MENEZES, Roberto. Julho é um bom mês para morrer. São Paulo: Patuá, 2015.
Egberto Guillermo Lima Vital
Ilustração: Manuela Dib
Laura, uma mulher cuja identidade flutua entre a lesbianidade e a bissexualidade, vive no limiar de um prédio destinado à demolição e da perda de todos os significados que seu apartamento ainda representa para ela, tal qual as fraturas de suas lembranças, que se desfragmentam em estilhaços de memórias.
Em Julho é um bom mês para morrer, de Roberto Menezes (Santa Rita, PB, 1978), Laura enfrenta o abandono materno, que a empurra numa busca incessante por respostas e possibilidades distantes. A obra apresenta uma narrativa contemporânea e urbana, impregnada de solidão e memórias fragmentadas, bem como de sujeitos descentrados que refletem um contexto de fracassos e introspecções profundas. Essa dinâmica é evocada pelas digressões da narradora-personagem enquanto escreve sua extensa carta de “prestação de contas” com a mãe, com seu passado, com as culpas internas que a assombram, com a própria vida.
Desafiando ordens judiciais, Laura recusa-se a entregar seu apartamento a uma empreiteira de João Pessoa, que conseguiu a concessão de todos os outros apartamentos de um antigo edifício em uma área nobre da capital paraibana, menos o dela. Ela se opôs à venda, mas seu imóvel foi desapropriado em um processo obscuro e duvidoso. Nesse movimento, ela escreve à mãe ausente, Lucy, em uma tentativa desesperada de preencher o vazio que a acompanha desde a infância. Através de cartas, Laura revisita suas memórias, revelando a dor do abandono e a revolta pela ausência de Lucy, além da culpa que toma para si pelo desfecho trágico da irmã e pelo descaso que imputa a si mesma em relação à avó.
A trama é permeada por elementos de uma existência tumultuada, moldada pela rejeição e pela carência afetiva. Os desafios nos relacionamentos familiares e outras relações interpessoais conduzem Laura a buscar nas drogas e em diferentes crenças uma forma de preencher seu vazio existencial, um padrão que se repete constantemente ao longo de seu relato — que flerta com a tendência contemporânea da escrita de si. Nesse ínterim, a avó, Noêmia, emerge como um eixo de transformação, enquanto a irmã, Lara, simboliza a culpa e a autorresponsabilização diante das incumbências adultas com as quais Laura parece não saber lidar, vivenciando movimentos de uma adolescência/juventude tardia e mal curada.
Um aspecto interessante dessa narrativa é que o eco do homem-escritor se dissolve, o que poderia acabar escoando em algum momento, mas aqui não acontece. Laura é uma narradora autônoma, e a narrativa é conduzida por sua voz de mulher. Menezes prova, em sua obra, que consegue se apropriar do ethos feminino para construir personagens mulheres com complexidade, e isso fica mais nítido quando se confronta essa obra com outras do autor em que o ethos retórico é masculino, a exemplo de Trago comigo as dores de todos os homens (2019), em que se está diante de um autor que se despe de si quando escreve. Isso é um ponto crucial para pensar a construção dos discursos no romance urbano contemporâneo.
Nesse sentido, a personagem Teresa é preponderante na trajetória de Laura, sobretudo na construção estética de sua autonomia como personagem-narradora. A professora desperta na aluna, mesmo que, à primeira vista, inconscientemente, o desejo sexual: “Quem diria que a primeira pessoa do mundo por quem eu teria tesão seria outra mulher. Ah, se não era possível. Não me sentia sapatão, não, nunca me senti […]”.
Com Teresa, os limites do corpo são avassalados por Laura quando ela se percebe envolvida erótico-afetivamente por sua professora: “Hoje acordei com o cheiro dela em meu corpo. Loucura? Não. Hoje acordei me sentindo a própria Teresa. Hoje acordei com a Teresa dentro de mim”. O discurso de Laura evidencia uma complexa interseção entre desejo e identidade, permeada por um contexto heteronormativo que molda suas percepções enquanto mulher que deseja o corpo de outra igual. Laura encontra-se em um conflito interno, tentando reconciliar sua própria identidade com os estereótipos pré-concebidos que a cercam ao utilizar o termo “sapatão”; ao mesmo tempo, ela revela uma desconexão entre sua identidade sexual e as normas impostas pela sociedade, apropriando-se desse termo como construto de uma imagem de si mesma.
É interessante observar que, apesar do desejo homoerótico de Laura, não se manifesta uma dicotomia clara entre uma personagem masculinizada e outra feminina. As representações das personagens não se enquadram nos estereótipos convencionais, desafiando assim as expectativas sociais e de gênero. A busca de Laura pelo desejo e a sensação de incompletude refletem uma jornada pessoal em direção à autodescoberta e aceitação. A virada do século também aparece como pano de fundo dos conflitos da protagonista nesse contexto.
A narrativa decadente, outra manifestação estética e conceitual do romance urbano contemporâneo, molda-se no apartamento de Laura. Suas paredes desgastadas e janelas empoeiradas tornam-se um símbolo de sua resistência contra a inevitável potência rebarbativa do progresso; seu prédio está à beira da ruína, mas ela ainda insiste em manter de pé o que lhe confere identidade e dignidade: seu lugar de morada. Enquanto as máquinas pesadas se aproximam para demolir o prédio, Laura se agarra às lembranças que ali orbitam, como se cada rachadura nas paredes fosse uma fissura em sua própria carne.
No labirinto dessas memórias entrelaçadas, Laura dança ao ritmo de uma narrativa não linear, onde o tempo se dobra e se estica como um tecido fluido. Menezes usa o artífice habilidoso da digressão, enquanto brinca com os fios do passado, presente e futuro, desafia os paradigmas convencionais do gênero “romance”, dissolvendo a linearidade do começo, meio e fim, cerzindo uma colcha de retalhos com os fragmentos das lembranças de Laura e costurando juntos momentos dispersos em um mosaico de emoções e experiências, que se aglutinam como cacos de um vitral. Nessa abordagem estética, cada lembrança é um ponto de partida, ao passo que também é um ponto de retorno, em que uma ponta solta se entrelaça com outras, formando uma tapeçaria de significados, em que até Maria Valéria Rezende aparece como personagem.
Ao explorar as memórias de Laura de forma não linear, Menezes não apenas dialoga com uma proposta contemporânea, mas também desconstrói a ficção do Nordeste árido, marcado pela seca e fome. Ele nos convida a mergulhar em um Nordeste urbano que problematiza questões universais, inserido em uma agenda globalizada, por meio de um recurso em que o tempo é maleável e as histórias se desdobram em múltiplas direções. Trata-se, sem dúvida, de uma estratégia do autor para desafiar as convenções narrativas esperadas de uma obra fora do eixo sudestino, abrindo espaço para novas formas de experienciar a literatura produzida na Paraíba. Menezes se afasta dos exotismos e folclorismos frequentemente associados à região, demarcando uma estética própria de seu lugar de produção e desmistificando a ideia de que o Nordeste é uma coisa só.
É nesse movimento que Laura transforma os corredores vazios e os quartos abandonados de seu prédio no cenário imagético de sua infância, marcada pelo abandono. Ela revive momentos de ternura com sua avó Noêmia e as feridas abertas pela ausência de Lucy. Cada objeto empoeirado se torna um artefato pessoal de suas dores. As cartas para sua mãe ausente transformam-se em confissões íntimas, nas quais Laura derrama suas mágoas e esperanças no texto escrito, uma vez que já não tem mais para quem falar, exceto a folha de papel. Ela busca entender as razões por trás do abandono, lutando para reconciliar a dor da rejeição com seus anseios por amor e aceitação. No entanto, a presença fantasmagórica de sua irmã, Lara, paira sobre ela como uma sombra, lembrando-a das responsabilidades não assumidas e das feridas compartilhadas.
Laura se debate entre o desejo de libertação e a âncora do passado, navegando pelas águas turbulentas de sua própria identidade. Essas águas lodosas são visualmente representadas no trabalho gráfico da capa, onde o verde-lodo engole as ruínas de uma torre em possível declínio. Entre os escombros do prédio condenado, Laura encontra refúgio nas paredes seladas de seu apartamento, buscando respostas para suas perguntas e alívio para sua angústia interior. Cada tragada de ar é um escape temporário, uma pausa na busca implacável por significado em um mundo indiferente.
Assim, Julho é um bom mês para morrer é a narrativa de uma mulher solitária lutando contra as adversidades, mas é também uma reflexão sobre a natureza da identidade, da família e da busca pela própria verdade em um mundo em constante mudança.
Para saber mais
OLIVEIRA, Dyanna Lúcia Nascimento (2018). Aspectos da personagem contemporânea no romance Julho é um bom mês para morrer, de Roberto Menezes da Silva. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Leras Português) – Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande.
SOUSA, Fabrício Batista de (2016). A identidade pós-moderna de Laura em Julho é um bom mês pra morrer, de Roberto Menezes: uma proposta didática para sala de aula. In: ENCONTRO NACIONAL DE LITERATURA INFANTO-JUVENIL E ENSINO, 6., Campina Grande, 2016. Anais […]. Campina Grande: Realize Eventos Científicos e Editora Ltda. Disponível em: https://www.editorarealize.com.br/editora/anais/enlije/2016/TRABALHO_EV063_MD1_SA15_ID911_22072016112141.pdf. Acesso em: 20 maio 2023.
SOUSA, Fabrício Batista de (2017). Homoafetividade e fragmentação identitária em Julho é um bom mês paramorrer, de Roberto Menezes. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação de Letras) – Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande.
Iconografia