GUERRA, Lilia. O céu para os bastardos. São Paulo: Todavia, 2023.
Juliana Berlim
Ilustração: Catalina Chervin
O romance O céu para os bastardos, de Lilia Guerra (São Paulo, SP, 1976), teve sua primeira edição publicada pela editora paulistana Todavia, no segundo semestre de 2023, em torno de agosto e setembro. Em seu comentário crítico publicado na São Paulo Review, Bruno Inácio (s.d.) assinala: “O céu para os bastardos também é marcado por uma técnica literária bastante madura, capaz de construir diálogos marcantes, cenas memoráveis e personagens que se tornam amigos e cúmplices de quem lê a obra”. E continua sua apreciação acerca dos personagens do romance: “Alguns deles, inclusive, já apareceram em excelentes trabalhos anteriores da autora, publicados pela Editora Patuá. A protagonista Sá Narinha, por exemplo, forneceu um depoimento no romance Rua do larguinho e outros descaminhos, de 2018”.
A maturidade técnica da obra é um dos aspectos que mais chamam a atenção do leitor. A polifonia se estabelece logo na primeira cena, com um jogral de meninas conversando entre si sobre trivialidades. Não se sabe ao certo quem são essas personagens apresentadas em flashback, mas diálogos semelhantes entre as moças se repetirão, marcando um movimento circular de construção de memória afetiva que se estabelece entre o leitor e as personagens Bigu, Cassiana e Regina, a Regininha. As três representam a conexão com o cotidiano da geração posterior à da protagonista, Maria Expedicionária, mais conhecida em sua comunidade como Sá Narinha, ou até mesmo como Xispê, como a chama seu pequeno patrão no trabalho como empregada doméstica. Essas múltiplas mulheres viventes em Sá Narinha, a persona prevalente e nossa narradora principal, são conduzidas e apresentadas ao leitor pelo fio da memória. Memória individual e, metonimicamente, memória coletiva. Memória do bairro Fim-do-Mundo.
A escolha lexical Fim-do-Mundo indica uma condição geográfica recorrente no âmbito das megalópoles brasileiras: a distância entre o centro das grandes cidades e os bairros residenciais onde habita a maioria da classe trabalhadora do país. Em vez de localizar a narrativa explicitamente na cidade de São Paulo e seus arredores (deduz-se tratar-se de São Paulo, em especial, devido aos tipos humanos do italiano e dos japoneses que, como personagens secundários, emergem na trama), a autora expande seu alcance narrativo, permitindo ao leitor, sobretudo ao leitor habitante dos grandes centros, perceber a similitude entre o espaço ficcional e o desenho urbano brasileiro. A rigor, não há outras menções toponímicas em todo o livro, porque o romance pretende, acima de tudo, relatar a vida cotidiana no locus emocional habitado pela narradora Sá Narinha.
Percebe-se, conforme Bruno Inácio (s.d.) aponta, que o projeto literário de Guerra é voltado para a construção de um retrato afetivo da periferia brasileira, tomando por base, como referido, a megalópole paulistana. Para aqueles que cresceram ou frequentaram bairros periféricos ou suburbanos, as personagens soam muito familiares. Por exemplo: são apresentados ao leitor os retratos da verdureira, do dono de bar, do jogador cotidiano de sinuca, do apontador de jogo do bicho, da vendedora de porta em porta de cosméticos, dos religiosos de todos os matizes, gente do povo, personagens às quais o leitor se afeiçoa, porque são construídas como figuras empáticas, a despeito de quaisquer falhas morais apresentadas. A rigor, as personagens das camadas populares, a grande gama do manancial de figuras humanas apresentado pela autora, não são propriamente más; pelo contrário, apresentam-se como seres com certa superioridade moral, no geral. Salvo poucos casos de sujeitos confirmadamente criminosos, boa parte das personagens apresentadas são pessoas com pequenos desvios, tricksters da cidade grande que as abandona e as devora como cidadãos de segunda classe de um país com uma das maiores desigualdades na distribuição de renda do mundo.
A empregada doméstica é a epítome das relações sociais coloniais que não foram superadas no período da República. Como poderia ser, se as relações patronais no espaço domiciliar nacional são pautadas pelo “afeto”? À época da discussão sobre a PEC das Empregadas, o debate girou em torno das relações de cordialidade entre patrões e empregados domésticos, que incluíam, como ainda incluem, a imagem da empregada como “membro da família”: a servidora não precisa de salário digno (ou aumento de salário), FGTS, férias remuneradas, dias de folga, direito a ausências avulsas, carteira assinada e tantas conquistas sólidas dos trabalhadores do século XX por ser “da família”. Uma pessoa da família que, como se sabe, é tratada como falsa, ladra, mentirosa, manipuladora, vilipendiadora e toda sorte de adjetivos pejorativos. No romance de Guerra, um clássico das relações entre patroa e empregada doméstica opera como mote para apresentar tanto a fragilidade deste consórcio quanto a personalidade vil da patroa: o roubo das joias da família. Os brincos da avó sumiram e, por décadas, as empregadas domésticas foram acusadas do furto, apelidadas de “ratazanas” aos gritos. O imbróglio é resolvido, como tantas outras tramas do romance, mais próximo ao término da narrativa, com uma revelação surpreendente, na contramão da expectativa criada por d. Gerda, a patroa de Sá Narinha.
Contudo, ainda que com muito mais sutileza, a disparidade social entre a protagonista e seus patrões de classe média alta se manifesta com a entrada em cena do patrão escritor. Sá Narinha começa a bisbilhotar a biblioteca do intelectual, que reconhece nela o impulso leitor e libera o acesso aos seus livros. No ímpeto da intimidade entre leitores que a funcionária acreditou ter sido estabelecida entre os dois, Maria Expedicionária confessa o sonho de ser escritora (a história que o leitor acompanha resulta das anotações em um caderninho, que está com a heroína em todo lugar). O homem, atento, ouve e, bastante condescendente, procura demover com delicadeza a funcionária de seu objetivo, porque, nas palavras dele, havia muitos escritores medíocres no mundo, mas poucas pessoas que passavam uma camisa tão bem quanto Sá Narinha conseguia fazer.
Explícito ou velado, o preconceito contra as empregadas domésticas e o desestímulo a seu exercício de atividades fora do âmbito das funções domésticas é tão perceptível para a protagonista (por extensão, para o leitor), que ela desfaz a impressão positiva que tinha nutrido até então por seu patrão. Começa então a detestá-lo, como a serviçal do romance A boa terra, de Pearl S. Buck (1981), cujo enredo é apresentado em parte após a cena desse diálogo acima descrito. Típica estereotipação e uma visão de mundo bastante limitada para um indivíduo de alta escolaridade e inserido na realidade do mundo hiperconectado e letrado, como o do capitalismo tardio do século XXI. Infelizmente, essa é a apreciação frequente que se faz de pessoas negras, desqualificadas pelo simples fato de serem negras.
Toni Morrison (2016) não precisa avisar que seus protagonistas em Voltar para casa são negros, graças à ambientação que elabora em sua obra. Da mesma maneira, Lilia Guerra não informa ao leitor o dado étnico-racial relativo às suas personagens, mas se sabe, pela experiência brasileira, que Fim-do-Mundo se constitui, em sua grande maioria, de moradores negros e pardos. A grande massa humana mestiça e subempregada é a continuidade laboral de seus antepassados, muitos escravizados e trabalhadores das esferas inferiores da sociedade brasileira de antanho. O romance ainda não aponta as renovações dos quadros sociais nas regiões periféricas, especialmente depois das políticas públicas dos anos 1990 e 2000, que buscaram a inserção dessa camada da população em espaços de escolaridade formal antes pouco ocupados por eles. Por isso mesmo, o recorte de realidade de Guerra é a representação de um mundo em transição, que começa a morrer aos poucos — o signo da morte perpassa toda a narrativa, como metáfora de uma paisagem humana, sobretudo, que agoniza aos poucos.
Esse mundo, como o samba, agoniza, mas não morre. Reinventa-se, sob novas ordens, novos ares. Novas formas de ser e existir, novos aquilombamentos, um novo mundo em que uma criança não seja rechaçada do convívio social por não ter o nome paterno no registro (uma parcela significativa da sociedade brasileira não tem pai reconhecido na certidão de nascimento, o que aponta o elitismo da sociedade brasileira e de suas grandes instituições e aparelhos ideológicos, como a Igreja Católica). Um mundo em que não se precise ir para o céu para desfrutar das delícias, um mundo em que uma pessoa não seja mais rotulada como bastarda. Este mundo, na verdade, está mais próximo do que distante.
Para saber mais
BUCK, Pearl S. (1981). A boa terra. Trad. de Oscar Mendes. São Paulo: Abril Cultural.
INÁCIO, Bruno (s.d.). “O céu para os bastardos”, de Lilia Guerra: as muitas vivências do Fim-do-Mundo. São Paulo Review, São Paulo, n.p. Disponível em: http://saopauloreview.com.br/o-ceu-para-os-bastardos-de-lilia-guerra-as-muitas-vivencias-do-fim-do-mundo/. Acesso em: 26 maio 2024.
MORRISON, Toni (2016). Voltar para casa. Trad. de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras.
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