundários incluem pessoas cujos nomes frequentemente desaparecem em favor de seus apelidos: Farol Baixo, Salário Mínimo, Beto Senador etc. Esses indivíduos seguem caminhos diferentes em face dos desafios da vida na rua: a escrita, a ocupação de prédios abandonados, o roubo, o tráfico e uso de drogas, a prostituição etc.

Ao longo dos meses retratados no romance, alguns personagens parecem subir na vida enquanto outros caem de vez, graças em parte às suas próprias decisões e em parte às escolhas de outras pessoas e ao apoio oferecido ou negado pelas organizações ao seu redor (igrejas, a polícia, o governo e os programas sociais, entre outros). Nos retratos que abarca, Menos que um mostra a vitimização dessa população vulnerável junto à sua resistência e à solidariedade em ocupar espaços e encontrar um espaço próprio na cidade que faz questão de expulsá-los de um canto para outro sem que a população os veja. Uma exceção a esse padrão é o personagem Douglas, que esboça e tenta praticar uma “religião da pequena bondade”, buscando fazer sua parte para praticar o bem, não obstante a maldade e a violência que vê ao seu redor.

Menos que um está cheio da tristeza e da violência que têm o potencial de gerar um profundo incômodo nos leitores. No entanto, o livro também não minimiza as alegrias, a interdependência e as pequenas ações de compaixão que surgem no ambiente, possibilitando assim que os moradores consigam sobreviver a mais um dia e continuar sonhando com uma realidade diferente. Os capítulos do livro intercalam um leque de temáticas inter-relacionadas: o despejo dos pobres, a pandemia de COVID-19 e a precariedade provocada por ela, a solidariedade entre os personagens (e os laços afetivos que se rompem), os sonhos de uma vida melhor, o afastamento e a fuga dos ricos, a busca de justiça, a vingança pessoal, as drogas, o sexo, a prostituição, a violência e a impunidade com que policiais corruptos tratam os mais vulneráveis da sociedade brasileira. O livro tem um foco alternante: a maioria dos capítulos se centra em um ou dois personagens, dando continuidade às suas histórias antes de assumir o ponto de vista de outro personagem. Essa estrutura espelha a fragmentação dos moradores de rua, oferecendo informações aos poucos aos leitores antes de mostrar até que ponto as trajetórias individuais são inter-relacionadas. A narração limitada à terceira pessoa também reflete a falta de entendimento dos personagens e os dilemas que enfrentam.

Sonho e realidade se misturam, assim como a tristeza e momentos de felicidade e de esperança. Em Menos que um, Melo emprega um realismo cuja brutalidade vem embalada em uma prosa poética e refinada, invocando e dialogando com outros marcos da literatura brasileira, como o personagem Iraquitan, cujos comentários e escritas dialogam com e atualizam Quarto de despejo. Como ele explica em certo momento, “não é que o crack seja bom. A rua é que é ruim”.

A escrita de Melo, tanto em Menos que um quanto em seus outros livros, representa uma voz importante na literatura brasileira contemporânea devido às suas observações incisivas e à sua coragem em abordar temáticas polêmicas que afligem a sociedade brasileira e que precisam ser discutidas e enfrentadas para ajudar o Brasil a avançar na contemporaneidade. Menos que um é escrito de maneira a não minimizar nem exagerar os desafios e a violência cotidianos da população que vive nas camadas mais baixas da sociedade urbana brasileira. Mostra como um passo em falso ou um acidente pode fazer desmoronar a precária estabilidade que alguns personagens constroem. Além de detalhar as tragédias e violências presentes nas ruas urbanas, o livro explora como a educação e a moradia, quando fornecidas a essa população vulnerável, podem ajudá-la a se reerguer e elevar seu potencial para o futuro junto à capacidade de sonhar com uma vida melhor.

Ainda que não especifique em que cidade a história se passa, há claros indícios e referências que colocam as histórias no centro de uma metrópole – ou seja, no coração da civilização brasileira, o que chama a atenção para a injustiça e a ironia de se ter centenas, milhares de pessoas desabrigadas em uma cidade com muitos prédios vazios ou abandonados. Ainda que seja impossível retratar essas milhares de pessoas em um único livro, Melo oferece um retrato complexo, rico e desafiador para que os leitores entendam o que se explica no texto: “na rua, para saber quem é uma pessoa, você tem que juntar um monte de caquinhos”. Menos que um oferece vários caquinhos aos leitores, ajudando-os a juntar esses pedaços em seu próprio contexto a fim de chegar mais perto dos outros – frequentemente invisibilizados – que o livro faz mais visíveis.

Para saber mais

MAGRI, Ieda (2021). Nova descida ao inferno: Patrícia Melo e as mulheres que matam. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 62, p. 1-12. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/37434. Acesso em: 6 jul. 2024.

SCHARGEL, Sergio (2023). De uma estética da violência: poder e experiência urbana em Patrícia Melo. Bulletin of Contemporary Hispanic Studies, v. 5, n. 1, p. 71-82. Disponível em: https://doi.org/10.3828/bchs.2023.6. Acesso em: 6 jul. 2024.

Iconografia

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Como citar:

JONES, Jordan Benjamin.
Menos que um.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

28 mar. 2025.

Disponível em:

3434.

Acessado em:

19 maio. 2025.