SCHROEDER, Carlos Henrique. As fantasias eletivas. Rio de Janeiro: Record, 2014.
André Luiz dos Santos Rodrigues
Ilustração: Guilherme Franzoni
Publicado em 2014, As fantasias eletivas é um romance curto escrito por Carlos Henrique Schroeder (Trombudo Central, SC, 1975). Unindo o arranjo formal lacunar e a representação de um sujeito marginalizado, o romance parece buscar subverter o estereótipo do que é uma travesti, oscilando entre a inverossimilhança e a originalidade. Centrada na amizade entre Renê, um recepcionista de hotel, e Copi, uma travesti argentina que trabalha como prostituta e sonha em ser escritora, a história, contada em terceira pessoa, se passa na cidade turística de Balneário Camboriú, no estado de Santa Catarina.
Ambos se conhecem no hotel em que Renê trabalha. Certa vez, Copi deixa seu book com ele, a fim de que seja chamada por algum hóspede. Quando percebe que o recepcionista não apresentou seu trabalho para ninguém, Copi começa a passar todas as noites em frente ao hotel, até que, revoltada, joga um salto no recepcionista. Arrependida, a travesti começa a deixar presentes para Renê, momento em que selam as pazes e iniciam a amizade retratada no livro.
É uma amizade nascida em um local de trânsito – a cidade de Balneário Camboriú – e impessoalidade – o hotel em que Renê trabalha. Segundo a voz narrativa, Balneário era “também uma cidade de recomeços, muitas pessoas vinham para a cidade sepultar o passado, como Renê, como Copi”. Renê mudou-se para lá porque queria sepultar o ciúme, que quase matou sua ex-esposa e seu filho; Copi queria sepultar a vida que teve antes de se tornar quem queria ser, uma mulher.
Semelhanças significativas atam Renê e Copi, um sendo o espelhamento do outro: foram para Balneário Camboriú recomeçar suas vidas; ambos sentem como se não tivessem família – ele por ter se deixado tomar pelo ciúme e ter sido ejetado do círculo familiar, ela por ser travesti; ambos são premidos pela necessidade de sobrevivência – aquela que obriga à submissão a esquemas, à busca incessante por dinheiro, às relações por interesse – e pela esperança de conexão genuína com o outro – aquela que alivia o peso do cotidiano, conferindo-lhe cor, e permite que o ser se mostre estranho, defeituoso e desprotegido; e ambos possuem uma relação infeliz com a vida. Renê tenta se matar, mas não consegue. Copi, sim.
A história e a personalidade de cada um surgem entre prosa, poesia, diálogos que poderiam ser de uma peça teatral e fotografias, fazendo de As fantasias eletivas um romance com forma heterogênea e fragmentada, com lacunas que devem ser preenchidas por quem lê. O livro é dividido em quatro capítulos: “S de sangue”, “A solidão das coisas”, “Poesia completa de Copi” e “As fantasias eletivas”, sendo o primeiro e o quarto complementares, propriamente narrativos e subdivididos em capítulos intitulados com as letras do alfabeto. Os outros dois capítulos são a produção escrita de Copi, recuperada por Renê.
Se, muitas vezes, travestis são retratadas na literatura como prostitutas e viciadas em drogas, a narrativa de Schroeder adiciona a esse desenho a figura de uma escritora, colocando a personagem entre o estereótipo e sua subversão, na medida em que explora a subjetividade de Copi. O leitor percebe a personagem naquilo que possui de comum à categoria social dela e, sobretudo, naquilo que possui de específico como sujeito: sua infância em Las Heras, na província argentina de Mendoza; o período em que, na cidade de Buenos Aires, passou cursando jornalismo e estagiando em um jornal; o hábito da personagem de fotografar, com uma Polaroid, paisagens, situações, objetos e pequenos detalhes cotidianos; e o desejo de ela ser escritora. Contudo, por ser excessivamente acadêmico e não incluir gírias de seu grupo social, o linguajar de Copi é pouco verossímil. É difícil imaginar alguém que se considera cria das ruas elaborando um discurso tão restrito aos cacoetes universitários e literários.
A sensibilidade de Copi é nostálgica. Para ela, a experiência contemporânea é inautêntica, artificial e vazia. É uma experiência em que mais vale exibir carros e celulares do que um beijo apaixonado. “É o claro isolamento do afeto, do toque, do gesto”. Seu hábito de fotografar com uma câmera Polaroid, e não com o celular ou uma câmera digital, é um gesto que revela sua atração pelo espontâneo, pelo que passa despercebido e por aquilo que não pode se repetir. Uma vez que a foto é impressa pela câmera, não há como apagá-la, a não ser rasgando-a.
Copi entende que a fotografia e a literatura cristalizam a verdade do que se vive. Ela diz: “O que me move para a fotografia são as similaridades com a literatura. A fotografia quer congelar um instante, e a literatura, recriá-lo, e ambas têm essa capacidade de permitir uma outra visão das coisas”. Nesse sentido, tanto a fotografia quanto a literatura são recursos que permitem a um determinado instante eternizar-se, como reação ao fluxo frenético comum a cidades turísticas. São recursos que produzem memória “(que rege essas inúmeras fantasias eletivas que chamamos de lembranças)”.
Fantasias eletivas, afinidades eletivas. Além de Goethe, Copi cita em seus escritos Sartre, Beckett, Joyce e Nietzsche. Esses escritos, acompanhados de uma fotografia, jogam luz sobre a solidão, a ausência, a descartabilidade e o vazio. De cada instante, de cada objeto fotografado, Copi extraiu um pensamento sobre a existência. Entre outras coisas, ela capturou um relógio, um bar de hotel, um marcador de páginas, um corredor vazio, um espelho, uma nota de rodapé, um orelhão. A existência de Copi poderia ter desaparecido, tanto por sua solidão em Balneário Camboriú quanto por sua condição social marginalizada. Mas Renê guardou sua produção artística, e a voz narrativa de As fantasias eletivas enxertou-a no livro, sem ser literatura “de um leitor só, uma só solidão”.
Por um lado, os fragmentos que compõem o primeiro e o último capítulos são marcados pelo excesso de ações e informações, por um movimento constante em que pouco é efetivamente retido pelo leitor. Cada subcapítulo serve como a fotografia, o flash, de um instante expressivo da vida dos personagens, um álbum de fotografias que não obedece a cronologias ou relações diretas de causa e efeito, desierarquizando o passado e o presente, abrindo vazios entre um e outro acontecimento. Cada um desses flashes de vida está encimado por uma letra do alfabeto – este sendo, aliás, a única ordem linear que o romance apresenta –, sugerindo a tentativa de organizar os fatos e recomeçar do zero, a partir do abecê. Por outro lado, as fotografias de Copi e sua escrita poética fazem o romance inclinar-se para a paralisia, para a realidade estática e inabitada. A realidade percebida por um olhar prostrado, melancólico e nostálgico – o olhar de uma escritora.
O nome da travesti, é importante dizer, não é gratuito. É uma homenagem ao argentino Raul Damonte Botana, escritor, cartunista e dramaturgo conhecido como Copi. Morto em 1987 em razão de complicações com o HIV, Copi é considerado um artista de vanguarda, abordando em suas obras temas como sexualidade, gênero e exílio, temas nos quais As fantasias eletivas toca de forma explícita e implícita.
A contribuição que As fantasias eletivas faz consiste precisamente naquilo que Schroeder afirmou em entrevista à revista Francisca: o fato de que, na época de seu lançamento, poucos eram os livros sobre travestis e outros grupos minoritários publicados por grandes editoras.
Ao contar a história de Copi de forma não convencional e ao mostrá-la entre o estereótipo e a quebra deste, o livro de Schroeder retrata uma travesti mais em seus dilemas existenciais, e não tanto sociais. Diferentemente do que se esperaria, a dor que sente em viver é mais ontológica, já manifesta em sua infância, do que advinda do preconceito. A dor que fragmenta o sujeito e a estrutura do romance, fazendo conteúdo e forma dialogarem. Consciência artística.
Para saber mais
CAJATY, Paula (2015). Solidão e esquecimento. Rascunho, Curitiba, ed. 177, 30 jan. Disponível em: https://rascunho.com.br/ensaios-e-resenhas/solidao-e-esquecimento-2/. Acesso em: 23 abr. 2024.
FRANCO, Adenize Aparecida; SOARES, Luiz Henrique Moreira (2018). A configuração da cidade no romance As fantasias eletivas, de Carlos Henrique Schroeder. Opiniães, São Paulo, n. 12, p. 250-260. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/opiniaes/article/view/142402/142116. Acesso em: 23 abr. 2024.
FRANCO, Adenize Aparecida; SOARES, Luiz Henrique Moreira (2018). Tornar-se corpo, desejo e palavra: a personagem travesti no romance As fantasias eletivas, de Carlos Henrique Schroeder. Revista Letras Raras, Campina Grande, v. 7, n. 1, p. 89-107. Disponível em: https://revistas.editora.ufcg.edu.br/index.php/RLR/article/view/1563. Acesso em: 23 abr. 2024.
LIMA, Amcle (2021). Autor revela detalhes da criação de As fantasias eletivas. Revista Francisca, Joinville, 1º out. Disponível em: https://www.revistafrancisca.com.br/autor-revela-detalhes-da-criacao-de-as-fantasias-eletivas. Acesso em: 23 abr. 2024.
TIBURI, Marcia. Morte do amor, sorte da ficção. Revista Cult, São Paulo, 2 dez. 2014. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/morte-do-amor-sorte-da-ficcao. Acesso em: 23 abr. 2024.
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