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Chegou o governador

ÉLIS, Bernardo. Chegou o governador. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.

Penélope Eiko Aragaki Salles
Ilustração: Guilherme Franzoni

O romance Chegou o governador, de Bernardo Élis (Corumbá de Goiás, GO, 1915 – 1997), publicado em 1987, propõe a recriação dos primeiros anos do século XIX no estado de Goiás. A narrativa começa com a chegada do nobre português D. Francisco de Assis Mascarenhas a Vila Boa de Santana de Goiás, em meados de 1804, quando assume o cargo de governador, ou capitão-general, da capitania. Em sua trajetória, D. Francisco encontrará não só um cenário de decadência e intrigas, mas também um período propício para envolvimentos amorosos.

Descendente da Casa Real de Bragança, o jovem nobre foi recebido com entusiasmo pelo povo, especialmente pelas mulheres, e com certa apreensão pela maioria dos homens. Como era comum na época, os altos dignitários da Coroa Portuguesa vinham para o Brasil desacompanhados e logo buscavam a companhia feminina. Todos sabiam que o capitão escolheria uma amante e, até que escolhesse uma mulher, os homens temiam que a escolha recaísse na sua.

Para alívio geral, o governador escolheu como amante Ângela Ludovico, filha de uma família influente da região. A jovem, praticamente noiva do alferes Rodrigues Jardim, envolveu-se com o nobre devido à ausência do alferes em uma missão no Pará. Com o tempo, D. Francisco se aproximou cada vez mais de Ângela.

Quando Ângela engravidou, seu pai tentou separá-la de D. Francisco, mas o governador a resgatou e propôs que ela e o filho vivessem no palácio. Apesar da insistência de Ângela no matrimônio e no reconhecimento da paternidade, o governador recusou-se a casar-se com ela. O relacionamento continuou até que D. Francisco novamente não reconheceu o segundo filho. Após essa recusa, Ângela o abandonou definitivamente e retomou seu relacionamento com o antigo namorado.

Ângela é retratada como uma heroína moderna, recusando-se a ser apenas a amante, independentemente da nobreza ou posição social de seu parceiro. Ela desejava formalizar sua relação, casar-se, ter filhos legítimos e viver abertamente com o marido, em busca de “respeito e dignidade” perante a sociedade e Deus. Ângela aceitou ser amante até descobrir a gravidez, quando não pôde mais esconder sua condição. Após a recusa do governador em se casar, ela tomou a decisão de se unir ao antigo namorado, mesmo sabendo que essa escolha seria vista como indecorosa, uma vez que já tinha dois filhos.

O casamento com o alferes, que não era nobre e tinha uma patente militar baixa, não afetaria a posição social de Ângela, sendo uma solução mais aceitável para sua família do que vê-la como amante com filhos ilegítimos. Para o conde, apesar de ferir seu ego, essa decisão foi conveniente, pois o liberava para buscar outros relacionamentos mais vantajosos, tanto social quanto financeiramente.

Inconformado com a atitude de Ângela e seu casamento com o alferes, D. Francisco decidiu deixar Goiás e seguir para a capitania de Minas Gerais. A narrativa termina com o nobre à espera de seu sucessor, que, assim como ele, causará grande alvoroço na população local.

A mineração quase não existia mais, com 40% da população composta por vadios e desocupados, enquanto os impostos abusivos da coroa portuguesa empobreciam a população já reduzida. Os habitantes abandonaram os núcleos urbanos, e as práticas religiosas foram praticamente esquecidas pela maioria. Élis descreve um cenário de ruínas e decadência, onde os homens parecem lamentar uma glória extinta em meio a construções em deterioração.

Apesar de trazer eventos, fatos e personagens históricos – como os movimentos separatistas (Inconfidência Mineira e Revolta dos Alfaiates, na Bahia), as ameaças de invasão de Napoleão Bonaparte, o Bloqueio Continental, e a chegada da família real ao Brasil –, a obra mescla história e ficção. O autor também faz referências a figuras históricas importantes, como Napoleão, o Marquês de Pombal, a rainha Maria I, o príncipe regente D. João I, e o próprio governador D. Francisco de Assis Mascarenhas. A narrativa se entrelaça entre história e ficção, recriando o período e seus personagens, mas com liberdade criativa para explorar as interações e o drama pessoal, sem deixar de lado o pano de fundo político e social da época.

Embora o próprio autor recuse essa classificação, Chegou o governador pode ser considerado um romance histórico, pois faz uso de importantes fatos da época em uma abordagem literária. As personagens inventadas, geralmente figuras comuns, são diretamente afetadas por grandes eventos históricos. No caso desse romance, destacam-se as ameaças de invasão territorial por Napoleão Bonaparte, a chegada da família real ao Brasil e a escravidão.

Como mencionado anteriormente, a ficcionalização desse período pode ser interpretada como uma tentativa do romancista de dar visibilidade aos costumes da época. No entanto, o discurso do narrador minimiza a exploração da coroa portuguesa sobre a colônia e demonstra certa condescendência em relação aos abusos dos altos dignitários portugueses, como o concubinato. O narrador destaca que os portugueses de origem, especialmente aqueles em cargos administrativos importantes, evitavam casar-se com mulheres negras, indígenas, não brancas, judias ou ciganas. Mesmo entre as mulheres brancas, era necessário ter um título de nobreza ou grande fortuna para se casar com homens portugueses nessas posições.

Essa prática permitia que as autoridades evitassem casar-se com brasileiras, já que os nobres só podiam se unir a pessoas da nobreza ou ricas e, claro, europeias. Aqueles que desrespeitassem essas normas enfrentavam impiedosa perseguição e ostensivas pressões sociais. Devido a essas restrições matrimoniais, muitos portugueses, especialmente os altos dignitários da coroa, acabavam se envolvendo com mulheres das categorias proibidas. Esses relacionamentos geravam escândalos e uma numerosa prole que não podia ser legitimada. Geralmente, esses filhos não herdavam a fortuna paterna, que frequentemente se perdia em descaminhos, dissimulações e fraudes.

Embora uma obra deva ser compreendida em seu contexto social, cultural e histórico, o narrador expõe os preconceitos de classe, gênero e raça predominantes na época, atribuindo inferioridade àqueles que não se encaixavam no ideal de branquitude e heteronormatividade, algo considerado aceitável no período. Desde o início, o narrador insiste em retratar pessoas negras de forma inferiorizada. O tratamento violento às pessoas escravizadas, comum no período colonial, não recebe nenhuma crítica ou questionamento, refletindo a conivência do narrador com essa conduta, que é apresentada como normal.

Para exemplificar a violência presente no romance, destaca-se o uso lexical de termos como “pretinho”, “pretinha”, “preto”, “preta”, “negrinha” e “mulata”, que desumanizam e reduzem os corpos negros, evidenciando o discurso racista impregnado no texto. A obra glorifica o período colonial ao descrever esse contexto de dominação racial: “desse mundo talvez hostil para eles africanos, africanos tão estranhos para os brancos que eram os donos do mundo, dos pretos, do ouro e do cobre, da água e de parte dos deuses e magos”.

Além disso, o narrador descreve episódios de extrema violência, como o estupro de uma jovem escravizada pelo governador, como se fossem práticas banais. Nessa cena, a jovem é retratada de maneira desumanizadora, com ênfase na objetificação de seu corpo e na animalização de seus atributos físicos: “E como não estivesse muito familiarizado com negras, a jovem assemelhava-se mais a um bichinho do que a uma pessoa humana, na sua tez escura mas não de todo negra, com suas formas adolescentes que antes se adivinhavam sob as vestes grossas mas escassas”.

Desde o período colonial, os abusos sexuais contra mulheres negras eram frequentemente romantizados ou apresentados como conquistas pelos abusadores, ilustrando a desumanização dos corpos negros para justificar a violência. Em contraste, embora as mulheres brancas ocupassem uma posição socialmente privilegiada, elas careciam de autonomia financeira e independência, frequentemente se submetendo ao concubinato em busca de proteção. Essas mulheres eram tratadas como propriedade dos homens e viviam superficialmente, focadas em roupas, fofocas e relacionamentos amorosos, enquanto os homens temiam ser abandonados por elas.

Ao empregar eventos reais como cenário para uma narrativa fictícia e criar interações entre personalidades históricas e personagens inventados, Bernardo Élis mistura fatos com ficção. Neste sentido, a precisão histórica em detalhes como costumes, moda, eventos políticos e sociais foi crucial para construir uma ambientação do período retratado.

O autor utiliza essa premissa para explorar questões como a complexa relação entre Portugal e Brasil, a exploração dos escravizados, a dinâmica e os costumes de uma sociedade oitocentista, mostrando a decadência de uma região que havia sido próspera no passado.

Por fim, Chegou o governador é um romance que convida a refletir sobre as discriminações baseadas em classe, gênero, origem e raça, desafiando convenções e propondo uma análise crítica das relações de poder e dos costumes da época.

Para saber mais

CURADO, João Guilherme da Trindade (2021). Personagens negros em obras de Bernardo Élis. Revista Sapiência: sociedade, saberes e práticas educacionais, II Edição Especial Bernardo Élis, v. 10, n. 4, p. 1-14. Disponível em: https://www.revista.ueg.br/index.php/sapiencia/issue/view/640. Acesso em: 6 out. 2024.

PAULA, Gabriel de (2014). Bernardo Élis: de Corumbá de Goiás ao mar. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia. Disponível em: http://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/3554. Acesso em: 6 out. 2024.

SAINT-HILAIRE, Auguste de (1975). Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Tradução de Vivaldi Moreira. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP.

SILVA, Rogério Max Canedo (2011). Por essas estradas o homem voa nas asas de sua fantasia: romance e história em Chegou o governador, de Bernardo Élis. Dissertação (Mestrado em Linguística, Letras e Artes) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia. Disponível em: http://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tde/2419. Acesso em: 6 out. 2024.

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Como citar:

SALLES, Penélope Eiko Aragaki.
Chegou o governador.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

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brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

25 mar. 2025.

Disponível em:

3824.

Acessado em:

19 maio. 2025.