FERRÉZ. Capão Pecado. São Paulo: Labortexto, 2000.
Irene López Batalla
Ilustração: Théo Crisóstomo
Ferréz é o pseudônimo de Reginaldo Ferreira da Silva (Capão Redondo, SP, 1975). Sua primeira obra publicada foi o livro de poemas Fortaleza da desilusão (1997), em edição independente do autor. No entanto, ele se tornou amplamente conhecido após a publicação de Capão Pecado (2000), obra que foi reeditada várias vezes e traduzida para o exterior. A primeira edição foi lançada por uma pequena editora paulistana, a Labortexto, e, vinte anos depois, em 2020, ganhou uma edição comemorativa pela Companhia das Letras (edição de bolso), o que evidencia o interesse contínuo pela obra.
A edição consultada para esta resenha (Planeta, 2012) é composta de cinco partes e um posfácio, com um breve texto que introduz cada uma das partes, mas já sem as imagens fotográficas que a primeira edição apresentava (Tennina, 2019, p. 78). Entretanto, o enredo da história permaneceu inalterado em seus diferentes lançamentos. Nesse sentido, a obra relata a vida de Rael, o protagonista, que é narrada em terceira pessoa, junto com outras histórias de personagens secundários. Dentre outros fatos, destaca-se o papel outorgado à relação que Rael inicia com a namorada do seu melhor amigo, Matcherros, e que traz consequências para sua vida, tanto em âmbito familiar como laboral, ou, ainda, no relacionamento com seus amigos.
Os escritos que introduzem cada uma das partes da obra não têm relação com a narrativa principal. Na primeira parte, é um recado do próprio autor para o “sistema”; na segunda, há um texto de Ratão (pertencente à 1dasul, marca associada à periferia e fundada por Ferréz); na terceira, de Outraversão (banda de música); na quarta, de Negredo (grupo musical); na quinta, de Garrett (também da 1dasul); e o posfácio é de autoria de Ferréz. Todas essas vozes vêm de pessoas que vivenciam ou conhecem bem a realidade apresentada na obra: o bairro de Capão Redondo, periferia da zona sul de São Paulo. As referências ao rap e ao hip-hop são marcantes na obra, aparecendo tanto nos textos introdutórios quanto ao longo do enredo, com a menção de vários nomes dos anos 1990, o que permite situar a narrativa em uma época específica, além de reforçar o contexto espacial.
Ferréz, enquanto autor, costuma ser apresentado nos paratextos de suas obras como morador dessa zona, dando destaque ao fato de morar nesse bairro periférico e assinalando também outros trabalhos que realizou anteriormente à sua profissionalização como escritor. No entanto, cabe ressaltar também suas facetas de compositor, roteirista, cantor, fundador do Selo Literatura Marginal e organizador das três edições especiais da revista Caros Amigos (2001-2004) com foco posto no título “Literatura marginal. A cultura da periferia”. É mediante a organização dessas edições da revista que se consegue definir um movimento literário e estético com o qual o autor se identifica, apresentado por ele próprio em termos de “literatura marginal”. Nesse sentido, Capão Pecado se destaca, entre outras obras da altura, por essa estética diferenciadora em que sobressaem como características os conteúdos e as formas de apresentá-los, além do uso de uma linguagem que reflete a cultura periférica.
Em Capão Pecado, assim como em obras posteriores em que a modo de exemplo se refere Manual prático do ódio (2003) ou ainda Deus foi almoçar (2012), sobressai um trabalho por parte do escritor em “brincar” com referências apresentadas em termos de realidade/ficção, diluindo-as. Por exemplo, alguns dos nomes presentes no romance, como “Cebola”, aparecem em outras obras do escritor e é sabido, por diferentes fontes e depoimentos do próprio autor, que se referem a pessoas reais. Além disso, as referências a séries e músicos que a obra menciona permitem situar o relato em um espaço e períodos definidos, reforçando assim essa dicotomia entre o que é real e o que não é.
Ainda em relação à temática, o enredo aborda, através de um narrador em terceira pessoa que observa a realidade de dentro, a vida do protagonista Rael, anagrama de Real (Penna, in Tennina, 2017, p. 285). A trama começa com a mudança de bairro do personagem principal, apresentado como “gordinho, cabelo todo encaracolado, e óculos grandes e pretos que ele já usava havia muito tempo” e do qual apenas aparecem outras breves referências diferentes em um espaço específico, o bairro de Capão Redondo, e nele, como assinalado, o protagonista muda também de trabalho, fato que provoca uma história de amor que traz consequências em seu dia a dia e, em definitivo, em sua vida e relações com amigos e familiares.
Já no primeiro capítulo, Rael compara o novo bairro com o anterior, percebendo-os como semelhantes, e imagina “em sua pequena televisão em preto e branco… uma realidade melhor”, em contraste com a vivência e o ambiente nos quais está inserido. Não obstante, a obra não apresenta descrições minuciosas de espaços nem de rotinas, destacando assim a história de amor, como também outras histórias paralelas de conhecidos e familiares que acabam por confluir ou relacionar-se com a vida do protagonista. Diferentemente do que ocorre nas cenas de violência, nomeadamente de caráter sexual, que estão mais detalhadas, onde Ferréz descreve as cores das roupas utilizadas e, em algumas ocasiões, o passo a passo das ações.
A violência física e psicológica está presente tanto nas relações interpessoais quanto nas interações com os espaços físicos e suas rotinas. O narrador, em alguns momentos, tenta explicar ou justificar essas violências, recorrendo a motivações como a necessidade de “grana” ou “vingança” por parte de diferentes personagens, o que serve como pano de fundo para discussões mais profundas sobre a realidade que os envolve. Para isso, o narrador evita apresentar de forma simplista as causas dessas agressões, optando por oferecer diferentes perspectivas e pontos de vista, nem sempre com um posicionamento explícito, que convidam o/a leitor/a a uma reflexão constante sobre os acontecimentos e suas causas.
Além disso, o número de personagens na obra contribui para uma multiplicidade de vozes e perspectivas – amigos, familiares, conhecidos e até desconhecidos – que, além de enriquecer o texto e a trama, oferecem diferentes pontos de vista sobre os acontecimentos, complexificando sua interpretação. A estrutura é composta por 23 capítulos que apresentam episódios de maior ou menor relevância na trajetória central de Rael, incluindo histórias paralelas que se intercalam ao longo dos capítulos. Essa construção segmentada e intercalada favorece a polifonia e reforça a ideia de que é difícil representar uma história como única, ao mesmo tempo que permite ao autor explorar a linguagem de forma mais rica e diversificada.
O uso diferenciado que o autor faz da linguagem, alternando entre o narrador e os diálogos, evidencia as diferentes realidades que a obra busca representar. Nos diálogos, é possível identificar uma fala mais próxima da utilizada nos espaços periféricos, repleta de referências ao ambiente em que os personagens vivem e ao modo como se comunicam. Essas referências são visíveis em vocábulos e construções que fogem à norma-padrão, como ao se referirem à polícia como “gambés”. Esse termo é associado às gírias dos Racionais MC’s, grupo musical oriundo de Capão Redondo, no projeto Dicionário Capão, que explica alguns desses vocábulos a partir das letras do grupo. Esse vínculo com o rap, no entanto, é perceptível já na própria construção das frases: diretas, com mensagens claras e curtas, e pontuação intensa que permite entrever emoções na fala dos personagens, o que, por vezes, dificulta uma leitura mais simples e contínua do texto.
Nesse sentido, uma das principais “dificuldades” associadas à obra é, precisamente, a linguagem com a qual é construída, que não é acessível a todos os públicos. Aqueles que desconhecem a realidade das periferias e a linguagem de seus moradores podem enfrentar algum tipo de entrave na leitura, ainda que consigam acompanhar o essencial do enredo amoroso. Essa “dificuldade”, porém, não deve ser vista como um obstáculo incontornável para a leitura, mas sim como um valor adicional, contribuindo para uma maior representatividade de outras vozes dentro da literatura. Além disso, a linguagem torna-se mais acessível para o público dos espaços periféricos, mais familiarizado com esse modo de falar e comunicar-se do que com normas e vocabulários alheios à sua realidade.
Em relação ao espaço-tempo, nota-se que não é apenas o bairro de Capão Redondo que é representado, mas também outros espaços periféricos ou onde as pessoas enfrentam dificuldades para sobreviver, como no episódio com a polícia no Rio de Janeiro. Além disso, vinculado aos espaços, é identificável uma estrutura cíclica na obra que não só começa apresentando o bairro, mas também conclui falando sobre ele e explicando no posfácio já referido a mudança do nome de Capão Redondo para Capão Pecado. Igualmente, o tempo é cíclico, pois começa representando uma memória do protagonista, ávido pela leitura, lendo um cartão que a empresa envia ao seu pai no Natal e que ele, analfabeto, não consegue ler e conclui com essa mesma imagem nos últimos capítulos, agora contrastando essa realidade com a vivenciada na casa de um burguês.
A modo de conclusão, deve ser considerada a metáfora presente no posfácio da obra. A imagem apresenta os personagens como árvores (recuperando a referência presente no início e no fim da história), pelas quais “todos passam e dão uma beliscada na desprotegida árvore”, que, “protegida pelo dono do bar, que põe em sua volta uma armação de madeira; […] fica segura, mas sua beleza é escondida”. Capão Pecado, como essa árvore, deve ainda continuar a ser lido, não apenas com o intuito de obter uma maior representatividade em termos de linguagem e personagens, mas também para entender a estética e os conteúdos da chamada “literatura marginal” em todos os seus matizes e catalisada a partir deste romance pioneiro.
Para saber mais
OLIVEIRA, Vera Lúcia de (2017). Outros retratos, outras vozes na narrativa brasileira contemporânea. Estudos da Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 50, p. 237-253. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/10179. Acesso em: 20 maio 2024.
RODRIGUEZ, Benito (2004). O ódio dedicado: algumas notas sobre a produção de Ferréz. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 24, p. 53-67. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9005. Acesso em: 20 maio 2024.
TENNINA, Lucía (2017). Ferréz: más allá del documentalismo. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 50, p. 277-292. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/10181/9023. Acesso em: 20 maio 2024.
TENNINA, Lucía (2019). Ferréz: entre la propuesta colectiva y el proyecto individual. Anclajes, Argentina, v. 23, n. 1, p. 75-92.
Iconografia