ÂNGELO, Ivan. A festa. São Paulo: Vertente, 1976.
Eliane Waller
Ilustração: Théo Crisóstomo
O ano de 1964 marcou o início de um período nefasto no Brasil: a ditadura militar. Nos primeiros anos, o país enfrentou todas as dificuldades inerentes a um regime de exceção, mas a partir da promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 1968, a situação se agravou, com a perseguição contra os opositores do governo. Em consequência, inúmeras prisões ocorreram, além da cassação de mandatos e suspensão de direitos políticos. O clima persecutório instaurou um ambiente de tensão e apreensão entre aqueles que poderiam estar na lista de desafetos do regime.
Entre os vários profissionais perseguidos da sociedade estavam políticos, professores – sobretudo das áreas de ciências humanas e sociais – e quaisquer pessoas cujo pensamento divergisse do regime ditatorial. Um setor foi marcadamente censurado: a cultura, em suas variadas vertentes – a música, a dramaturgia, as artes plásticas, a literatura.
Ultrapassar os limites impostos pela ditadura era um desafio constante – e, na maioria das vezes, perigoso –, mas houve vários escritores cujas obras conseguiram, por meio da ficção ou de relatos autobiográficos, registrar aquele difícil período. A fim de que seus textos pudessem vencer as barreiras da censura, os autores adotaram estratégias variadas, como uma linguagem diferenciada – cifrada, na maioria das vezes – e uma estruturação que fugia das convenções de romances tradicionais.
A obra A festa, de Ivan Ângelo (Barbacena, MG, 1936), lançada em 1976, é um exemplo dessa literatura que tentava mostrar, por meio de uma narrativa fragmentada, não só uma outra possibilidade de construção de um romance, como também sua utilização como técnica para o registro da ambiência caótica de um tempo envolto pelo medo, pela apreensão. Além disso, suas personagens traduzem o comportamento de grupos sociais que carregam valores – ou demonstram a falta deles –, alicerçando solidamente a crítica à sociedade da época.
Ivan Ângelo, atuante como jornalista, cronista e romancista, declarou em 1993, em entrevista à revista Nossa América, que produzir literatura em períodos de regimes autoritários era um grande desafio. No entanto, no seu entender, havia a necessidade de isso ser feito, já que havia leitores interessados. Segundo ele, esse processo envolvia tanto os escritores quanto o público, resultando em uma espécie de “literatura induzida”, criada em conjunto por autores e leitores.
E, assim, mediante um vasto detalhamento, exclusivo a olhares atentos, Ivan Ângelo apresenta uma obra que, já em seu início, impacta o leitor devido à fusão de gêneros, que se torna, ao longo do texto, desafiadora para quem lê. No entanto, entende-se que a opção por tão ousada técnica remete à caracterização do momento histórico vivido, traduzindo não só a fragmentação das vidas estilhaçadas, mas também a provisoriedade do instante, já que nada era previsível, a não ser o medo, mas, ao mesmo tempo, a necessidade da resistência.
A festa, segundo o próprio autor, tem o propósito de apresentar o tempo presente àquele momento: a ditadura militar. No entanto, desde o início, faz referências a outros fatos e personagens que não remetam ao período do regime de exceção, por intermédio de fragmentos de jornais do século XIX, citando ocorrências e personagens históricos, como a Guerra de Canudos, Antônio Conselheiro, Lampião e Maria Bonita, entre outros.
A construção da escrita de Ivan Ângelo ratifica as verdades daquele momento, a década de 1970: não se passa ileso aos processos promovidos pela História. Assim, ele apresenta, em seu processo composicional, fatos do século anterior para reforçar que, ao longo do tempo e inexoravelmente, existem momentos em que ocorrências históricas também promoveram o estilhaçamento nas vidas de pessoas que passaram por dificuldades em diferentes períodos.
Em “Documentário (sertão e cidade, 1970)”, inicia-se a trajetória do romance, com um trecho de notícia do jornal A Tarde, de 31 de março de 1970, censurado pela Polícia Federal, referente aos distúrbios na Praça da Estação, em Belo Horizonte. Retirantes que buscavam uma vida melhor no Sudeste são obrigados a voltar para os seus locais de origem e a entrar num trem que, infelizmente, sofre um incêndio. Em virtude do incêndio, todos correm, desesperados, fugindo não só do fogo, mas também da polícia.
São citados também fragmentos de Os sertões, de Euclides da Cunha, assim como depoimentos de retirantes, já levando o leitor não só a uma indefinição inicial sobre o gênero a que pertence a obra, mas também, ainda que de forma caleidoscópica, remetendo a um quadro de diferentes fatos referentes a injustiças cometidas ao longo do século XX, desde a década de 1930 até a de 1970.
Os fatos e personagens trazidos nesse primeiro momento compõem a base de referências objetivas a acontecimentos históricos e temas recorrentes: a ausência da reforma agrária e suas consequências negativas para o homem pobre do campo; a existência do cangaço no Nordeste, representado na figura do chefe de um bando que durou de 1922 a 1938, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e sua mulher, Maria Bonita.
Ivan Ângelo apresenta, desde os momentos iniciais, um mosaico de elementos significativos sobre os quais se debruçará ao longo da trajetória de sua escrita: a violência da polícia do regime, os imbricamentos entre os fatos e a coerção do contexto político-histórico na vida das pessoas. Ou seja, o autor consegue, através das personagens, trazer o leitor à reflexão sobre temas importantes, das questões sobre o latifúndio às crises pessoais.
E segue, assim, já na primeira narrativa, “Bodas de pérola”, apresentada em duas partes, em que, através de experimentalismos na linguagem das personagens, como a não utilização de travessões em diálogos na fala do marido e negrito na fala da esposa, expõe a crise de um casamento que se propusera infinito desde o seu início. A partir dos dois narradores, o marido – vítima de uma depressão que, segundo a esposa, Juliana, fez com que ele envelhecesse muito precocemente – e ela própria, uma mulher que sofre as consequências de um casamento que desandou.
Na segunda narrativa, por meio de um narrador onisciente, a intrigante história de Andrea traz ao leitor ingredientes sobre uma mulher belíssima, que é objeto de desejo e, ao mesmo tempo, vítima das mais variadas maledicências de uma sociedade de moral tacanha e provinciana. Sua vida, aparentemente glamurosa, aparece em uma biografia – outro gênero textual – encontrada nos pertences de outro personagem. No entanto, a canalhice de um jornalista traz à tona, em uma festa, sua intimidade vivida com Andrea. A verdade das aparências vem à tona: a mulher, na aparência, é poderosa e desejada; na intimidade, frígida e insegura. Tudo isso ocorre no dia do incidente com os retirantes, na Praça da Estação, em Belo Horizonte, já demonstrando que as narrativas não são autônomas, mas estabelecem vínculos entre si.
O terceiro capítulo-conto, “Corrupção”, apresenta uma tripartição de vozes que remete a uma família totalmente desestruturada por graves questões emocionais: o estranhamento de uma esposa que vê um sentimento diferenciado entre seu filho e o pai, seu marido. E não era sem motivos, já que suas desconfianças se concretizam a respeito da homossexualidade do marido e o relacionamento dele com o próprio filho.
Em “O refúgio”, o personagem Jorge Paulo lida com características muito próximas de algumas pessoas da contemporaneidade, demonstrando, em público, ser exatamente o contrário do que é em sua intimidade. Em outras palavras: o advogado elegante e admirado socialmente não passa de um burguês grosseiro, que explora sua empregada, inclusive sexualmente, e tem uma amante que sabe que não o ama. Esforça-se, na verdade, para esconder sua insegurança em público, que não existe quando está só.
Em “Luta de classes”, quinta narrativa, a utilização de parágrafos curtos e a rápida mudança da referência aos personagens dinamiza a narração. Ora o humilde, ora o burguês; ora o conformismo de um com a sua vida cheia de restrições, ora o ambicioso que acha que não é reconhecido pelo seu valor. Essa sobreposição de frases na narrativa destaca o propósito de acentuar a distinção entre a vida das personagens, em uma mera casualidade.
Em “Preocupações, 1968”, há uma clara referência ao ano em que o pior dos atos institucionais da ditadura foi promulgado, o AI-5, que extinguiu os direitos civis dos cidadãos brasileiros e caracterizou um dos períodos mais violentos do regime. Mais uma vez, Ivan Ângelo busca apresentar o ponto de vista de duas personagens: a mãe de um estudante, Carlos Bicalho, e o de um delegado de polícia, preocupado com manifestações místicas que vinham, sobretudo, das classes populares. Nada pior para uma mãe de um jovem rapaz do que o momento de perseguições a estudantes. Não se noticiavam as mortes, espancamentos e sumiços dos presos políticos; no entanto, muitos sabiam que eles existiam. Por outro lado, na perspectiva do delegado, a ideia de um momento histórico perfeito: a queda da inflação, a garantia da segurança para a sociedade, o campeonato mundial de futebol vencido pelo Brasil, o desenvolvimento de áreas antes abandonadas, como o Nordeste e a Amazônia.
Os dois últimos blocos, “Antes da Festa (vítima dos anos 60)” e “Depois da Festa (índice dos destinos)”, apresentam estruturas distintas. No segundo bloco, há um conjunto de fragmentos marcados pela indicação de localização e horário, em negrito, característica da linguagem jornalística, à exceção dos fragmentos referentes ao personagem-escritor, os quais são marcados em itálico e entre parênteses.
No segundo bloco, “Antes da Festa”, todas as ações ocorrem no mesmo dia: a festa e a confusão com os sertanejos retirantes na praça. Narradores e espaços repetem-se, mas com uma reescrita que traz desfechos diferentes.
Em “Depois da Festa”, último bloco, há também referência aos personagens citados nas outras partes, como parte de uma busca de organização do quebra-cabeça criado pelo escritor. O mais intrigante é que, na primeira edição, esse bloco foi impresso em folhas azuis. Um recurso visual diferenciado, perfeitamente adequado a uma obra tão multifacetada como A festa.
Ao relacionar o momento histórico à obra ficcional, utilizando recursos diferenciados para a época, Ivan Ângelo desafia os leitores, ao longo do livro, a uma leitura instigante e reflexiva. A narrativa aborda não só a indignidade e abjeção de uma ditadura, mas também o que ela causa nas pessoas, revelando seus recônditos mais sombrios.
Para saber mais
CALEGARI, Lizandro Carlos (2008). A literatura contra o autoritarismo: a desordem social como princípio da fragmentação na ficção pós-64. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria.
DALCASTAGNÉ, Regina (2007). Nas tripas do cão: a escrita como espaço de resistência. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 29, p. 55-66. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9117. Acesso em: 22 set. 2024.
FRANCO, Renato (1998). Itinerário político do romance pós-64: A festa. São Paulo: Editora Unesp.
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