SABINO, Fernando. O grande mentecapto: relato das aventuras e desventuras de Viramundo e suas inenarráveis peregrinações. Rio de Janeiro: Record, 1979.
Edmon Neto
Ilustração: Moreno Lago
Fazer-se pequeno, um dos atributos para entrar no reino dos céus, segundo o Evangelho de Mateus, é ideia presente na epígrafe de O grande mentecapto, do mineiro Fernando Sabino (Belo Horizonte, MG, 1923 – Rio de Janeiro, RJ, 2004). Essa referência à tradição cristã, já na abertura do romance, irá circunscrever de modo decisivo a formação do protagonista Geraldo Peres da Nóbrega e Silva, o Viramundo. Ainda que o prenúncio seja um traço de personalidade calcado na humildade e no humanismo, e isso se confirma no desdobramento do romance, a obra de Sabino complexifica o desenvolvimento subjetivo de Viramundo ao trazê-lo inscrito sob o signo da loucura.
Publicado pela primeira vez em 1979, o relato das peregrinações pelas cidades de Minas Gerais, empreendidas pelo dito mentecapto, é conduzido por um narrador que também é biógrafo desse indivíduo associado ao homem tolo, sem juízo, errante herói nascido em Rio Acima. Como contraste, Fernando Sabino cria um narrador que é escritor erudito e experiente ao articular um enredo no rastro picaresco de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (sátira das novelas de cavalaria medievais) e de tantas evocações à literatura mineira incorporadas à experiência de Viramundo.
Vivendo uma vida de menino do interior de Minas, filho de mãe italiana e pai imigrante português, um incidente marca a vida do protagonista e daquela comunidade. Ao forçar a parada de um trem nas imediações de Rio Acima, Viramundo é julgado responsável indireto pela tragédia de Pingolinha (criança que tentara em vão repetir a mesma façanha daquele), condenando o mentecapto a tornar-se um indivíduo ensimesmado e solitário, aumentando, contudo, o seu desejo de abandonar a cidade “para um lugar que não sabia onde”. Isso porque impingiu-se a pecha do desajuste sobre o menino que crescia em um mundo implacável ao cobrar dos homens uma suposta normalidade. Assim, completada a sua maioridade, o herói parte de Rio Acima e inicia uma saga de aventuras pelas principais cidades do estado.
A passagem pelo seminário de Mariana é viabilizada pelo Padre Limeira, surpreso pelo desejo de Geraldo Viramundo atingir uma “vida ascética”, interpretada como a recusa total a qualquer possibilidade de prazer. Entretanto, uma confissão ao ainda seminarista, feita pela viúva Correia Lopes, a Dona Peidolina, ganha popularidade em Mariana. Segundo a mulher, o fantasma do marido a assediava durante a noite e, tão logo a história ganha a cidade, Viramundo é expulso do seminário e vai morar no cemitério, tendo o auxílio único do poeta Alphonsus de Guimarães. Perseguido por populares, o mentecapto é confundido com o fantasma da viúva e isso gera uma onda de revolta que culminará tanto numa outra confissão (agora pública) de Dona Peidolina quanto no linchamento de Viramundo.
Em Ouro Preto, entre confusões e brigas, o protagonista torna-se amigo do estudante Dionísio e do cego Elias, além de conhecer aquela que seria o seu amor: Marília Ladisbão, em alusão à musa de Tomás Antônio Gonzaga, Marília de Dirceu. A jovem era filha do governador Clarimundo Ladisbão, político influente e “senhor absoluto” da província. Pela donzela, Viramundo nutre uma paixão delirante e, por meio de uma farsa arquitetada pelos estudantes, pensa trocar juras de amor com quem teria se encantado pela sua atuação (na verdade, constrangedora) num espetáculo sobre a Inconfidência Mineira. Viramundo deixará Ouro Preto após ter sido espancado pelo elenco da peça e iniciado um evento escatológico numa festa em que o governador é alvo incidental.
Em Barbacena, pensando poder encontrar Marília, o mentecapto rouba, com o amigo Barbeca, centenas de rosas do alemão e escravocrata Herr Bosmann, o que lhe rende a prisão em um dos muitos manicômios da cidade. Ao Dr. Pantaleão ele assume o alter ego do poeta russo Maiakovski e consegue, com esperta encenação, passar-se por médico e convencer os outros funcionários de que o alemão é que era homem louco e perigoso. A essa altura, já famoso por conta da festa em Ouro Preto e colecionando incontáveis epítetos mencionados pelo biógrafo narrador, Viramundo envolve-se na política local cujas principais forças (biista e bonifacista) eram ambas contrárias à atuação do governador Ladisbão, apoiador do títere Borba Gato para candidato à prefeitura. Como solução, os opositores sustentam a candidatura de Viramundo e este desafia o pleiteante rival para um “debate” público. Após aclamação pela performance do herói, os militares presentes intervêm de modo obtuso no evento e o enviam para servir ao exército em Juiz de Fora.
Na cidade de Murilo Mendes, sob o comando do Capitão Batatinhas, a narrativa de Fernando Sabino ganha contornos de realismo mágico quando o herói afirma, para o espanto de todos, poder conversar com o cavalo Bunda Mole. Sem compreender os trâmites e a hierarquia militares, Geraldo Viramundo dedica-se à poesia e à vigilância secreta do Tenente Fritas, a mando do capitão. E em meio à guerra que se anunciava entre os exércitos Azul e Vermelho, e estando o Esquadrão de Cavalaria de Juiz de Fora subordinado ao primeiro, Viramundo é capturado pelo segundo, ficando em posse, porém, da carta de rendição que dava fim à guerra. Em São João del Rei, torna-se guardião dos instrumentos da Euterpe Lira de Ouro, cargo do qual foi sumamente expulso após incidente com um gambá. Na prisão voluntária em Tiradentes (ele troca de posição com João Tocó), permanece por mais de um ano; em Congonhas, reencontra o cego Elias, vitimizado pela truculência dos militares.
A partir da ida do grande mentecapto ao triângulo mineiro, o narrador confessa que a ordem dos fatos já não condizia exatamente com o que se passara. O herói revê Marília Ladisbão em Uberaba, cidade na qual é reverenciado, já que fora responsável por dar fim ao assombro provocado por um touro desgarrado. Contudo, em um aceno de indiferença, ele não explicita, pela sua amada, a mesma subserviência de outrora e segue seu caminho. Enquanto isso, as referências à literatura mineira acentuam-se na passagem por Leopoldina (onde foi enterrado o poeta Augusto dos Anjos), Cataguases (cidade dos autores ligados ao Grupo Verde do Modernismo mineiro), Curvelo (cidade de Lúcio Cardoso e na qual se dialoga com a obra Crônica da casa assassinada), e muitos outros municípios e autores direta ou indiretamente mencionados. A intertextualidade com Guimarães Rosa, por exemplo, é curiosamente estabelecida: Viramundo, afeito a tantas facetas, é considerado também um possível irmão de Diadorim, personagem central de Grande sertão: veredas. Tudo isso contribui para a construção de uma personagem bem mais complexa do que se poderia inferir da sua formação religiosa. Em certa altura, despertando para a consciência de si mesmo, entendendo-se como um “vagabundo maravilhoso”, o grande mentecapto profere as seguintes palavras: “Este ser engasgado, contido, subjugado pela ordem iníqua dos racionais é o verdadeiro fulcro da minha verdadeira natureza […], herói e pobre-diabo, pária, negro, judeu, índio, cigano, santo, poeta, mendigo e débil mental […] que um dia há de rebelar-se […] terrível na pureza da sua loucura”.
Viramundo irá cumprir seu destino nas cercanias de Belo Horizonte, entre retirantes, mulheres, doidos e mendigos, em nome dos quais ele lidera uma rebelião, não sem tomar cabo das devidas consequências. O desfecho das personagens será comentado no epílogo, assim como serão fornecidas as referências bibliográficas ficcionais, utilizadas pelo narrador em sua pesquisa. O autor empírico Fernando Sabino, por sua vez, generosamente esclarece as passagens em que textos e autores são evocados no romance que é uma ode à literatura e à cultura mineiras, tendo sido vencedor do Prêmio Jabuti em 1980 e adaptado para o cinema em 1989 pelo diretor Oswaldo Caldeira.
Alguns estudos ainda apontam o caráter carnavalesco e alegórico de O grande mentecapto ao vinculá-lo – sobretudo pelo prospecto violento que perpassa a narrativa – a uma representação velada da Ditatura Militar (1964-1985). E se a motivação que dá início à saga de Geraldo Viramundo, ligada à atitude de oferecer a outra face, sugere o recolher-se humilde em sua pequenez ou o entregar-se sem defesa ao inimigo, com ela se conclui que alguns gestos universais, repetidos por ilustres anônimos, podem ser capazes de engrandecer e eternizar.
Para saber mais
ARAGÃO, Hudson Oliveira Fontes (2015). O grande mentecapto, de F. Sabino: a construção literária e social do anti-herói Geraldo Viramundo. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão. Disponível em: https://ri.ufs.br/handle/riufs/5676. Acesso em: 4 dez. 2024.
CASTRO, Maraiza Almeida Ruiz de (2014). O grande mentecapto: romance carnavalizado. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, São José do Rio Preto. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/entities/publication/1c7be926-a7b4-4b78-bb6d-210047405e20. Acesso em: 4 dez. 2024.
MELO, Valdirene Rosa da Silva (2021). O grande mentecapto: entre a peregrinação do pícaro e a deambulação de Dom Quixote, a crítica social de personagens itinerantes. In: BRITO, Amanda Ramalho de Freitas; SILVA, Luiz Felipe Verçosa da; OLIVEIRA, José Antonio Santos de (Orgs.). Poéticas da intersecção: ensaios de literatura comparada. Tutóia: Diálogos. p. 157-176. E-book. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1PNeE6EjDjrN5xW8shv8f6Bhmp23Fl52K/edit. Acesso em: 4 dez. 2024.
Iconografia