MARQUES. Eliane. Louças de Família. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.
Ludimila Moreira Menezes
Ilustração: Mariângela Albuquerque
A autora Eliane Marques (Sant’Ana do Livramento, RS, 1970) é mestra em Direito Público, graduada em Pedagogia e Direito e atua como Auditora de Controle Externo no Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul. A romancista também é poeta, tradutora e psicanalista. O livro de poemas e se alguém o pano (Après Coup, 2015) foi o vencedor do Prêmio Açorianos de 2016. Também como poeta publicou Relicário (Grupo Cero, 2009) e, sob o selo editorial Orisun Oro, o poço das marianas (Prêmio Minuano de Literatura, 2021). Trabalhou como roteirista, produtora executiva e diretora do documentário “Wole Soyinka – A forja de Ogum” e colaborou com poemas para o espetáculo de dança Sambaracutu, do Canoas Coletivo de Dança, entre outros trabalhos multimídias.
O romance Louças de famílias, lançado em 2023 pela Autêntica Contemporânea, investe na construção de uma linguagem em dicção confessional de Cuandu, narradora negra às voltas com seu processo psicanalítico em incessante elaboração de traumas, lutos e violências experimentados por si e por seus ancestrais. Com um fôlego genealógico e uma perspectiva afrocentrada que reconstrói imaginários e alcança experiências e subjetividades de mulheres negras, identidades corpóreas e metafísicas de parentes, Louças de família, desde uma sintaxe polifônica, possibilita ao leitor um caminho por arquiteturas geográficas e sentimentais historicamente destituídas de espacialidade, intimidade e dignidade. Nesse romance, o lugar no mundo dessas mulheres e homens ganha concretude a partir de um olhar poético e analítico.
Ao longo da narrativa, que excede a representação de uma família negra construída entre abnegação, luta e romantização do sofrimento, o ímpeto raivoso e poético de Cuandu dá concretude aos mundos de trabalho escravizados e precarizados assumidos pelos seus parentes próximos e distantes. Entre apelos mnemônicos dessa herança escravagista-colonialista, o romance opera múltiplas assunções de consciência de classe e luta antirracista em uma mirada estilística de vanguarda da linguagem que se condensa entre o espanhol, as línguas indígenas e o iorubá se disseminando desde experimentações sensoriais e os resgates às cosmovisões amefricanas tratadas como mitologias e recursos narrativos em prol da complexificação dos afetos e memorabílias de si e dos ancestrais negros. Outro elemento de vanguarda no texto de Marques é a força da oralidade como aglutinadora de imagens, pensamentos e sentimentos que põe em cena um legado polifônico de heranças culturais distintas em constante epistemicídio pela elite e pelo pacto da branquitude.
O rastilho dessa pulsão de Cuandu de cartografar infâncias e histórias, sobretudo de tias, avós e mãe em uma espessura temporal de simultaneidade de presente e passado, ganha fôlego diante da morte de Tia Eluma. Eluma foi uma tia que professou a fé em Orixás, trabalhou anos em um terreiro de Candomblé e depois se converteu à crença evangélica. O testamento de Eluma, que inaugura o romance, é um inventário de contas a pagar, um epigrama funesto de uma vida em trabalho precarizado como empregada doméstica e fiel de igreja: “mais uma conta de roupa que ela fez em janeiro com uma irmã da igreja as roupas falta 256,00 pois eram 7 de 64,00 está faltando 4, luz e 46,00 + água metade dela, metade Maria Antônia RS 167,00, Se for possível me ajudar toda ajuda é bem vinda.”
É pelos impactos dos microcosmos dos vários mundos de trabalhos, domésticos (as casas de família) ou em matadouros, arroios e armazéns na “cidadezinha que não se decide entre nome de santa nome de ana ou de liberdade”, na fronteira entre o Brasil e o Uruguai, que tanto o impulso pela memória histórica quanto o desejo pela ruptura da força de trabalho subalternizada se tornam as linhas de força do romance. Vale destacar que ele não investe em um panorama historiográfico sobre a exploração de trabalhadoras e descendentes de escravizados; Eliane Marques elabora uma ética interessada na complexidade, na resistência, nos dilemas e trunfos imaginativos desses personagens. Além da força criativa de imaginar as dores, as vulnerabilidades e as complexidades de si e de seus ancestrais, a narradora reescreve e amplia experiências, imaginários e futuro para essa comunidade de trabalhadores e trabalhadoras.
Como em um coro polifônico, a narradora se vale das histórias recontadas pelas parentes próximas e de sua própria vivência com a tia Eluma para elaborar um texto que alterna e emparelha imaginários do século passado e sintomas contemporâneos de subjetividades negras em uma miscelânea de sotaques e línguas que ressoam as marcas de um Brasil escravagista e de um sincretismo (em que se aglutinam rastros do colonialismo, articulações e negociações de sobrevivência e resistência) em uma cidade elitista no RS na fronteira com o Uruguai.
O romance se estrutura em sucessivas tensões dramáticas mobilizadas pela consciência de classe e raça de Cuandu e pelas reminiscências convocadas ora pela raiva, ora pela nostalgia dos elos de cuidados entre as mulheres. Cuandu compõe para si um arco narrativo dialético que põe em atrito o passado e suas reverberações racistas no presente, delineando um desejo de futuro que redimensione sua presença em recusa e coragem de implodir por gestos e linguagem os pactos de autocomiseração e condescendência com seus ancestrais.
Outra linha de força para a condução narrativa de entrecruzamento da memória, dos afetos e das pulsões é o incessante jogo poético e psicanalítico da linguagem em constante manejo pela narradora e protagonista Cuandu, que torna possível que a voz feminina de uma mulher preta do interior do Rio Grande do Sul ganhe impacto, apelo e força para seguir elaborando seus futuros e sua voz.
Para saber mais
AUGUSTO, Ronald. (2023). O processo da ficção, segundo Eliane Marques. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/ficcao/1804-eliane-marques-loucas-de-familia. Acesso em: 10 jun. 2024.
MONTENEGRO, Tercia. Os despedaçamentos. Jornal Rascunho. Edição 280, ago. 2023.
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