Ir para o conteúdo

O amor dos homens avulsos

HERINGER, Victor. O amor dos homens avulsos. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

Julia Rudek Machado
Ilustração: @popi.oli

O amor dos homens avulsos (2016), de Victor Heringer (Rio de Janeiro, RJ, 1988 – Rio de Janeiro, RJ, 2018), é um romance de tom memorialístico no qual o narrador, Camilo, conta sua infância no bairro do Queím, no Rio de Janeiro. A narrativa parte do momento em que, em determinado mês de férias, seu pai traz para casa um menino chamado Cosme, que passa a viver com a família.

Construída a partir de capítulos, sendo que estes não levam título, apenas o número ao qual correspondem, a narrativa mescla o tempo passado com o tempo presente, e o narrador, já adulto, relembra sua infância ao lado de Cosme (ou Cosmim, como era carinhosamente chamado). Se, em um primeiro momento, Camilo sente ciúmes com a chegada do menino em sua casa, incomodado com a proximidade entre este e o pai, o sentimento logo se transforma em cumplicidade, amizade e amor. Assim, o romance acaba por se tornar uma narrativa forte e sensível a respeito do relacionamento amoroso entre os dois rapazes.

Camilo vive uma infância reclusa e solitária até a chegada de Cosme, o que se dá também devido à perda parcial das funções motoras de uma das pernas. A relação entre os dois meninos faz com que ele comece a sair de casa, brincar na rua, conhecer os outros moradores do Queím; é como se a convivência com Cosme fosse um divisor de águas na vida do narrador, até o momento em que, na vida adulta, ele volta a ser sozinho e se isola novamente. Há, dessa forma, um contraste entre a família da infância, ainda que com seus problemas, e a vida adulta e a velhice solitárias, além da disparidade entre a presença e a ausência de Cosme e a forma como isso impacta o dia a dia de Camilo – o alternar entre o restante de sua vida e o intervalo de tempo em que permaneceu e conviveu com o seu primeiro e último amor, uma página destacada da sua história, sublinhada e rabiscada em meio às outras.

A ditadura militar no Brasil é também uma temática trabalhada na obra de Heringer: no início, o narrador informa que Cosme chega em sua casa no ano de 1976, quando aquele tinha treze anos de idade. Os anos de repressão são abordados através da figura do pai de Camilo: um médico que trabalha nos porões da tortura, em contato direto com as vítimas, conforme o leitor vai descobrindo. Esse não é, no entanto, o pano de fundo do romance, e as memórias do narrador a respeito desse período não são muitas; sobre aquilo que sabe, não busca muitas outras informações.

Há, no entanto, a descrição que Camilo faz da desigualdade social e econômica no bairro onde morava, algo relacionado com os anos em que passou sua infância. O texto coloca o leitor diante da vida na periferia carioca dessa época: quando passa realmente a viver o bairro em que habita, estar com seus moradores, conhecer seus espaços, o narrador acaba criando consciência de sua classe social; percebe, como ele próprio diz, que “vivia entre gente pobre”.

A narrativa, que é construída quase que de modo documental, tem como foco, apesar disso, o olhar sutil que Camilo dedica ao texto, marcado pelo amor por Cosme, mesmo que, no momento em que narra, já não possua mais o olhar apaixonado, mágico e aberto de quando era criança: é neste outro momento da vida, já marcado pela dor do luto, pelo aprendizado da ausência. Apesar disso, é possível visualizar na leitura este Camilo jovem, pré-adolescente, cheio das questões que a idade traz, o Camilo que ama Cosme, porque o texto, apesar de seu tom dolorido, ainda consegue mostrar ao leitor a esperança escondida dos tempos do bairro do Queím.

A passagem do tempo e das diferentes fases da vida, as transformações do espaço, da casa em que cresceu, as durezas e os desafios da vida adulta contrastam com as descobertas da juventude e da sexualidade, que Cosme e Camilo experienciaram juntos: o primeiro beijo, o conhecimento do corpo próprio, do corpo do outro, o primeiro amor. A linguagem utilizada em vários momentos torna-se confusa e violenta ao relatar temas mais fortes – o preconceito e suas consequências, os anos de repressão da ditadura militar, a própria urbanização da cidade do Rio de Janeiro e tudo que acarretou. É, no entanto, a mesma linguagem capaz de dar conta da simplicidade do amor, ao descrever as coisas que Cosme deu a Camilo ao longo da vida (pedrinhas, figurinhas, uma caixa de fósforos, botões de roupa, um livro do Darcy Ribeiro, uma lata de biscoitos…). Outros exemplos são o momento em que os dois se apresentam como namorados aos amigos, como que fingindo uma cerimônia de casamento, a passagem do ódio ao amor, as declarações que Camilo não conseguiu fazer e depois escreve. São as memórias de um homem já mais velho que ainda é capaz de escrever com a paixão de uma criança, livre e protegida dos traumas da vida.

Esse talvez seja o principal mérito do romance de Heringer: a maneira como a narrativa consegue conciliar temas leves e brutais em parágrafos que se seguem, às vezes em um mesmo raciocínio, causando um estranhamento tão necessário em quem lê e colocando-o em contato com coisas das quais evita se aproximar, porque machucam – o sentimento interrompido, a necessidade de seguir em frente, a violência que não deveria existir, mas existe. “Sempre quis acreditar, ao avesso, que eu poderia me convencer de que tinha inventado isso tudo, inventado Cosmim e a morte de Cosmim, um assassino marido da babá, meu pai anjo de tortura. Que este mundo inteiro não passou de um delírio da minha mente aleijada. Que outro mundo destes é possível, um quase idêntico (com minha perna ruim, com Queím e tudo, Brasil, miséria e tristeza, não tem problema), mas um pouco menos hediondo”. E assim continua: “Ou, se não menos hediondo, um pouco mais variado. Li uma vez num poema que nós ‘somos bonecos de lava endurecida / e é com lágrima que nos amoldam’. […] Nunca ninguém me disse nada parecido, nem o poeta desse mesmo poema deve dizer coisas assim na vida comum. Então é a vida comum que tem que morrer; Cosmim morreu na vida comum”.

É, além de tudo, uma escrita que se mostra corajosa, que traz a voz de um narrador que não tem medo e não hesita em relatar o que teve com Cosme, que em nenhum momento escondeu o amor que sentiu. Sem rodeios, trata de temas hoje em dia evitados e até mesmo censurados, sempre envolvendo o leitor em uma mistura de sensações e imagens que ora perturbam, ora abraçam, estarrecem e emocionam. Algumas cenas, denunciando uma realidade cotidiana, são feitas para provocar desconforto. Quando, por exemplo, o leitor entra em contato com a relação de Camilo e Cosme, o intuito de Heringer é revelar as consequências do preconceito e a violência que decorrem de um amor que sempre se deu de forma simples, naturalmente, sem máscaras.

O romance, assim, trabalha ao mesmo tempo com a memória e com sua iminência de fim, essa memória que não se quer, de jeito algum, que se acabe (presente em cadernos, fotografias, boletins escolares, desenhos), mas que, mesmo assim, vai perdendo a nitidez com o passar dos anos. Como tudo nesse livro, no entanto, há o contraponto do amor por Cosme, que permanece. Exemplo da forma como o carinho e o cuidado com que se trata alguém são capazes de migrar de uma pessoa a outra, alterar a rota, escolher novos destinos, apesar das feridas – afinal, o sentimento, quando adoece, nem sempre se desfaz por completo.

Isso fica claro ao final da narrativa, um fim repleto de perdão, perdão este que só uma criança consegue alcançar. A mensagem que O amor dos homens avulsos passa para o leitor é que, em meio a pares de antítese, apesar da dor, a vida se reconstrói. O amor, a raiva, a compaixão, o luto, a solidão e a saudade se renovam, transformam-se, acendem e apagam, retornando de formas diferentes no coração de quem os sente. Com relação à injustiça, que continua a perseguir a todos, vê-se nesse livro uma resposta, um contra-ataque: mais uma tentativa da literatura de encontrar caminhos diferentes de existência, novas chances que, a cada página lida, a cada reflexão produzida, tornam-se cada vez mais próximas da realidade.

Para saber mais

FERREIRA, Valeria Rosito; CUNHA, Pedro Henrique (2023). A solidão da personagem-paisagem na ficção de Victor Heringer. Terra Roxa e Outras Terras: Revista de Estudos Literários[S. l.], v. 43, n. 2, p. 52-64. Disponível em: https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa/article/view/47811. Acesso em: 6 jul. 2024.

MATTIA, Bianca Rosina (2020). Amor, masculinidades e resistência: uma leitura queer. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 61, p. 1-10. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/35245/27932. Acesso em: 13 maio 2024.

MODESTO, Edcleberton de Andrade (2020). O sentimento de avulsão em O Amor dos Homens Avulsos, de Victor Heringer, e Terra Avulsa, de Altair Martins. Dissertação (Mestrado em Letras – Teoria da Literatura) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Disponível em: https://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/9123. Acesso em: 14 ago. 2024.

PLATO, Isadora de (2024). A representação léxico-estilística da infância em O amor dos homens avulsos, de Victor Heringer. Primeira Escrita, v. 11, n. 1, p. 50-60. Disponível em: https://periodicos.ufms.br/index.php/revpres/article/view/20366/14414. Acesso em: 14 ago. 2024.

SILVA, Leandro Soares da (2018). Dois meninos: a construção do amor perdido em dois romances contemporâneos. Fólio – Revista de Letras, Vitória da Conquista, v. 9, n. 1, p. 85-102.  Disponível em: https://periodicos2.uesb.br/index.php/folio/article/view/3246/2721. Acesso em: 14 ago. 2024.

Iconografia

Tags:

Como citar:

MACHADO, Julia Rudek.
O amor dos homens avulsos.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

27 mar. 2025.

Disponível em:

3954.

Acessado em:

19 maio. 2025.