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Mulher no espelho

CUNHA, Helena Parente. Mulher no espelho. Florianópolis: FCC, 1983.

Júlia Batista Bernardes Farias
Ilustração: Ruben Zacarias

Helena Parente Cunha (Salvador, BA, 1930 – 2023) era licenciada em Letras (1952), mestre (1972) e doutora (1974) em Teoria literária, e livre-docente em Letras italianas (1976), tendo lecionado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) a partir de 1968, onde também foi professora emérita até 1997. Enquanto docente universitária e pesquisadora, sua contribuição é vasta e reúne diversas traduções, ensaios e publicações de livros sobre teoria literária, literatura brasileira e literatura italiana. Sua estreia como escritora se deu com Corpo do gozo (1960), um livro de poesias que dá início a um próspero caminho de publicações da autora nesse gênero literário. Além disso, também enveredou pela prosa, sendo Mulher no espelho (1983), seu primeiro romance, vencedor do segundo lugar no Prêmio Cruz e Sousa de 1982.

Embora o romance de estreia de Helena Parente Cunha tenha como pano de fundo a cidade de Salvador, provavelmente aquela situada entre as décadas de 1960 e 1970, não são poucos os momentos na narrativa em que a ambientação parece ser a Bahia do século XIX, haja vista os valores patriarcais e escravocratas que continuam a ditar o desenvolvimento da nação e a formação da subjetividade de seus cidadãos e cidadãs, como é o caso da protagonista, a “mulher no espelho”, e de sua coadjuvante, a “mulher que escreve”, as duas principais vozes que costuram a ficção. Esta, por sua vez, não apresenta um enredo tradicional, pois o encadeamento das ações não é linear nem progressivo. Diferentemente disso, a trama de Mulher no espelho é repleta de digressões, saltos temporais e flashbacks, características próprias de uma narrativa cujas meditações existenciais seguem o fluxo intempestivo da consciência.

A tessitura de Mulher no espelho é marcada por uma linguagem lírica, rítmica, repleta de aliterações e assonâncias, de modo a intensificar a experiência de quem lê, ante a vivacidade das imagens construídas. Tal estilo impera, mas não é unânime, pois também integram a urdidura do romance frases despretensiosamente concisas, cujo sentido é direto e preciso: “Eu não brincava com ele porque ele era preto”. Sem dúvida, há passagens nas quais essa dicção poética se desequilibra e flerta com um hermetismo vertiginoso, mas seu êxito não se enfraquece completamente, pois trechos como o que se segue não são raros: “Os meus braços empedrados se recusam a qualquer gesto. Os pés dormentes se fecharam a passos e passagens. Lodo e lama no desalento de ultrapassar. Aquém me quedo inerente ao lento deslocar da hora calosa. Nodosa. Chumbo fundo. Teias de aranha no meu pensamento. Impermeável ao sentimento, não choro não rio não grito não calo. Desvivo. Antivivo”.

O romance parte de uma investigação profunda da “mulher no espelho” sobre si mesma, a voz que dirige a narração quase como um monólogo. Contudo, por vezes, essa mulher cede espaço à sua criadora, a “mulher que escreve”, cujas falas são marcadas em itálico, indicando o (aparente) antagonismo entre as duas personagens: de um lado, a “mulher no espelho”, passiva, subserviente, relegada ao lar e ao mundo privado; do outro lado, a “mulher que escreve”, “mal educada”, disruptiva, contrária ao casamento, exploradora do próprio prazer sexual e das experiências do mundo público. Muitas vezes, as considerações da “mulher no espelho” sofrem réplicas da “mulher que escreve”, e vice-versa, como se as duas estivessem em constante embate: “Imagens às avessas, no frente a frente do espelho. Avesso. O avesso é igual ao lado contrário. O avesso é diferente do mesmo lado. Eu sou eu. Ela é ela”.

Diante dessa afirmação, é como se a “mulher no espelho” adivinhasse uma ânsia que imediatamente se impõe à leitura, advinda dessa dinâmica de narração: a “mulher no espelho” e a “mulher que escreve” são a mesma pessoa? Trata-se de uma memória ou uma versão antiga da “mulher que escreve”? Na verdade, tais questões nada mais são do que o dilema do frente a frente no espelho articulado enquanto tema e forma: a imagem que se vê é um Outro que, por sua vez, parte do Eu refletido, revelando duas personalidades diferentes que estão fadadas à perpétua investigação do que as separa. Se ora elas se aproximam, ora se distanciam, o caminho mais proveitoso é aderir às oscilações e ambiguidades do discurso narrativo.

No que tange à “mulher no espelho”, merecem destaque algumas características de sua construção, a começar pela figura imponente de seu pai, “Senhor e dono”, cujo autoritarismo respalda, simultaneamente, o antigo – e ainda vivo – ideal escravocrata de poder e o regime marcadamente masculino e patriarcal vigente: a ditadura militar. É como se a tirania do pai/marido, além de ter uma base escravista, continuasse se alimentando, pois é autorizada pelos cursos da nação que apenas renovam estruturas opressoras. É por isso que esses dois homens têm atitudes similares, não à toa a “mulher no espelho” frequentemente os aproxima em suas lembranças, quase sem nenhuma mediação quanto à sua condição de filha-criança e esposa-adulta, porque, diante de ambos, ela se sente igualmente repreendida e apequenada.

As presenças femininas na formação da “mulher do espelho” são principalmente duas: a mãe, silenciosa e ausente; e a ama de leite, a fiel escudeira. A respeito da primeira, pouco se fala, afinal sua influência reduziu-se a “silêncios e sussurros”. Em contrapartida, a segunda serve à família há gerações e é constantemente recordada com certa nostalgia, por meio da repetição da frase: “a mão preta, de um áspero bom e morno passando no meu rosto”. É lícito afirmar que um mote para a crise existencial vivenciada pela “mulher no espelho” é justamente a ausência de uma mãe preta na sua vida adulta, pois na infância e adolescência, quando os ratos roíam os seus pés – compreendendo a imagem dos “ratos” como uma espécie de sintoma dessa subjetividade atormentada –, quem sempre a amparou foi a mulher negra: “Minha ama não saía de junto”.

Aliás, tensões advindas da questão racial percorrem o romance, algo inevitável para se pensar o Brasil e, principalmente, a Bahia. Além da ama de leite, o “menino preto filho da cozinheira da casa do lado” também se encontra na memória da “mulher no espelho”. Impedida de ter qualquer contato com ele, a protagonista frequentemente o observa pela janela, chupando manga em cima de um muro, concreto e simbólico, que os distancia, fato que dá vazão a fantasias e confabulações. Em certas passagens, nota-se uma romantização do(a) negro(a), de modo a recuperar-lhe a aura nobre apagada durante o processo violento e desumanizador do tráfico negreiro e da escravização, e também um certo paternalismo, como se o negro desconhecesse as correntes por trás da vulnerabilidade social à qual está sujeito: “a preta do acarajé é tão velha que se lembra das estórias da senzala, só não sabe que pertence a uma família real e é tia da cozinheira da casa do lado”.

É preciso reiterar que a associação do povo preto diaspórico à tradicional realeza africana é contemporânea à publicação do romance, sendo amplamente difundida pelos diversos movimentos políticos e culturais negros espalhados pelo mundo à época, incluindo a cidade de Salvador. No histórico baiano, a década de 1970 é marcada, por exemplo, pela fundação do Núcleo de Cultura Afro-Brasileiro (1972), do Ilê Aiyê (1974) e do Olodum (1979), órgãos importantes no confronto do mito da democracia racial – reforçado pelo regime militar da época –, à popularização do candomblé e da capoeira. Apesar disso, em Mulher no espelho, o corpo negro, por vezes, recebe um tratamento exotizante, resultado de um fascínio que a “mulher do espelho” nutre por esse “menino preto” e pelos outros homens negros que aparecem na narrativa: “os homens pretos são fortes e me assustam” ou “Que preto bonito se apresentando no estrado. […] Não cai no cair do corpo após o salto. Os músculos firmes se contornando brilhantes, sob os focos de luz. A pele lustrosa, lisa, uma casca de fruta noturna”.

Opondo-se à protagonista, a “mulher que escreve” confronta a instituição do casamento, prega a liberdade feminina e representa o ideal feminista, efervescente nos anos 1970, principalmente enquanto movimento resistente à ditadura militar. Porém, conforme é refutada pela “mulher no espelho”, sua subjetividade se mostra igualmente atormentada, pois ela também tem os pés roídos por ratos: “Ser livre por necessidade de subverter um padrão, é o mesmo que se escravizar. Ela [a mulher que escreve] é escrava da liberdade. Minha submissão me liberta”. Nesse sentido, a “mulher que escreve” revela, paulatinamente, alguns impasses, tais como o escasso contato com mulheres à margem das classes abastadas, tampouco com pessoas racializadas, evidente nos momentos em que repreende a “mulher no espelho”: “[…] como se não bastasse, acabou de se apaixonar por um crioulo de baixa categoria, que nem sabe falar direito”.

Em suma, esse constante processo de descobrimento da “mulher no espelho” e da “mulher que escreve” deflagra contradições em nível micro e macro, cujo desvelar de tom intimista e confidencial confronta, simultaneamente, as várias imagens de si e de Brasil: “Ali sentada, eu via os quatro séculos de Bahia passando”. Mulher no espelho é uma obra que convida o leitor ao caminho das múltiplas perspectivas, pois, ao denunciar que nada é o que aparenta, revela as confluências entre os antagônicos, desequilibrando aquilo que é comumente pré-concebido: “velho” e “novo”; “pai” e “marido”; “mulher submissa” e “mulher disruptiva”; “criador” e “criatura”, etc. É um romance que fomenta discussões interessantes para a literatura brasileira contemporânea dos anos 1970 e dos dias de hoje.

Para saber mais

DUTRA, Maria Telma (2004). A narrativa especular em Helena Parente Cunha. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

GONZALEZ, Lélia (2020). Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: RIOS, Flavia; LIMA, Márcia (Orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. São Paulo: Zahar. p. 75-93.

HOFF, Patrícia Cristine (2020). Representatividade estilhaçada: uma leitura de Mulher no espelho, de Helena Parente Cunha. Estação literária, [S. l.], v. 25, p. 146-157. Disponível em: https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/estacaoliteraria/article/view/40322/pdf. Acesso em: 7 maio 2024.

MACENO, Regilane Barbosa (2018). A influência do patriarcalismo na identidade feminina em Mulher no espelho, de Helena Parente Cunha. Revista Ininga, [S. l.], v. 5, n. 2, p. 14-23. Disponível em: https://revistas.ufpi.br/index.php/ininga/article/view/8214. Acesso em: 7 maio 2024.

RECHE, Letícia Mendez Perez (2017). As múltiplas faces do espelho: uma análise da obra Mulher no espelho, de Helena Parente Cunha. Trabalho de Conclusão de Graduação (Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

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Como citar:

FARIAS, Júlia Batista Bernardes.
Mulher no espelho.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

25 mar. 2025.

Disponível em:

3939.

Acessado em:

19 maio. 2025.