TELLES, Lygia Fagundes. As horas nuas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
Renata Augusto de Carvalho
Ilustração: Manuela Dib
Lygia Fagundes Telles (São Paulo, SP, 1918 – São Paulo, SP, 2022), autora do romance As horas nuas, é conhecida como a “dama da literatura brasileira” e considerada, por acadêmicos, críticos e leitores, uma das escritoras brasileiras mais importantes e notáveis do século XX. Com relação ao contexto específico de sua publicação, ou seja, o ano de 1989, a obra apresenta uma reflexão sobre a realidade brasileira no final do século XX, período marcado pelo retorno à democracia após anos de Ditadura Militar.
Lygia Fagundes Telles aborda, neste romance, não apenas questões políticas e sociais, mas também aspectos psicológicos e emocionais dos personagens, que refletem o estado de transição e as incertezas da época. O romance descreve ações que ocorrem em um momento histórico de profunda desilusão com o Brasil, redemocratizado após 21 anos de censura e repressão. Esse período foi marcado por uma inflação descontrolada, revelações de corrupção política nos altos escalões do poder e pelo crescimento caótico das grandes cidades, que transformaram os estilos de vida e os padrões de produção e consumo. Além de retratar a realidade burguesa e paulistana do final do século XX, em um Brasil que estava se ajustando à recente democracia após o fim da Ditadura Militar, o romance exibe traços intimistas ao explorar profundamente a introspecção de seus personagens principais.
O texto fragmentado divide a narrativa entre três figuras centrais: Rosa Ambrósio, uma ex-atriz alcoólatra; Rahul, o gato de estimação de Rosa, cuja alma humana foi reencarnada em um felino; e Ananta Medrado, terapeuta de Rosa. Aliás, gatos e atrizes têm a particularidade de viver várias vidas. Pode-se considerar que existe, portanto, uma certa afinidade entre os personagens.
A estrutura narrativa fragmentada da obra permite explorar diferentes perspectivas e camadas de significado. A presença de personagens como Rosa Ambrósio, Rahul e Ananta oferece uma rica tapeçaria de vozes e experiências, refletindo não apenas a diversidade individual, mas também a pluralidade cultural e social do Brasil urbano contemporâneo.
Rosa Ambrósio, a protagonista, é uma atriz de teatro decadente, narcisista e alcoólatra, que tem quase 60 anos e está sendo esquecida, sem receber papéis no teatro, mas afirma que está se preparando para um grande espetáculo. A ação principal do romance acontece pelo fluxo de consciência, ou seja, pela sucessão dos pensamentos da protagonista, pois ela imagina voltar aos palcos, estar sob os holofotes, ter sucesso e escrever um livro de memórias chamado As horas nuas.
Entre a realidade e seus devaneios, a atriz parece imersa em questões existenciais e relembra – memória ou imaginação? – sua juventude ao consumir excessivas doses de uísque. Por meio da subjetividade da personagem, os leitores conseguem adentrar em seu universo íntimo, no qual temas como solidão, envelhecimento, medos e preocupações são abordados em seu monólogo interior.
Com um enredo sem começo nem fim, a narrativa se passa em um apartamento na cidade de São Paulo, onde Rosa vive entre acontecimentos reais e personagens teatrais já encenados por ela. O foco de seus devaneios são seus romances na juventude: o primo Miguel, que morre de overdose aos vinte anos; o marido Gregório, que se torna distante e frio após a tortura sofrida no regime militar; e o secretário e amante Diogo, que a abandona para ficar com garotas mais jovens, muito embora ela acredite na volta dele. Gregório é um professor de esquerda, que é exilado para a França, onde leciona por seis meses, e volta ao Brasil com um comportamento retraído e indiferente.
Rosa convive apenas com Dionísia, sua empregada, que a trata como criança, e seu gato Rahul. Ela faz terapia com Ananta, uma mulher reservada e misteriosa, que mora no mesmo prédio e está apaixonada pelo novo vizinho, o qual não sabe sequer da existência da analista. Rosa não respeita Ananta. Aliás, Rosa não respeita ninguém.
Ananta, por sua vez, além de misteriosa, também é independente e solitária, e se esconde atrás de uma máscara de militante feminista bem-comportada. Em dado momento do romance, Ananta desaparece e ninguém sente a sua ausência, nem mesmo Rosa, que segue sua vida e busca forças em si própria. Com o desaparecimento de Ananta, surge Renato Medrado, seu primo, que pede ajuda à polícia e segue na investigação à procura da analista.
Cordélia, filha de Rosa, é jovem e bonita e se relaciona com homens mais velhos. Em um dado momento, Cordélia parte em viagem com seu namorado, muito mais velho que ela, e Rosa reprova tal atitude. Rosa, em vez de incentivá-la e admirá-la, a critica e recrimina, pois, na verdade, tem inveja da juventude e vivacidade da filha. Para Rosa, a velhice é algo abominável.
A atriz não cansa de se queixar sobre o mal que lhe causaram e o bem que deixaram de fazer. Em suma, Rosa não assume suas responsabilidades e falhas, especialmente suas omissões com Cordélia, o que demonstra um aspecto infantil e frívolo de sua personalidade.
Rahul, seu gato de estimação, por vezes se apresenta como um dos narradores do romance. Parece ter consciência dos acontecimentos com sua dona e é dotado de uma sensibilidade ímpar. Em determinado momento, ele recorda suas vidas anteriores, inclusive como humano. Rahul parece mais maduro e responsável que a própria dona.
Embora o título As horas nuas pareça remeter a uma narrativa leve, o romance é denso, e a nudez pode ser relacionada às máscaras que insistem em cair, especialmente a de Rosa Ambrósio, com seus defeitos, delírios e virtudes. Nuas e vazias são as horas de Rosa, inundadas pelo álcool e entremeadas ora por delírio, ora por lucidez. No romance, é possível vislumbrar sua vida permeada por alienação, solidão e horror à velhice. Rosa é o retrato da era pós-modernista: uma figura sem identidade, que vive de aparências e fortemente inclinada a mostrar algo que já não é mais. Acima de tudo, Rosa reflete sobre sua vida, sobre a época em que vive, com seus problemas e desafios, e se nega a aceitar a passagem do tempo e a permeabilidade da vida a que todos estão sujeitos.
A importância e relevância de tal romance para a atualidade se dão por várias razões significativas. Primeiramente, a obra de Lygia Fagundes Telles, como um todo, é marcada pela profundidade psicológica de seus personagens e pela habilidade em explorar temas universais como amor, solidão, identidade e dilemas éticos. As horas nuas não foge dessa tradição, apresentando uma narrativa que mergulha nas complexidades da condição humana. O romance leva os leitores a refletirem sobre temas universais por meio de uma lente particularmente brasileira e contemporânea. Os livros da autora continuam a ressoar graças à sua profundidade psicológica, à sensibilidade com relação às questões sociais e políticas e à maestria em criar personagens complexos e envolventes.
Para saber mais
MARTINS, Ana Paula dos Santos (2019). Entre espelhos, máscaras, palcos e memórias: o jogo da representação em As horas nuas, de Lygia Fagundes Telles. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 56, p. 1-16. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/2316-4018567. Acesso em: 25 out. 2024.
STEYER, Fábio Augusto; JAVAREZ, Jeanine Geraldo (2018). Identidade e zoomorfismo: uma análise da personagem Ananta do romance As horas nuas, de Lygia Fagundes Telles. Navegações, Porto Alegre, v. 10, n. 2, p. 141-148. Disponível em: http://dx.doi.org/10.15448/1983-4276.2017.2.24993. Acesso em: 25 out. 2024.
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