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Atire em Sofia

COUTINHO, Sônia. Atire em Sofia. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

Ilmara Valois Bacelar Figueiredo Coutinho
Ilustração: Manuela Dib

Atire em sofia, romance de Sônia Coutinho (Itabuna, BA, 1939 – Rio de Janeiro, RJ, 2013), foi publicado em 1989, quando a autora já reunia uma vasta produção literária de contos, com uma galeria de personagens femininas que transitavam pelas páginas da literatura brasileira. A obra trata da morte de uma mulher em uma sociedade instada a limitar possibilidades e a considerar como perdição qualquer escolha capaz de contrariar os papéis previamente estabelecidos em torno do feminino. Por meio de uma narrativa teatral, fragmentada e disruptiva, a história de Sofia Rosário faz-se metonímia de gerações de mulheres ambientadas em uma cidade envolta por mistérios e condições que perpassam o tempo, alteram as circunstâncias, mas ratificam a conjuntura circular de um feminino que parece ter suas liberdades consideradas somente sob o véu da excentricidade, da crueldade ou da loucura.

O romance divide-se em cinco capítulos (“Verão com assombrações”, “Lágrimas de Iansã”, “Cidade-labirinto”, “Dedo no gatilho”, “Terror e gozo”) e apresenta um enredo atravessado por referenciais diversos, que agregam dados da cultura clássica, de massa e de matriz africana, recorrendo ao universo da música, do cinema, da literatura, dos mitos e das figuras lendárias e históricas. Envolve um grupo de jovens — Fernando, João Paulo, Tom, Maíra, Matilde, Sofia e Josué — que se conheceram no tempo de escola e se reencontram (exceto Josué, que havia morrido) na cidade não nomeada, mas identificada como Salvador, Bahia. O tempo da narrativa é circular, de maneira que as informações vão sendo apresentadas por meio de recortes que se colam e montam o mosaico do enredo. Há dois momentos importantes para a construção temporal da trama: o reencontro do grupo de amigos em Salvador, já na faixa dos 40 anos, quando ocorre a morte de Sofia; e o momento em que é contada a história do assassinato, mais de vinte anos depois, com as rememorações de Fernando dando início a cada capítulo.

O narrador em terceira pessoa inicia o romance com Fernando relembrando, enquanto folheia um álbum de fotografias, aquele verão “esquisito”, de chuvas torrenciais, inundações, desabamentos, visões/alucinações, “verão que tocou no mistério” e que reuniu a todos. Ele se demora ao olhar Sofia, a moça de “maquiagem pesada”, “sobrancelhas muito grossas” e “cabelo duro de laquê”. A narrativa, então, é atravessada por um fragmento em itálico que traz parte da história de Lilith (a primeira mulher de Adão, antes de Eva, segundo a mitologia judaica). O fragmento funciona, a exemplo dos coros das tragédias gregas, como um adiantamento do que está reservado àquela que, não aceitando seguir as determinações alheias à sua vontade, partiu em busca da realização dos próprios desejos: “Eu, Lilith […] conquistei minha liberdade e solidão”. No fragmento que liga as duas figuras femininas, Lilith recusa-se a voltar, mas Sofia voltou. Voltou depois de quase vinte anos para a “cidade-labirinto”, que não pode mais ser percebida como a mesma de antes e que parece devorá-la: “A cidade que ensina a morte”.

Três personagens são evidenciadas na trama: Sofia, João Paulo e Fernando. Sofia Rosário, jornalista, atriz e pintora, é uma mulher que se casou, separou-se, foi morar no Rio de Janeiro, casou-se outra vez, descasou, viajou, teve diversos relacionamentos amorosos e realização profissional, mas sente solidão e culpa por ter abandonado as duas filhas, Maura e Milena, com as quais tenta uma reaproximação frustrada ao retornar para Salvador. Fernando, advogado e professor de grego, é descrito como um homem que segue as normas, mas também obscuro, escondendo, sob o verniz do intelectual que assume a negritude crescente da cidade, preconceitos racistas, como ressalta o narrador: “Essa negritude cada vez mais assumida é um fenômeno que ele é inteligente demais para rejeitar, pelo menos publicamente, talvez porque saiba que é inevitável”. E João Paulo, jornalista que deixou o emprego no Rio de Janeiro, “à beira de um colapso”, voltou para Salvador com a finalidade de escrever um romance policial. João Paulo retoma uma relação para além da amizade que tem com Sofia, sente-se preso à cidade e, em muitos momentos, dá mostras de perder o contato com a realidade.

Atire em Sofia apresenta uma trama a ser lida em muitas direções, por trazer complexidades de cunho literário, psíquico, social, político e cultural, próprios de uma narrativa pós-moderna que busca espelhar a fragmentação dos sujeitos frente a uma cidade que também pode ser percebida como personagem. A narrativa marca a evidência de uma negritude que se afirma e floresce, de forma que a cidade dos brancos, dos referenciais greco-ibéricos, é também a cidade dos pretos, das conquistas, realizações e exaltações cada vez mais evidentes das culturas de matriz africana. A presença das divindades negras na narrativa não deixa de representar a “expansão negra” de que trata Tetu, personagem jovem negro que namora a filha de Sofia, Milena, também negra. Em “Lágrimas de Iansã”, pode-se ler a lenda de Iansã, seguida de um diálogo acerca da necessidade de criação de um conselho que una comunidade e Estado em prol das aspirações negras em diversos âmbitos: “social, cultural, jurídico, econômico e político”.

Enquanto reflexão sobre a escrita literária, o romance traz o processo de construção de um outro romance, uma metaficção que critica a escrita masculina patriarcal-controladora (explicada por Coutinho em Rainhas do crime, seu livro de crítica literária) e sua destinação de se apoderar das histórias das mulheres de forma insuficiente e egocêntrica. A personagem João Paulo e seu romance policial representam bem essa condição, pois, ao tentar realizar a obra, ele se coloca como protagonista, assumindo a figura de um “jornalista-investigador clássico” que busca desvendar o assassinato de uma “ex-Miss” (Laura Luedi), “madura”, “sofisticada” e “perversa”. Para tanto, lança mão da própria história e da história de Sofia (“Laura/Sofia/Eu Mesmo”), perde-se no feminino da cidade e fracassa na tentativa de escrever o romance policial pretendido.

As mulheres da trama parecem presas a uma condição de vida que transita entre a liberdade que conquistaram ou almejam e as amarras sociais que vivenciam, com casamentos fracassados, filhos sob a custódia do pai – detentores de melhores condições financeiras –, sexualidade reprimida ou por realizar, abandono e solidão, mesmo tendo asseguradas as condições de sobrevivência. Por isso mesmo, ao tratar das chuvas intensas, Sofia entende serem as lágrimas de Iansã “por muitas mulheres, gerações inteiras de mulheres que foram espezinhadas nesta cidade e nunca puderam protestar”, mulheres que estavam ainda aprendendo uma fala própria. Para além da figuração, há, no romance, a indicação de um desafio a enfrentar além da solidão: culpa e autopunição.

“Atire em Sofia” é um imperativo, e o assassinato dela, com três tiros no peito, espelhado também na inacabada ficção de João Paulo, não tem uma investigação descrita. Os noticiários dão conta de que o principal suspeito é João Paulo, que não mais foi visto depois da morte de Sofia. No processo da narração, é Fernando quem traça uma linha para o que teria sido o crime, mas suas lembranças aparecem como produto da imaginação, envolvendo o verão em que teve visões, sendo ele mesmo um suspeito. O assassinato trata-se de “vingança” ou “sacrifício”? Talvez apenas a tentativa, que se renova através dos tempos, de regredir, oprimir e manter privilégios. O que fica patente é que uma mulher foi morta por ser mulher, e que esta é uma morte envolta em mistérios que não chegam a ser desvendados. Longe de ser uma exceção, representa, no múltiplo mural que é a cidade “viscosa”, uma história banal, “uma história de classe média brasileira, num determinado período”. Ao final do romance, pode ser lida, no último atravessamento em itálico, uma nova aproximação de Sofia como Lilith, as Harpias, Medusa: “um dos meus privilégios é causar a loucura. Assim me viram os homens porque eu era livre e solitária”.

Em Atire em Sofia, Sônia Coutinho adentra o campo da escrita de autoria feminina voltada aos romances de crime – publicou também O caso Alice (1991) e Os seios de Pandora (1998) –, rompendo com a figura do detetive clássico e agregando referenciais que colocam em discussão o feminino em uma cidade ainda provinciana e ambígua demais para permitir que a mulher ultrapassasse a condição da morte. Mas não cabe colocar ao romance rótulos; pode-se considerar que o feminicídio circulou a escrita da autora, antecipando um tema que somente encontrou espaço amplo anos depois. A escrita de Sônia Coutinho marca sua relevância no cenário contemporâneo justamente por desconstruir modelos, por trazer discussões de relevância e atualidade inquestionáveis, e por assumir uma abordagem feminista voltada a criar caminhos diferenciados para a escrita literária.

Para saber mais

CASTRO, Janio Roque Barros de (2007). A cidade no romance Atire em Sofia, de Sônia Coutinho: um olhar geográfico. Textura, Cruz das Almas, v. 2., n. 2, p. 29-42. Disponível em: https://textura.emnuvens.com.br/textura/article/view/257. Acesso em: 12 abr. 2024.

COUTINHO, Sonia (1994). Rainhas do crime: ótica feminina no romance policial. Rio de Janeiro: Sette Letras.

LOBO, Luiza (1999). Micro-história e narrativa: o “ciclo dos romances de crime” de Sônia Coutinho. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS, 6. Anais…, v. 1, p. 958-996. Disponível em: https://lusitanistasail.press/index.php/ailpress/catalog/view/28/43/426. Acesso em: 3 jul. 2024.

LOPES, Nêmia Ribeiro Alves (2019). Representação do feminino: espaço e mito em Atire em Sofia, de Sônia Coutinho. Dissertação (Mestrado em Letras/Estudos Literários) – Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros.

RESENDE, Beatriz (2018). Sofia e a cidade. Revista Helena, n. 11. Disponível em: https://www.bpp.pr.gov.br/Helena/Noticia/Sofia-e-cidade. Acesso em: 12 abr. 2024.

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Como citar:

COUTINHO, Ilmara Valois Bacelar Figueiredo.
Atire em Sofia.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

25 mar. 2025.

Disponível em:

3819.

Acessado em:

19 maio. 2025.