BINS, Patrícia Doreen. Jogo de fiar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
Cecilia Silva Furquim Marinho
Ilustração: Ruben Zacarias
Patrícia Doreen Bins (Rio de Janeiro, RJ, 1928 – Porto Alegre, RS, 2008) estreou como romancista com Jogo de fiar, em 1983, abordando temas como a solidão, o medo da morte, a incomunicabilidade nos relacionamentos, conflitos eróticos e espirituais femininos e a construção da identidade. Nesse momento, ela já trazia, na bagagem, doze anos de experiência no universo da escrita, atuando como jornalista de um suplemento cultural na capital gaúcha, bem como a publicação de um livro de contos e crônicas lançado em 1982: O assassinato dos pombos.
Em entrevistas para jornais de Porto Alegre, a autora conta que, durante o processo de produção de Jogo de fiar, teria tido um insight continuador dos temas ali presentes, possibilitando que o livro fosse seguido por mais dois, compondo a que foi sua primeira trilogia, de um total de três. A “Trilogia da solidão” incluiu os posteriores Antes que o amor acabe (1984) e Janela do sonho (1987), todos pela editora Nova Fronteira. Foi uma estreia de impacto, já que recebeu para Jogo de fiar o Prêmio Medalha da Inconfidência — grau Ouro, em Minas Gerais.
Depois disso, Bins escreveu mais onze livros, ganhou cinco prêmios, participou de antologias de contos no Brasil e no exterior e recebeu homenagens, como a posse da cadeira no 26 da Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul. No entanto, como outras de autoria feminina, a obra sofreu um silenciamento parcial, na medida em que sua profunda exploração de aspectos da condição feminina foi divulgada mais no curto prazo e nos limites do espaço regional de sua atuação, prejudicando sua projeção nacional e contribuição para as gerações vindouras, apesar de merecer mais atenção.
O enredo trabalha com uma série de elementos autobiográficos ao eleger, como protagonista, uma mulher de meia-idade que relata de forma fragmentária e não linear sua trajetória de filha de estrangeiros estabelecidos nas montanhas do Rio Grande do Sul, depois de passar por uma cidade litorânea e por uma residência com quintal ao lado de um bosque, refletindo a experiência que Bins teve também no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte. Desse modo, sem delimitação precisa, num ir e vir, vêm a infância numa bolha inglesa dentro da cultura brasileira, a educação bilíngue, a trajetória dos pais, a vinda da irmã menor, da primeira menstruação, da primeira paixão, do casamento. Seguindo a tradição intimista explorada por James Joyce e Virgínia Woolf, bem como por Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles, Jogo de fiar prioriza o tempo psicológico em detrimento do cronológico, e a expressão dos estados de alma se concretiza no uso de linguagem poética e investimento mais na atmosfera do que em linhas de ação, com descrições carregadas de imagens simbólicas.
A obra se estrutura em três partes: “Terra”, “Desmemória” e “Elegia”. A primeira ocupa aproximadamente metade da narrativa, a segunda, pouco mais de um terço, e a última traz um breve epílogo que se reconecta à cena de abertura do livro, em que a protagonista, “A”, se encontra em seu “palco doméstico” vestindo uma “camisola leve, rota, com manchas de terra e sangue”. “A” está diante de uma mesa de jantar típica de classe média em situações de comemoração romântica: louça azul e branca – dando destaque a uma terrina de Macau ao centro, cuja tampa teria, há pouco, se quebrado no chão – além de copos, candelabros, velas escorridas e garrafas de Liebfraumilch. É sugestiva a nomeação explícita desse vinho alemão branco de teor adocicado e preços acessíveis que foi popular nos anos 1970 e 1980 no Brasil, significando literalmente “leite da mulher amada”. Outra imagem que passa a ter presença constante e significativa é a do objeto em que “A” procura se ver refletida: “no banheiro o tríplice espelho me devolvia imagens”. Porém, depois do espelho ter sido estilhaçado, ela diz: “Crio coragem e dirijo-me ao espelho do hall. Este é uno, não tríplice”, insinuando a desfragmentação identitária no fim, após o movimento de juntar os cacos da tampa da terrina espalhados pelo chão. Esta porcelana, sendo exportada para o Brasil pelo porto de Macau desde o século XVI, tornou-se um objeto representativo da colonização portuguesa no Brasil.
Revela-se aos poucos que o jantar foi uma similar tentativa de juntar os cacos do relacionamento conjugal em crise de “A” e Daniel, seu marido. Como a estrutura psicológica, social e familiar permeia parcerias afetivas e econômicas entre pessoas de formação e status diferentes, é imperioso para a protagonista revisitar etapas de sua vida, desejos e opressões na busca de uma identidade menos refém e apta para o amor. Nessa procura, “A” volta ao tempo de meninice, no período entre guerras, quando expõe o não lugar de alguém que, apesar de nascida no Brasil, mal interage com essa cultura, vivendo uma espécie de exílio solitário da Europa, região ligada à sua língua e história. Nesse sentido, a orelha de Guilhermino César para a primeira edição é precisa quando se refere a Jogo de fiar como um caso “tipicamente sulino” de “marginalismo psicológico” nas famílias estrangeiras que constituem “microcosmos domésticos ressentidos, à força do insulamento cultural, perante o meio em que no entanto prosperam e se radicam”.
A mãe de “A”, Norah, um dos seus reflexos no tríplice espelho, é uma mulher cuja dificuldade de se amalgamar ao novo ambiente se intensifica, seja por seu temperamento, seja pela falta de autonomia, já que não trabalhava e limitava-se a cuidar da prole e da casa. A essa imobilidade, a silenciosa Norah reagia promovendo constante reordenação interna da mobília doméstica. Prolongou sua vida na esperança de um dia voltarem à Europa, o que se cumpriu apenas como uma breve visita, tornando longínqua a possibilidade de restauração do mundo passado, seja no Brasil ou na Europa, diante da destruição bárbara efetuada pela Segunda Grande Guerra.
“A” projeta seus nós existenciais naquilo que interpreta como “traições”, mencionando no início algumas, como a privacidade noturna dos pais impedindo-a de entrar com as portas fechadas, o primeiro flerte prazeroso com um “tio emprestado” levado para longe por uma mulher, o nascimento da irmã Isabel guardado como segredo e revelado somente pelo corpinho bebê já presente, roubando as atenções. “A” se retrai e mergulha no universo da leitura, restituindo, de certa forma, a voz que teria perdido: “uma voz sem som”. Após o início da guerra, já estabelecidos no Sul, vem a menstruação, outro segredo que lhe toma sem nenhum preparo materno e que se soma à sua lista de “traições”. Mais trágica é a morte precoce do seu primeiro amor de adolescência, Aaron, artista cedo vitimado pelo câncer. Na luta, “A” se recupera tanto do ciúme de Caim, estabelecendo um vínculo de cuidados maternos com a irmã asmática, como da perda amorosa, explorando novas relações e seu corpo. No entanto, segue-se a dor inconsolável da perda do pai – sua fortaleza –, outra importante faceta identitária de “A”.
A segunda parte, “Desmemória”, retorna novamente à cena do jantar, sinalizando a necessidade de reconstrução desses pedaços soltos e esquecidos: o encontro com Daniel, a vinda dos filhos, a traição do afastamento, da dissimulação cotidiana. Esse esforço de reordenação deixa claro que se misturam dados reais e inventados, tanto pelo modelo real da protagonista quanto pela própria semifictícia narradora a manusear o fio que costura e desafia a incompletude, além da escritora que está por trás dela.
Nesse tecer e destecer, a narrativa se apresenta metalinguisticamente diante dos leitores: “Começo a rir porque me ocorre ser tudo inútil, até esse imenso casulo que acabo de reproduzir e no qual me enrolei para nunca mais”. Tal casulo se apropria de uma noção de tempo em que presente, passado e futuro são interpenetráveis. Nesse ponto, a reconstituição de intimidades partilhadas pelo casal expõe as diferenças de gênero na lida com a sociedade. É estendida ao homem a tomada da narrativa em primeira pessoa, com e sem travessão, sugerindo ser Daniel o terceiro reflexo de “A” no espelho. Ele, austríaco de família caucasiana, seca, antisséptica, confronta a dupla moralidade, com imposições carnais ao macho despidas de afeto, o medo do Deus católico punitivo, o racismo velado, a exigência da dureza e a proibição do choro. Sua forma de apropriação salvadora da experiência, algo que o casal tem em comum, são as artes plásticas, o desenho.
Em seguida, o sujeito narrador retorna para o ponto de vista da mulher, que contempla preocupada o fruto dessa união, seus dois filhos, bem como o reencontro com a mãe, agora sua filha. Há um ápice do sofrimento e desilusão em que o medo da morte se transforma em atração. Seria essa a derradeira traição?
“Elegia” fecha o livro de forma aberta, descortinando, trazendo a ideia de renascimento através da morte, religando-a ao ato amoroso carnal: o encontro de Tânatos e Eros. Tal ligação, já teorizada por Georges Bataille nos anos 1950, coloca Jogo de fiar junto a outras explorações abertas do impulso sexual feminino, como as que empreendem Hilda Hilst e Olga Savary, desafiando o regresso moralista da ditadura militar, iniciada em 1964 e, no momento de seu lançamento, em franco declínio.
É uma obra que investe na afirmação da mulher erotizada em plena menopausa, a recuperar seu nome perdido, congelado numa inicial. Assimila os influxos da passada segunda onda feminista e algo do então contemporâneo feminismo interseccional, apesar de a autora ter se identificado com a maioria das intelectuais brasileiras que, como autoproteção, à época recusaram o rótulo de feminista. Sua obra, no entanto, partilha dessa necessidade de mergulho desassossegado na experiência específica e resistente de uma mulher por suas próprias lentes, dando asas à sua voz.
Para saber mais
CÉSAR, Guilherminho. [Orelha do livro]. In: BINS, Patrícia Doreen. Jogo de fiar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
MARINHO, Cecilia Silva Furquim (2024). A palavra da mulher e o mundo do homem: três obras de autoria feminina na primeira metade do século XX. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) – Universidade de São Paulo, São Paulo.
SAMPAIO, Viviane (2019). Antes que o amor acabe: Patricia Bins, uma fotobiografia. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
Iconografia