MORAES, Reinaldo. Tanto faz. São Paulo: Brasiliense, 1981.
André Luiz dos Santos Rodrigues
Ilustração: Léo Tavares
Em 1981, a série Cantadas Literárias, da Editora Brasiliense, publicou Tanto faz, o primeiro romance do paulistano Reinaldo Moraes (São Paulo, SP, 1950). Essa narrativa já apresenta as vigas-mestras da poética que consolidaria o autor de Pornopopeia (2009) e Maior que o mundo (2018). Seus protagonistas são homens da classe média paulistana que remetem ao dândi, ao flâneur e ao malandro, figuras que possuem uma radical experiência corpo a corpo com a cidade e seus atores. Sua dicção vai do baixo calão e da informalidade ao vocabulário elegante e requintado, sendo, em geral, associada à pornografia e à escatologia. Contudo, sob essa camada aparente do texto, que chama a atenção pelo humor e pelo registro do português falado, há uma apurada observação das dinâmicas sociais da classe média brasileira, especialmente a de São Paulo, e uma angústia existencial que, para se salvar da autodestruição, recorre à ironia.
Protagonizada por Ricardo de Mello, um rapaz de trinta anos da pequena burguesia paulistana, a história, assemelhando-se a um diário, divide-se entre a narração em primeira e em terceira pessoa. Por um golpe de sorte, Ricardo obtém no instituto de economia em que trabalha uma bolsa de estudos para realizar em Paris um curso de planificação econômica. Como ele diz: um “curso perfeitamente cabulável”. O contexto em que tal oportunidade surge é de crise econômica no Brasil, no fim do milagre econômico da ditadura. Sem responsabilidade ou ideal, Ricardo vai a Paris e imerge em uma rotina que envolve tudo, exceto o curso: sempre buscando uma mulher com quem se relacionar, ele perde a noção do tempo, sem saber, às vezes, qual é o dia da semana; acorda quando lhe dá na telha; usa drogas indiscriminadamente; erra pelas ruas de Paris; vai ao cinema assistir a filmes cult. Na mente, uma ideia fixa que posterga a finalização de seu romance.
A certa altura, o moço afirma que “o malandro morreu no povão para renascer na pequena-burguesia diplomada”. Diferentemente do malandro do fim do século XIX e início do XX, um sujeito pertencente às camadas menos favorecidas, desempregado e impossibilitado de se inserir socialmente de forma plena, o malandro retratado por Moraes é bem-nascido e está ciente de que sua posição social lhe permite transgressões que não serão punidas, sendo a maior delas a aversão ao trabalho e à vida prática. Ricardo qualifica-se como indolente, preguiçoso, canalha e vadio. “Acostumado ao regime brasileiro de mãe e empregada […] a mera perspectiva de lavar um prato lhe parece um dos doze trabalhos de Hércules”. Além de transitar na arquitetura Casa Grande & Senzala, o malandro pequeno-burguês de Moraes é “uma lagartixa camaleônica, dessas que aderem com facilidade à superfície das coisas e vão mudando de forma e cor de acordo com os contextos”. Essa falta de fixidez, típica da inconstância do malandro, impede que aqueles que circundam o protagonista se consolidem como personagens complexos, já que todos parecem passantes: os burocratas do instituto, a ex-guerrilheira, a aspirante a poeta, o pseudointelectual formador de opinião
O livro foi publicado durante o período de reabertura política no Brasil, com a ditadura enfraquecida e a população não sabendo exatamente como seria o futuro ou quando ele se desenharia com nitidez. Tanto o Brasil quanto Ricardo sofrem com a ressaca e a desorientação características dos tempos de mudança social, um desnorteio refletido de diversas maneiras no romance. Primeiramente, ele está dividido em 75 capítulos com extensões variadas (alguns, por exemplo, são apenas uma frase curta e despropositada) e sem linearidade, colocando aquele que lê sempre in medias res. A maneira digressiva de narrar emula os passos vagabundos de Ricardo por Paris: o capítulo começa falando sobre determinado assunto e termina com um tópico diferente ou começa observando uma situação em Paris e termina com uma memória de São Paulo.
Os fragmentos não estão organizados segundo uma hierarquia, palavra esta que inexiste no mundo de Ricardo de Mello. Qualquer coisa, qualquer um, qualquer situação são passíveis de deboche. A queda de braço entre a primeira e a terceira pessoa, por exemplo, não é resolvida com análises sobre o que cada uma delas possibilita. Escarnecendo da metalinguagem, o conflito é solucionado com par ou ímpar entre os dois narradores. Ícones da literatura, quando não referidos por apelidos, são citados sem respeito ou temor. No entanto, há fragmentos inteiros dedicados às manifestações baixas do corpo, como a flatulência, a ejaculação, o muco e a diarreia. Para elas, a atenção técnica e a seriedade: “Numa operação sincronizada de fechamento da garganta e ligeira fungação, consigo obrigar o ranho a voltar pro duto nasal, sem deslocar o catarro dos brônquios. Cada macaco no seu galho”.
Tanto faz, de acordo com o crítico Karl Erik Schollhammer em Ficção brasileira contemporânea (2009), é parte de um conjunto de romances que incluem, por exemplo, O que é isso, companheiro? (1979), de Fernando Gabeira, e Com licença, eu vou à luta (1983), de Eliane Maciel, os quais revisam as “posturas do engajamento político, numa ficção cujos temas se relacionam diretamente à resistência e à luta armada contra o regime repressivo”. A prosa de Moraes, no entanto, difere das outras pelo tom satírico diante da violenta realidade brasileira de então, a qual levava artistas a exigir uns dos outros obras politicamente engajadas.
A voz satírica é resultado da negatividade melancólica que toma a mente e o corpo de Ricardo. Após ir dormir às sete da manhã e acordar às cinco da tarde, ele se pergunta: “Como me levantar da cama se estou morto?”. Os ratos que circulam pelo seu estúdio parecem tão reais quanto imaginários, na medida em que representam o pensamento circular, mórbido e perfurante do melancólico: o pensamento que, como Ricardo, não sai do lugar. A opção pela sátira parece ser também a resposta mais libertária para os discursos prescritivos da época: à direita, o autoritarismo, o cinismo e a censura; à esquerda, o engajamento apenas no nível do discurso teórico e artístico.
A oscilação do comportamento do protagonista, que parte do contato visceral com a cidade e chega à solidão devastadora dentro de seu estúdio, é, portanto, a oscilação do sátiro, que se vira contra a sociedade e contra si mesmo. Segundo o crítico literário Jean Starobinski, em A tinta da melancolia: uma história cultural da tristeza (2016), “a voz satírica é a de um homem que guarda distância, mas que, no seu isolamento, se volta contra a sociedade para fustigá-la. […] A negatividade satírica aviva a relação com os outros, mais do que a suprime”. Suas “palavras são nulas e sem valor […] mas revelam, igualmente bem, a verdade, põem a nu os crimes e as usurpações”, os quais, sem gerar culpa em Ricardo, abundam em Tanto faz. No limite, Ricardo de Mello atualiza o comportamento de Brás Cubas, personagem que, de acordo com diversas entrevistas do escritor, marcou sua formação literária. O comportamento: conhecer com agudeza como as pessoas de sua classe social agem, a fim de tirar proveito das situações.
Dessa forma, o romance de Reinaldo Moraes produz um efeito paradoxal. Ainda que constantemente negue a realidade, chegando a dizer “Quem precisa da história? Tirem essa puta velha e assassina daqui!”, Ricardo está atento a seus movimentos tanto quanto um sociólogo. A realidade que vê não parece ser promissora, uma vez que ziguezagueia pelo presente e pelo passado. Por sua vez, o futuro, tanto de seu romance em construção quanto do Brasil no fim da ditadura — com cujos personagens o protagonista convive e que conhece bem —, pode ficar para depois. Sinal de liberdade, sintoma de angústia. A lição machadiana: em vez do lamento, a ironia.
Para saber mais
ALVES, Guto (2022). Azaração em prosa e verso. Quatro cinco um. Disponível em: https://quatrocincoum.com.br/artigos/literatura/literatura-brasileira/azaracao-em-prosa-e-verso/. Acesso em: 1º ago. 2024.
PELLANDA, Luís Henrique (2010). Paiol literário: Reinaldo Moraes. Rascunho. Disponível em: https://rascunho.com.br/paiol-literario/reinaldo-moraes/. Acesso em: 1º ago. 2024.
SCHØLLHAMMER, Karl Erik (2009). Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
SILVA, Alvaro Costa e (2010). Orgia picaresca. Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il0512201005.htm. Acesso em: 1º ago. 2024.
STAROBINSKI, Jean (2016). A tinta da melancolia: uma história cultural da tristeza. Trad. de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras.
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