SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971.
Greicy Kelly Carvalho
Ilustração: Léo Tavares
Ariano Suassuna (João Pessoa, PB, 1927 – Recife, PE, 2014), paraibano de nascença, mas pernambucano de coração e nordestino de corpo inteiro, foi teatrólogo, escritor, professor, ensaísta e advogado. Ao iniciar o curso de Direito em Recife, aproximou-se de Hermilo Borba Filho, importante dramaturgo recifense, e juntos retomaram o Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP). Suassuna participou da Academia Brasileira de Letras (ABL), Academia Pernambucana de Letras (APL) e Academia Paraibana de Letras (APL). Foi professor universitário da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) por mais de trinta anos.
Ele produziu diversas peças teatrais de cunho intertextual com outros movimentos literários, como o teatro grego, o teatro medieval e os folhetos de cordel. Também escreveu poemas, romances, autos, e participou de festivais literários, conciliando essas atividades com a advocacia, até o momento em que decidiu parar e ficar apenas com a literatura.
Na obra Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, o leitor conhece a história familiar do personagem Dom Pedro Dinis Ferreira Quaderna, intitulado como “O Decifrador” e pretendente ao trono do Império do Brasil. Quaderna é descendente de Dom João II, O Execrável, que foi Rei da Pedra do Reino, no Sertão do Pajeú, entre 1835 e 1838. Os reis e imperadores históricos são nomeados como “estrangeirados e falsificados da Casa de Bragança”. O desenrolar do romance é centrado nas aventuras, desventuras e interligações históricas de Quaderna ao encontro do reinado da Pedra do Reino. É uma volta à soberania “abrasileirada” com o cenário sertanejo no papel central, representando-se o interior paraibano em Taperoá e o interior pernambucano em Belo Monte, entre outras localizações.
O romance tem cinco capítulos (“Prelúdio – A pedra do reino”; “Chamada – Os Emparedados”; “Galope – Os Três Irmãos Sertanejos”; “Tocata – Os Doidos” e “Fuga – A Demanda do Sangral”), subdivididos em vários folhetos, característica da escrita de cordel. Inicialmente, o personagem Quaderna fala sobre sua família paterna e materna separadamente, porque o envolvimento imperialista na linha hereditária das famílias é misturado com outras pessoas. Dinis Quaderna é o narrador de cada momento, seja ele de uma invenção, de um grande feito familiar ou da escrita de uma epopeia brasileira.
Dinis Quaderna disfarça sua bravura, revestindo-a de mentiras e conversas gloriosas entre os familiares Quadernas que o conhecem muito bem, mas fingem atestar que cada palavra dita é real. Em outros momentos, Dinis flerta até mesmo com a política, ao sonhar em unir a América Latina como um só país e, imaginativamente, cria um partido político, chamado Falange da América Latina. Suassuna concentra em seu personagem outros aspectos, como a literatura, citando nomes de autores conhecidos nacionalmente como Gonçalves Dias, Olavo Bilac, Joaquim Nabuco, entre outros, e conecta cada uma das pessoas citadas com elementos fantásticos ou análogos aos da cavalaria. Esse é um ponto importante no romance, porque Suassuna sobreleva o povo e suas histórias a partir dos cantadores, do uso do gibão, das armaduras de couro, entre outros.
No terceiro capítulo, especificamente no folheto XXVII, Quaderna junto com seus amigos Clemente e Samuel pensam em criar uma Academia de Letras, entretanto, eles discorrem sobre qual o intuito, qual nome escolher: “– E por que não ‘Academia de Letras dos Emparedados do Sertão da Paraíba’? – avançou Samuel. – Não é somente o Cariri, não: toda área sertaneja do Estado está desocupada! Vamos preenchê-la inteira! Mesmo que, depois, fundem a Academia na Capital, ela não será, nunca, a Academia total e única da Paraíba, mas somente a Academia do Brejo e do Litoral, isto num Estado onde o Sertão é a zona de maior importância!”
E assim surge a “Academia dos Emparedados do Sertão da Paraíba”, cuja nomenclatura – “Emparedados” – tem a seguinte explicação de Quaderna: “[…] nós três somos ‘emparedados’ porque, com as andanças e extravios políticos que o Brasil vai vivendo, nós todos temos cara de quem, com culpa ou sem culpa, vai ser encostado à parede e fuzilado!”. Essa argumentação sobre o território brasileira traz à memória do leitor as falas de Suassuna sobre o “Brasil real”. Para o escritor, a definição de revisitar passados desconhecidos e exaltar manifestações culturais brasileiras que não tivessem influências do exterior fortaleceriam a nossa identidade cultural. Dessa forma, o regionalismo deve ser compreendido como a busca de uma identidade nacional que reconheça o sertão, em todas as suas dimensões, como espaço artístico.
O cenário de cavalaria já se revela no próprio título e nas páginas iniciais do romance, com traços quixotescos da bravura e honra. Também o pensamento ibérico da época que foi explorado por Suassuna. O sebastianismo – mito da literatura portuguesa sobre o rei Dom Sebastião, que desapareceu no campo de batalha, e sem descendentes, ficou consagrado pela ideia de que um dia ele iria voltar e salvar o povo – é um grande destaque e encontra espaço para dar continuidade à história na obra de Suassuna.
O sebastianismo foi escolhido por Suassuna em razão dos fatos que aconteceram em Pedra Bonita ou Pedra do Reino, região localizada no sertão pernambucano, atualmente pertencente ao município de São José do Belmonte, onde se encontram duas rochas paralelas, talhadas de minérios, que refletem a luz do sol. O local recebeu, originalmente, o nome de Pedra Bonita porque os minérios das rochas, de coloração dourada, refletem a luz do sol; depois, ficou conhecido como Pedra do Reino porque foi palco, entre 1835 e 1838, de uma onda messiânica, inspirada no sebastianismo português e criada pelos moradores do arraial instalado na região. A seita acreditava que o reino de Dom Sebastião estava encantado nas pedras e que ele seria desencantado se fossem lavadas com sangue, resultando, assim, em um massacre com sacríficos, de pessoas e animais, em prol da volta do rei português. Esse momento ficou conhecido como Massacre da Pedra Bonita ou Massacre da Pedra do Reino.
No romance, Quaderna pede a seu irmão Taparica que reproduza, a partir de uma foto tirada por Euclydes Villar – personagem que é fotógrafo e amigo do protagonista –, as duas famosas pedras do reduto messiânico do sertão de Pernambuco. Assim sendo, Taparica realiza “uma cópia” da fotografia de Euclydes Villar, “na madeira”, conforme pedido de Quaderna, gravura que o leitor pode visualizar no romance. A escolha de nome para esse personagem é importante, porque se relaciona com Euclides Vilar, fotógrafo e escritor paraibano que criou o Almanaque de Campina Grande, em 1932. As imagens de bandeiras, escudos, gravuras e insígnias que estão presentes no Romance d’A Pedra do Reino foram criadas a partir da iluminogravura.
Também são perceptíveis na obra de Suassuna as influências da cultura nordestina, como o cordel, o romanceiro nordestino, os mamulengos e a xilogravura, que se tornaram suportes para a criação narrativa. Todas essas influências contribuíram para a criação do Movimento Armorial, criado e liderado por Suassuna na década de 1970. Apesar da repressão militar vigente na época, o Movimento Armorial foi promovido por diversos artistas e tinha como objetivo produzir e ampliar as artes brasileiras, em todos os seus aspectos: literário, político e artístico (de maneira erudita). O foco central estava na arte nordestina, era baseado no imaginário popular das manifestações artísticas como xilogravura, literatura de cordel, teatro de mamulengos, músicas de viola e rabeca. O movimento tornou-se texto teórico e literário: O Movimento Armorial (1974).
A interpretação dos nomes históricos que aparecem ao longo do romance é baseada em histórias reais, com breves modificações ou modificações extremas como é o caso da releitura que se faz da família imperial portuguesa. Nem sempre as histórias precisam de explicações, justificativas e pausas longas. O Romance d’A Pedra do Reino não fica distante do cenário das novelas de cavalaria e cada folheto traz novos atos, como se o arremate final permanecesse sempre na próxima página, como se houvesse sempre algo para ser mencionado. A intencionalidade do romance pode ser percebida em cada palavra escrita, porque voltada ao desenvolvimento armorial. Como afirma Suassuna, “a gente tem que fazer um curso completo de bandeiras, brasões e outras coisas armoriais.”.
A família Quaderna é tão justificada por seu passado glorioso que o presente acaba se fundindo ao que já foi mencionado, sendo revisitado por Diniz Quaderna ao longo de cada período histórico. As histórias grandiosas e exuberantes da família são transmitidas pelos mais velhos, funcionando como um retrato familiar comum às famílias sertanejas ou a outras famílias brasileiras, que ouvem os antigos e replicam as melhores narrativas, transformando momentos em eventos únicos e singulares, mesmo que, na realidade, não possuam tal magnetismo.
No entanto, o diferencial em A Pedra do Reino reside justamente nisso: em considerar cada ato e artimanha de Quaderna, que aparenta agir de forma despretensiosa, mas utiliza a voz narrativa em primeira pessoa como recurso para que os leitores compreendam suas ações e motivações. Ler a história de Quaderna significa conhecer seus feitos, o massacre que atingiu sua família e os acontecimentos que marcaram o território de Pedra do Reino. É essa junção de elementos que fortalece ainda mais sua narrativa, mantendo uma continuidade fluida, mas com conteúdo denso o suficiente para justificar a leitura e destacar o quão diversificada a escrita pode ser.
Em 2007, o romance de Suassuna foi adaptado para a televisão, na forma de minissérie dirigida por Luiz Fernando Carvalho. Em 2021, o Romance d’a Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta foi relançado em edição comemorativa por seus 50 anos de lançamento, com manuscritos inéditos do autor. A escrita de Suassuna transpõe épocas, porque carrega o signo identitário. O leitor pode amar ou achar desagradável o que leu, mas não desinteressante.
Para saber mais
ALMANACH DE CAMPINA GRANDE PARA O ANNO DE 1933. Direção de Euclydes Villar. Campina Grande, Campinense, ano I, 1932. Disponível em: https://cgretalhos.blogspot.com/2013/02/almanach-de-campina-grande-para-o-anno.html. Acesso em: 29 jul. 2024.
CAZUMBÁ, Reinalda Ferreira (2013). “Escrito por um brasileiro”: identidade nacional, mito e arquivo no Romance d’A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna. In: COLÓQUIO DO MUSEU PEDAGÓGICO, 10., 28 a 30 ago. 2013, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Anais. Vitória da Conquista: UESB, 2013. v. 10, n. 1, p. 3349-3360. Disponível em: http://anais.uesb.br/index.php/cmp/article/viewFile/3279/2981. Acesso em: 23 jul. 2024.
SUASSUNA, Ariano. O Movimento Armorial. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1974.
TEIXEIRA, Jonathan Nunes; OLIVEIRA, Paulo Custódio de (2017). Movimento Armorial: a dualidade entre o erudito e o popular. Revista de Literatura, História e Memória, [S. l.], v. 13, n. 22, p. 163-174. Disponível em: https://saber.unioeste.br/index.php/rlhm/article/view/17861. Acesso em: 29 jul. 2024.
Iconografia