Ir para o conteúdo

Canumã: a travessia

CARDOSO, Ytanajé Coelho. Canumã: a travessia. Manaus: Valer, 2019.

Carolina Montebelo Barcelos
Ilustração: Théo Crisóstomo

Durante séculos, o indígena foi objeto da literatura. Em um primeiro momento, com a colonização e a escrita de catequese quinhentista de jesuítas como Padre José de Anchieta e Padre Manuel da Nóbrega, que marginalizavam o nativo; em um segundo momento, no século XIX, com autores como José de Alencar e Gonçalves Dias, que elaboraram um indígena heroico sem, contudo, perscrutarem a cultura ameríndia e, em um terceiro momento, com a tese da miscigenação de, por exemplo, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro, que vem colaborar com o apagamento do caráter autônomo da cultura indígena.

É a partir dos anos de 1970 e 1980, com o fortalecimento da escrita entre indígenas, culminando na década de 1990, que começam a surgir escritores como Eliana Potiguara, Daniel Munduruku, Kaká Werá Jecupé e Olívio Jekupe. Trata-se, portanto, de uma autoria individual do indígena como sujeito da escrita de sua história, não obstante o aspecto coletivo das obras, posto que dizem respeito a uma multiplicidade de vozes de determinados povos indígenas. Nesse sentido, Graça Graúna assevera que é por meio da auto-história na literatura indígena contemporânea que autoras e autores expressam seus costumes, línguas, crenças, organização social e relações com a terra.

Dentre esses autores encontra-se Ytanajé Coelho Cardoso (Kwatá, Borba, AM, 1990). O autor também figura entre aqueles indígenas que não são mais apenas objetos de pesquisas acadêmicas, uma vez que ele é bacharel e mestre em Letras e doutor em Educação, com tese defendida em educação e literatura indígena, além de ter publicado diversos artigos sobre tais temas. Cardoso é também professor de Língua Portuguesa da Secretaria de Educação e Desporto do Amazonas (Seduc) desde 2016.

Seu romance de estreia, Canumã: a travessia, o primeiro escrito por um Munduruku, trata, em linhas gerais, da migração de uma família Munduruku da aldeia Kwatá, no Amazonas, para a cidade de Nova Olinda, no mesmo estado. A mudança para a cidade ocorre devido ao entendimento do casal Antônio e Maria de que, assim, seus filhos poderiam prosperar. Além do percurso pelo rio Canumã, um afluente do Madeira, para chegar a Nova Olinda, várias outras travessias estão presentes no romance.

Canumã: a travessia, em sua primeira edição, conta com o complemento “romance munduruku”, o que, para o autor, foi uma estratégia de marketing que não o agradou. Assim, a seu pedido, a segunda edição não conta mais com a observação. O romance é dividido em dezoito capítulos sem títulos. A voz narrativa é em primeira pessoa, a do personagem Felipe. Embora o narrador tenha um nome que não o do autor, há diversos pontos em comum entre a vida do narrador e a do escritor, fazendo com que o romance seja também um registro das memórias e trajetória de Cardoso, ou de sua auto-história.

Tanto na oralidade quanto na escrita, a figura do narrador da literatura indígena é de grande relevância. Assim, além do próprio narrador do romance, há um personagem crucial na narrativa, o ancião Parawá, que simboliza os anciãos e anciãs, avôs e avós que contam histórias para crianças e jovens e, desse modo, os educam. Parawá é um narrador oral que, com todo seu conhecimento ancestral, conta histórias para os mais jovens a fim de que a memória de seu povo não seja esquecida. Uma delas é a de Karosakaybu, uma entidade suprema que deu início ao povo munduruku. Uma outra história, dessa vez trazida da memória da avó do narrador, é sobre toda a violência imposta aos indígenas da região quando da chegada da catequese após a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em 1910, instituição que via no indígena um entrave para o projeto nacional desenvolvimentista e foi responsável por violações dos direitos dessa população.

Embora Parawá defenda que sua terra, com o rio e a floresta, provê a todos, após discordar da decisão de Antônio e Maria de ir para a cidade com os filhos, ele acaba concordando com a decisão da família sob a justificativa de que, por meio dos estudos na cidade, os Munduruku podem defender seu povo: “Porque vai chegar o dia que vão querer tomar nossas terra, aí a gente vai ter que falar que nem o branco, pra poder defender a nossa casa, né”. Maria já tinha isso em mente quando ansiava pela mudança da família. Segundo a matriarca, se outrora os guerreiros indígenas defendiam seu povo com arco e flecha, hoje a defesa se dá por meio do estudo. Desse modo, ela afirma que, atualmente, o indígena consegue crescer quando conhece a “escola dos pariwát”, do homem branco.

Essa é, portanto, uma outra travessia presente no romance: da educação na aldeia, realizada pelos pais e, principalmente, pelos avós, para a educação na cidade. Embora a obra reconheça a importância da educação formal, mormente pelas vozes de Maria e de Parawá, e como a cultura e a tradição indígenas estivessem ausentes no currículo escolar, a experiência na escola da cidade é narrada de forma a evidenciar o preconceito que sofriam, levando o narrador a ponderar que “talvez entrar na escola fosse uma das maiores violências de nossas vidas”.

A morte de Parawá acena para uma outra travessia, o processo de diluição da figura do narrador oral e, portanto, o de transposição da oralidade para a escrita. Essa morte também simboliza o temor do narrador pela possível extinção da língua munduruku. Como o autor assinala em sua tese de doutorado, a partir do final do século XX, quando a história do romance transcorre, a língua munduruku era falada apenas por alguns anciãos e anciãs. Assim, Parawá é um dos últimos falantes dela na região. E o temor do narrador com o fim da língua de seu povo se dá porque, como ele diz, na língua há honra, arte, cultura, política e lei, e, assim, junto com a extinção da língua e do narrador oral, pode haver o apagamento da memória ancestral dos Munduruku e demais povos indígenas.

Feita a travessia da tradição/aldeia para a modernidade/cidade, são apresentadas ao leitor as dificuldades com que os indígenas se deparam: o acesso a trabalho, vestuário e moradia dignos, bem como os olhares preconceituosos e comentários humilhantes dos não indígenas. Mas é também na cidade que o acesso do personagem Raçâp, irmão mais velho do narrador, à universidade garante àquele formação em Antropologia e, com ela, suas críticas à representação dos indígenas a partir do ponto de vista de não indígenas, como é o caso da discussão do personagem em torno de Macunaíma, de Mário de Andrade, e Nove noites, de Bernardo Carvalho. Também o estudo universitário faz o narrador conjecturar que, devido à academia, faz-se uma trajetória de ignorância-arrogância-ignorância.

Apesar de o romance enaltecer a vida na aldeia no que se refere à cultura e à tradição, sobretudo na figura dos anciãos e anciãs que representam a sabedoria ancestral, há também críticas sociais, como a feita ao alcoolismo que acomete alguns e que, no romance, é solucionado por uma liderança indígena. Outro problema apresentado é o uso de tecnologia pelos jovens. Como alega o narrador, com a chegada da televisão no início da década de 1990, a maioria dos jovens deixou de ouvir os mais velhos para se prostrar de frente à tela, afastando-se da tradição e, portanto, do resgate da memória de seu povo.

A televisão, segundo o narrador, seria um instrumento de alienação não somente para os Munduruku, como também para toda a sociedade brasileira. Assim, programas da grande mídia que apresentam o indígena nu, pintado, correndo na mata e gritando são criticados, pois, dessa forma, estabelecem uma identidade unívoca para o indígena, “sem respeitar a diversidade e o processo de ressignificação”.

Canumã: a travessia, juntamente com outros romances indígenas, mostra a heterogeneidade ameríndia, o que foi por muito tempo incompreendido ou ignorado. Inclusive, a leitura de Ytanajé Coelho Cardoso e de Daniel Munduruku apresenta diferentes perspectivas dos povos Munduruku do Amazonas e do Pará. Destarte, Cardoso entra para o rol de autores que imprimem na escrita a memória ancestral e a relação do passado com o presente, da tradição com a modernidade. Essa literatura indígena contemporânea é, portanto, um ato de resistência ao preconceito, à opressão cultural, ao apagamento da memória e da tradição, e tudo isso pela voz autoral do próprio indígena.

Para saber mais

CARDOSO, Ytanajé Coelho (2023). A interculturalidade dialógica no currículo de linguagens da educação escolar Munduruku: a ascensão da literatura indígena. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Amazonas, Manaus. Disponível em: https://tede.ufam.edu.br/bitstream/tede/9640/11/Tese_YtanajeCardoso_PPGE.pdf. Acesso em: 14 abr. 2024.

FIGUEIREDO, Eurídice (2017). Eliane Potiguara e Daniel Munduruku: por uma cosmovisão ameríndia. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 53, p. 291-304. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/10345. Acesso em: 14 abr. 2024.

GRAÚNA, Graça (2013). Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza.

HONORATO, Suene (2021). O caderno e o lápis, armas indígenas contemporâneas: uma leitura de Canumã, de Ytanajé Coelho Cardoso. Aletria, Belo Horizonte, v. 31, n. 3, p. 35-53. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/27030. Acesso em: 14 abr. 2024.

SICSÚ, Delma Pacheco; PEREIRA, Danglei de Castro (2021). Denúncia e dialogismo em Canumã. In: PEREIRA, Danglei de Castro; SANTOS, Rosana Cristina Zanelatto (Orgs.). A insustentável leveza: a literatura e sua análise. Brasília: Editora da Universidade de Brasília. p. 29-64. Disponível em: https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/view/120/335/1040. Acesso em: 14 abr. 2024.

Iconografia

Tags:

Como citar:

BARCELOS, Carolina Montebelo.
Canumã: a travessia.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

25 mar. 2025.

Disponível em:

3822.

Acessado em:

19 maio. 2025.