MADALOSSO, Giovana. Suíte Tóquio. São Paulo: Todavia, 2020.
Giulia Campos
Ilustração: @popi.oli
Suíte Tóquio, o terceiro livro de Giovana Madalosso (Curitiba, PR, 1975), tem uma narrativa ágil e que cria tensão e curiosidade em quem lê do começo ao fim. Construído num alternar de primeiras pessoas, a narrativa prende o leitor desde sua primeira frase: “Estou raptando uma criança”. A partir daí, quem mergulha no romance é convidado a acompanhar os pensamentos e passos de Maju, babá da menina de quatro anos Cora, que, numa decisão súbita, sequestra a criança em seus cuidados, e, do outro lado, Fernanda, a mãe de Cora, que descreve sua descoberta do desaparecimento, fazendo idas e vindas no tempo e contextualizando o universo anterior da criança e da babá, além de sua própria profunda desconexão com o papel materno.
Nesse revezamento entre as histórias das duas protagonistas, que disputam a narrativa capítulo a capítulo, é proposta uma diferente perspectiva acerca das nuances e complexidades do trabalho de cuidado materno, da hierarquia das relações de trabalho entre a patroa e a babá, e dos contrastes entre os desejos e pensamentos dessas duas mulheres.
A obra é o segundo romance da autora, que começou sua trajetória em 2016, com a publicação do livro de contos A teta racional, cujas histórias abordam sua experiência com a maternidade e a amamentação. O conjunto de contos foi finalista do prêmio Clarice Lispector em 2017, e logo seguido por seu primeiro romance, a obra Tudo pode ser roubado, publicada em 2018 pela Todavia, que aborda sonhos e ambições perdidas na grande metrópole de São Paulo. Em 2020, Suíte Tóquio foi publicado também pela Todavia, tornando-se a obra de maior visibilidade da autora, sendo a primeira a ser traduzida para o espanhol e publicada também em Portugal.
A história inicia-se pela voz de Maju, que conta sobre a decisão de raptar Cora, que ela chama em pensamento de Picucha. Submersa no afeto que desenvolveu pela menina ao conviver com ela tão mais de perto que qualquer outra pessoa, Maju vai, ao longo dos capítulos ímpares, alternando entre narrar sua trajetória com Cora na tentativa de sair com a menina do país e apresentar, por meio do fluxo de pensamento, seus afetos, sofrimentos, dilemas e medos, compondo o universo emocional da personagem.
A babá cuida da menina desde bebê, morando a maior parte da semana no apartamento da patroa, Fernanda, num quarto anexo da casa, o tradicional “quartinho de empregada”, com algumas amenidades, mas sem pessoalidade nenhuma – a Suíte Tóquio que nomeia o romance. Mesmo as saídas de final de semana acabam sendo renegociadas quando Fernanda consegue uma promoção no trabalho, gerando um novo arranjo em que Maju tem direito a apenas duas saídas por mês, uma folga mensal e o dia da “visita íntima”, um combinado feito entre a babá e a patroa para que Maju possa tentar engravidar de seu companheiro, Lauro. A mudança nos horários da babá acaba impactando seu relacionamento, e o companheiro a abandona, num contexto que vai criando distinção cada vez menor entre a vida pessoal de Maju e os seus cuidados com Cora, com quem desenvolve uma relação de mãe e filha.
Simultaneamente, os capítulos pares são conduzidos por Fernanda, mãe de Cora, produtora audiovisual e provedora de sua família de classe média, que vive sua própria crise pessoal após a maternidade e está tendo um romance extraconjugal com Yara, uma documentarista que é sua colega de trabalho.
Destacam-se, já de início, as disparidades entre o fluxo de pensamento das duas personagens. A narrativa de Fernanda é caracterizada em maior grau por um tom caótico, também marcado pelas muitas idas e vindas temporais, construídas como para justificar suas decisões e ações, num enlace que marca a ansiedade da personagem. Tem-se acesso às suas questões, que giram em torno de um certo assombro com tudo o que é materno, medo esse cerceado por uma preocupação com a desconexão que sente na relação com a própria filha.
Suíte Tóquio em menos de cinco anos conseguiu uma fortuna crítica, com alguns artigos, uma tese e uma dissertação no âmbito da literatura cobrindo suas nuances. A obra foi bem recebida pela crítica de bate-pronto, e em duas das resenhas publicadas logo após sua publicação — a do Jornal do Estado de Minas, intitulada “Suíte Tóquio é um romance que nos faz rir e chorar”, e a publicada na Folha de S.Paulo, “Rapto de criança em Suíte Tóquio é o pesadelo de toda mãe” — foi grandemente elogiada pela qualidade e ritmo da narrativa e pela construção bem-feita de suas personagens. Os estudos disponíveis analisam a complexidade do papel materno no desenrolar da obra e também propõem uma discussão acerca da hierarquia na relação de trabalho entre as duas personagens.
O artigo “A (des)construção da maternidade no romance Suíte Tóquio, de Giovana Madalosso”, de Gabriel Silva de Mello, propõe uma frutífera análise da personagem Fernanda, sugerindo que Madalosso constrói uma representação materna que é disruptiva: “À protagonista compete demonstrar uma outra faceta do vínculo mãe-filha, que extrapola a concepção universal de conduta materna esperada, e para tanto resvala nas suas inúmeras faltas e ausências com Cora, a sua filha” (Mello, 2022).
Esse caráter da personagem Fernanda fica evidente nos muitos momentos em que ela reflete sobre sua vida. Chama especialmente a atenção o curto capítulo 34, quando, já consciente do desaparecimento da filha e consumida pelo desespero de encontrá-la, a protagonista descreve, em menos de uma página, a insistência de uma criança em chamar a atenção da mãe: “Olha pra mim dançando. Olha pra mim pulando do sofá. Olha, olha, olha. Olha pra mim, mãe”. Nesse trecho, a repetição do verbo “olha” parece exemplificar a necessidade constante de atenção de uma criança e o desconforto da protagonista. O momento escolhido para incluir este devaneio dentro da narrativa, numa recuperação de uma memória anterior, em contraste com a grave realidade do desaparecimento da criança, também é proposital, fazendo coro à culpa que Fernanda sente por não ter prestado mais atenção a Cora, o que poderia ter prevenido seu sequestro. No capítulo anterior, essa culpa se evidencia na fala do policial, que diz que mães que perdem seus filhos têm vergonha de contar para as pessoas, porque se sentem culpadas: “acham que foram negligentes, mesmo quando não foram, têm certeza de que a culpa é delas”.
Kaio Rodrigues (2023) constrói uma análise comparativa com foco na hierarquia da relação entre as duas personagens, apresentando essa dissonância como uma espécie de catalisador dos eventos que transcorrem no romance: “[As protagonistas] ocupam lados antagônicos, uma tem privilégios e uma vida vazia […], e a outra mantendo sua vida exclusivamente centrada na criança de que cuida, na religião e no porvir” (Rodrigues, 2023). O estudioso também discorre sobre a forma como Madalosso “constrói um arcabouço para criticar submissões e os padrões gentrificados” (Rodrigues, 2023), sintetizando como a escritora consegue, por meio de sua narrativa, unir várias questões que perpassam a condição feminina e o trabalho de cuidado materno na sociedade brasileira.
Suíte Tóquio é uma narrativa envolvente, e os motivos de seu imediato sucesso ficam evidentes para o leitor já de início. Madalosso impressiona ao construir uma narrativa certeira em seus extremos. Com uma escrita que transita entre o poético e o duro, a obra desenvolve sua premissa inquietante sem perder o ritmo, mantendo o leitor sempre atento ao desenrolar da história. O uso que faz da narrativa dupla cria campo fértil para que seja possível observar hierarquias de poder ancestrais, chamando especial atenção para o confronto entre os ideais de liberdade individual apresentados para a geração de Fernanda e Maju, e o confronto dessas ideologias com hierarquias sociais, como as relações de trabalho. Com capítulos curtos e diretos, o romance se desenvolve de forma dinâmica, com suas 200 páginas organizadas em capítulos objetivos, que constroem a história com nós firmes. Madalosso compõe, em seu terceiro livro, um instigante mosaico de medos, desesperos maternos e contradições sociais, numa narrativa que faz, naturalmente, um comparativo das tensões de classe brasileiras.
Para saber mais
MELLO, Gabriel Silva de (2022). A (des)construção da maternidade no romance Suíte Tóquio de Giovana Madalosso. Revista Interfaces, Guarapuava, v. 13, n. 4, p. 69-80. Disponível em: https://revistas.unicentro.br/index.php/revista_interfaces/article/view/7264. Acesso em: 10 ago. 2024
RIBEIRO, Ana Elisa (2021). “Suíte Tóquio” é um romance que nos faz rir e chorar. Estado de Minas. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/pensar/2021/05/14/interna_pensar,1266447/suite-toquio-e-um-romance-que-nos-faz-rir-e-chorar.shtml#google_vignette. Acesso em: 10 ago. 2024.
RIBEIRO, Teté (2020). Rapto de criança em “Suíte Tóquio” é o pesadelo de toda mãe. Folha de S.Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/10/rapto-de-crianca-em-suite-toquio-e-o-pesadelo-de-toda-mae.shtml. Acesso em: 10 ago. 2024.
RODRIGUES, Kaio (2023). “Alguém joga xadrez com a minha vida”: mulheres e o tabuleiro social nas narrativas de Martha Batalha e Giovana Madalosso. Dissertação (Mestrado em Letras e Linguística) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo. Disponível em: https://www.bdtd.uerj.br:8443/handle/1/19680. Acesso em: 10 ago. 2024 .
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