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Rastejo

ARAÚJO, Humberto Hermenegildo de. Rastejo. Natal: Caravela Cultural, 2020.

Samara Lima
Ilustração: Léo Tavares

Humberto Hermenegildo de Araújo (Acari, RN, 1959) é poeta, contista, professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e integrante da Academia Norte-Riograndense de Letras. É reconhecido por sua vasta produção acadêmica na área de literatura moderna brasileira, regionalismo e epistolografia.

Rastejo é o primeiro romance do autor. Trata-se de uma narrativa construída em primeira pessoa que conta momentos marcantes da vida do narrador e protagonista Pedro da Costa. Já adulto, ocupando a profissão de bancário e morando sozinho na cidade de Natal, o personagem vê no apartamento vazio “a prevalência da omissão do afeto”: “Cadê os retratos pendendo da parede?”. É do ponto de vista desse sujeito que nunca esqueceu seu passado rural que se conhece a sua história e a de sua família.

O livro é composto por seis capítulos (“Maresia”, “Desterro”, “Ocupação”, “Partilha”, “Vigília” e “Sequidão”) que revelam um drama familiar envolvendo migrantes do interior do Rio Grande do Norte, mais precisamente de Acari, que se deslocam para o litoral. A história se desenrola no início dos anos 1970, época em que Natal experimentava um rápido crescimento urbano e industrial. Nesse momento, o Brasil também atravessava o regime ditatorial, porém esse dado não aparece explicitamente comentado no enredo pelo narrador. Esse modo de apresentação do conflito leva o leitor a crer que “aquele tempo” era vivenciado pelos personagens “sem que se soubesse, praticamente, o seu significado”, uma vez que cada um estava ocupado apenas com a sua “luta particular pela sobrevivência”.

No primeiro capítulo, sabe-se de antemão que a mudança da família para a cidade se deveu à inabilidade de Edmundo, o pai do protagonista, em administrar a herança. Nos capítulos seguintes, lê-se sobre suas noites no cabaré, seu espírito aventureiro e sobre o que o peso da herança e da sua obrigação como o novo líder da família representou para ele. Um peso que culminou em seu enlouquecimento e em sua fuga da cidade, deixando Elisa, a mãe de Pedro, sozinha com as crianças: “Chegou até nós o relato de que o pai endoidecera e era visto como andarilho nos cumes das serras do município, numa peregrinação que acompanhava o caminho das cercas demarcadoras dos territórios das fazendas”.

A transferência da família do campo para a capital é relatada pelo narrador já adulto, que tenta captar o olhar infantil com que percebia essa mudança: “era como se fosse uma brincadeira, mas de algum modo eu sabia que não teria volta”. Nesse contexto, são descritas suas primeiras impressões da cidade: “dava para notar que era preciso ter cuidado ao andar nas ruas do grande centro comercial”. Na nova disposição urbana, o que antes pertencia aos “rituais dos costumes” da família passa a ser percebido como “exótico” e “esquisitice”.

Mais à frente, pode-se perceber, então, que o trânsito não significa apenas o deslocamento de um território para o outro, mas diz respeito a uma mudança no modo de se impor no mundo. Em determinado momento do texto, o narrador afirma: “Pouco a pouco, a gente ia se desterrando […]”. A própria escolha do verbo “desterrar” reflete o abandono do chão da infância do protagonista e de seus antepassados, bem como o processo formativo que virá em decorrência das novas experiências na cidade.

O título do livro faz referência ao ofício do avô Possidônio (Homem do Braz), “rastejador”, que designa aquele que segue os rastros em busca de animais perdidos ou foragidos da justiça nos matagais. Numa das passagens da obra, o narrador comenta sobre um episódio de perseguição de Possidônio a um meliante: “O experiente rastejador saiu na busca dos bandidos e varou, à luz da lua cheia, noites no lombo da Serra do Bico. Com as pistas reveladas, o roubo foi descoberto e a fortuna recuperada”. É interessante notar como, nesse momento de perseguição, a palavra é cedida ao próprio rastejador: “Não posso dizer o nome do gatuno porque não sei, mas aposto que é da minha raça – conheço pelas pegadas […]. Pode confiar, se mostrou o dedo, vai mostrar a cara”.

Mas o termo também faz referência a alguém que investiga algo. Assim, pode-se pensar no próprio esforço de Pedro no decorrer da história, que, valendo-se dos elementos que emergem de sua lembrança, transcende o momento presente a fim de trazer à luz o que ficou “intumescido” no sangue.

Nessa narrativa, a memória é o grande elemento organizador do texto, funcionando como uma espécie de dispositivo de acesso e reconstrução do passado de Pedro. Não é raro que ela se sobreponha às vivências do narrador no presente do relato. É o que acontece, por exemplo, no momento em que o narrador relata a adolescência e a época em que trabalhava no balcão de uma farmácia. No intervalo entre a saída de um cliente e a chegada de outro, relembrava “as brincadeiras que […] aprendera no interior”. Ou, ainda, quando o protagonista visita a pequena cidade da sua infância e, ao entrar em uma Igreja, se vê diante de uma profusão de lembranças: “Lembrei-me, naquele instante, de um casamento ocorrido ali: tudo pronto para a cerimônia, a noiva já adentrando na nave e, de repente, desabou do alto da torre o peso oscilante, regulador do relógio da igreja”.

Essas lembranças também chegam, muitas vezes, involuntariamente, acionadas por um cheiro, uma cena, um objeto conservado pertencente à casa anterior, uma imagem ou um sabor: “A vaguear nas ruas, eu chegava a experimentar a sensação de coisas ausentes como o gosto antigo de sequilhos de goma. Via, em pequenas poças d’água, pedras de enxofre em fundo de cisterna”.

A forma fragmentária e residual com que a memória emerge na narrativa encontra simetria na construção do próprio texto, que foge à linearidade da narração dos acontecimentos. É como se o narrador freasse constantemente o fluxo do tempo cronológico para entregar a fabulação “das ações de uma família” e de sua própria vida por meio dos momentos de “manifestação nostálgica” que o invadem na nova realidade do centro urbano.

A narrativa contém alguns dados que se relacionam com a autobiografia do autor. Assim como o personagem principal, Humberto Araújo nasceu em Acari, na região do Seridó, e se mudou para Natal, na década de 1970, na sua juventude. Seu avô, que também se chamava Possidônio, era igualmente um rastejador. No entanto, esses elementos não criam ambiguidades ou fazem das informações externas à obra uma ferramenta importante para a sua compreensão, apenas funcionaram, como o autor afirma em entrevistas, como mola propulsora da escrita.

À proporção que amadurece, o protagonista se sente cada vez mais deslocado e passa a se enxergar como um vivente solitário que se acostuma mal à nova realidade, marcada pelo “barulho das ruas” e pelo “furacão de serviços oferecidos na indústria do turismo”. Essa realidade se opõe às suas experiências no campo, à convivência com os “moradores do sítio”, com os entes queridos e suas “babugens”. É justamente esse contraste de experiências e o impacto do cotidiano na cidade que o impele constantemente à rememoração, desejando “as coisas mais simples que a memória conservou”. Nesses momentos, as expressões típicas do sertanejo se tornam mais frequentes, e o leitor é levado a mergulhar na cultura potiguar.

Em Rastejo, o leitor é conduzido constantemente entre o passado e o presente do protagonista, mas também entre seu conflito interior e a nova vida social em que ele se vê inserido. Ao final da leitura, o que fica evidente é a maneira como Araújo oferece uma representação mais rica da experiência do sertanejo e da cultura potiguar, por meio do contraste identitário vivido por Pedro da Costa, e faz disso também uma maneira de resgatar e problematizar o panorama cultural do Nordeste no século XX.

Para saber mais

GONZAGA, Thiago. Humberto Hermenegildo: 40 anos de literatura. Sergivilar, 17 jan. 2019. Disponível em: https://papocultura.com.br/humberto-hermenegildo-40-anos-de-literatura/. Acesso em: 11 set. 2024.

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Como citar:

LIMA, Samara.
Rastejo.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

30 jan. 2025.

Disponível em:

3665.

Acessado em:

19 maio. 2025.