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Os verdes abutres da colina

PINTO, José Alcides. Os verdes abutres da colina. Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana, 1974.

Rebeca Bulcão da Silva
Ilustração: Léo Tavares

José Alcides Pinto (Santana do Acaraú, CE, 1923 – Fortaleza, CE, 2008) tem um extenso número de publicações composto por romance, conto, teatro, poesia e outros. Graduou-se em Jornalismo pela Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, e em Biblioteconomia pela Biblioteca Nacional. Trabalhou como jornalista, redator e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Ceará. Em 1956, foi um dos fundadores do movimento concretista no Ceará. Colaborou com diversos jornais da época, mas, em 1977, afastou-se de sua atuação profissional para se dedicar integralmente à escrita literária. Recebeu vários prêmios, entre eles o Prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra em 2008, que pode ser considerada vanguardista e experimentalista, já que sua escrita literária engloba marcas de variadas estéticas sem se vincular a nenhuma.

Os verdes abutres da colina (1974) faz parte da “Trilogia da Maldição”, juntamente com os livros O dragão (1964) e João Pinto Maria: a biografia de um louco (1974). A trilogia começa a ser escrita durante o contexto da ditadura militar no Brasil, logo após o autor rever sua trajetória política e decidir se afastar do Partido Comunista Brasileiro (PCB), sendo sua prisão, ainda na década de 1950, em decorrência da censura de artigos políticos, determinante para a escrita da obra, conforme é relatado em sua autobiografia Manifesto Traído, publicada em 1979. Mais especificamente, Os verdes abutres da colina foi escrito quando o autor voltou a residir no seu estado natal e visitou a antiga aldeia em que nasceu.

Essa mudança ocasionou um distanciamento de sua perspectiva literária inicial e provocou o abandono de certas temáticas ligadas à política para se aproximar de aspectos do regionalismo, explorando, em especial, temas como a memória da infância no interior e a formação de grande parte da região norte do Ceará. Essas características não estão associadas, nem pretendem recuperar, à ficção regionalista tradicional do nordeste dos anos 1930, mas a um tipo de regionalismo que, embora incorpore marcas culturais de identificação de um povo, pode ser considerado transgressor, subversivo ou “transfigurado”. Além disso, há também traços do naturalismo e do realismo fantástico.

O autor passa, então, a englobar os temas da maldição, do diabólico, do sexo, da morte e da loucura em sua obra. Isso propicia que sua escrita agregue ao regionalismo elementos que podem ser considerados autênticos, permeados pelo estranho e pelo sobrenatural. Em virtude da recorrência dessas temáticas, recebeu a alcunha de “poeta maldito”.  Ao explorar os recursos estilísticos com a utilização do extraordinário, do insólito e do absurdo, aproximou-se do realismo fantástico. Cabe lembrar que, nessa mesma época, a literatura latino-americana alcançou o seu auge com obras que investiram no realismo fantástico.

O romance, narrado em 3ª pessoa, aborda o início e o fim do povoamento da região situada na ribeira do Acaraú em Alto dos Angicos de São Francisco do Estreito, local de nascimento do autor. É o narrador que evidencia os fatos incomuns, as particularidades de cada personagem e os acontecimentos absurdos ocorridos no lugar. Um dos protagonistas é o português Antônio José Nunes, fugitivo de guerra, que vem de Cascais e chega ao porto de Acaraú escondido num navio cargueiro. Seguindo para Almofala, onde viviam os índios da tribo dos Tremembés, o homem passa a ser chamado coronel, rapta uma índia para ser sua mulher e sua cativa e fixa-se na terra para construir sua aldeia, dando origem ao povoamento. É pertinente destacar que esse nome pertence ao verdadeiro fundador da fazenda no local, o que revela, também, a relação entre realidade e ficção na construção da narrativa.

A obra é dividida em três partes – a primeira parte centra-se, em especial, na morte do coronel Antônio José Nunes, aos duzentos anos de idade, o que ocasiona uma mudança repentina no tempo, deixando a população da antiga aldeia de Alto dos Angicos de São Francisco do Estreito, “dos campos do Piauí, dos Inhamuns, do Coreaú e das fronteiras do Estado” desnorteada, como se uma maldição tivesse se instalado na região. O coronel, que “tinha o diabo no couro”, foi o desbravador e o principal reprodutor, independentemente da idade da mulher e seu grau de parentesco, possibilitando as relações de consanguinidade e incesto, fatos que teriam despertado a ira divina. As mulheres eram atraídas voluntariamente e a descendência se multiplicava de forma indiscriminada, amaldiçoada pelo atavismo.

Em vários momentos, principalmente em relação à ideia da origem do paraíso e dos primeiros habitantes e à multiplicação da espécie, a narrativa remete ao livro do Gênesis da Bíblia, assim como o contato entre o português e a índia pode referir-se ao processo de colonização do Brasil por Portugal: “Esse ato de violência inaugura no romance uma atmosfera maligna associada à presença do coronel, pois mancha a ideia de paraíso edênico, desenvolvida ao longo do texto. A mancha é resultado da falta, do pecado e o homem se coloca na condição de desviante da ordem divina. Ora, o pecado, a mancha, a culpa e o desvio são símbolos que constituem o mal” (Oliveira, 2019).

Entre tantos eventos inexplicáveis pela ordem racional, como a coincidência entre mortes; a idade avançada dos habitantes, ultrapassando, geralmente, um século e meio; a presença de estranhos animais que ameaçavam a região; a prostração e a inércia dos cidadãos por um determinado período, resultando na animalização ou no retorno ao primitivo; a morte do “garanhão luso” foi o que teve maior impacto e levou o lugar a entrar em decadência e a maldição pairar como uma espécie de prisão do tempo, acarretando a perda da memória da população.

Padre Anastácio ou Asceta foi o responsável por elaborar um relatório que pudesse registrar os estranhos acontecimentos da comunidade de Alto dos Angicos de São Francisco do Estreito, de forma que os fatos pudessem ficar documentados para a posteridade, já que os habitantes não poderiam servir de testemunha, uma vez que estavam fadados ao esquecimento: “O Asceta não sabia bem explicar como as coisas aconteciam na aldeia de Alto dos Angicos. As criaturas eram logo levadas ao esquecimento, perdiam a memória do momento, como se o germe de uma doença fatal e comum a todos existisse no ar do tempo daquelas paragens, no oxigênio que as criaturas respiravam”.

Sem estabelecer a passagem do tempo com precisão, a segunda parte trata da chegada de padre Tibúrcio, neto do antigo padre, para exercer o sacerdócio na região, dando prosseguimento à tradição, mas com o objetivo de encontrar tal relatório. O progresso e a expansão do povoado já eram visíveis com a evolução do conhecimento, o discernimento dos habitantes e o surgimento da política com a organização de partidos, diferentemente do que havia ocorrido no passado caracterizado pelo estado de letargia que acometeu a população.

Na terceira parte, padre Tibúrcio continua em busca do manuscrito, mas sem êxito. Embora o povo estivesse ávido pelo trabalho, demonstrando força e vitalidade de outras épocas, a maldição ou “a doença” voltava a se manifestar ainda mais ameaçadora e destrutiva. Vale destacar, ainda, que a única presença feminina em evidência na obra se contrapõe à figura do coronel. Rosa é a moradora mais antiga da aldeia, exemplo de sabedoria e guardiã do local, e mantém a ligação com o sagrado.

Embora permeado por elementos insólitos e localizado territorialmente, o romance possibilita algumas discussões e reflexões na atualidade com a ampliação dos limites do espaço ficcional, extrapolando a esfera local, já que a temática parte de um microcosmo e pode se estender ao universal como, principalmente, no que se refere às complexidades humanas e às relações entre as dualidades – o bem e o mal, o profano e o sagrado, a vida e a morte, entre outras. Além disso, a obra evidencia outro aspecto: a importância da escrita não só para o registro histórico, mas também para a manutenção da memória.

É possível verificar que há na obra o embate entre forças divinas e diabólicas que lutam por sua predominância no espaço ficcional, assim como desencadeiam os conflitos do enredo, demonstrado tanto pela influência do cristianismo e da figura dos padres, que tentam orientar os habitantes de suas condutas desviantes, quanto pela presença das diversas representações assumidas pelo diabo, que ora são personificadas por certos personagens, ora por animais voadores que pairam sob o céu: “Depois da morte de Antônio José Nunes é perceptível que a concepção de mal muda de direção, deixando de ser vinculada à existência física do patriarca para se tornar uma espécie de vírus, que pode ser contagioso. Desta forma, a comunidade passa a sofrer por medo do contágio, medo de ficarem manchados com o vírus do mal de origem, herança do patriarca” (Oliveira, 2019). Assim, sem uma representação fixa, essa presença maligna e perturbadora que ataca o lugar; potencializa e espalha seus efeitos a todos os seres.

Para saber mais

OLIVEIRA, Ana Tamires da Silva (2019). As manifestações do mal em Os Verdes Abutres da Colina. Dissertação (Mestrado em Estudos Comparados de Literatura de Línguas Modernas) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza. Disponível em: http://repositorio.ufc.br/handle/riufc/47495. Acesso em: 30 jul. 2024.

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Como citar:

SILVA, Rebeca Bulcão da.
Os verdes abutres da colina.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

30 jan. 2025.

Disponível em:

3663.

Acessado em:

19 maio. 2025.