CARRERO, Raimundo. O amor não tem bons sentimentos. São Paulo: Iluminuras, 2007.
Juliana Florentino Hampel
Ilustração: Léo Tavares
Raimundo Carrero (Salgueiro, PE, 1947) é escritor e jornalista. Atuou em diversas funções por 25 anos no Diário de Pernambuco e, depois disso, exerceu cargos variados em órgãos públicos do Estado, tendo sido assessor de imprensa na Fundação Joaquim Nabuco e presidente da Fundação do Patrimônio Artístico de Pernambuco (Fundarpe). Na década de 1970, Carrero foi um dos integrantes do Movimento Armorial, que, idealizado pelo amigo e escritor Ariano Suassuna, visava, a partir do romanceiro popular do Nordeste, criar uma obra de arte total na qual a literatura, a música, as artes plásticas, o teatro, a dança, o cinema, a arquitetura etc. convergissem em um único e mesmo movimento.
Carrero possui uma vasta obra publicada, entre peças de teatro, contos e romances. Atualmente, dá oficinas literárias em que discorre sobre seu método de escrita, descrito em dois ensaios: Os segredos da ficção (2005) e A preparação do escritor (2009). Em 1996, recebeu o Grande Prêmio da Crítica (APCA) e o Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional por Somos pedras que se consomem (1995). Nos anos 2000, ganhou o Prêmio Jabuti com o romance As sombrias ruínas da alma (1999). Em 2018, a Cepe Editora publicou Condenados à vida, tetralogia que reúne os seguintes romances do autor pernambucano: Maçã agreste, de 1989, Somos pedras que se consomem e O amor não tem bons sentimentos, ambos de 2007, e Tangolomango, de 2013.
De acordo com José Castello (2018), no prefácio de Condenados à vida, “a leitura desses quatro grandes romances de Carrero dilacera. Rasga a proteção íntima que costumamos usar para nos defender do mundo. A verdade é: eles nos atordoam”. De fato, O amor não tem bons sentimentos apresenta um texto perturbador, com uma narração visceral em primeira pessoa feita pelo protagonista Mateus, que se inicia com a visão do corpo de sua irmã Biba boiando nas águas do Capiberibe, imagem que atravessará toda a narrativa.
Seguindo em um vórtice alucinado em que pensamentos e inúmeras vozes se sobrepõem, ele passa a descrever com detalhes o corpo nu de Biba, com seus seios e pernas rígidas que provocam o desejo dos homens, inclusive o seu, um corpo que, por ser bonito, deve “ser amado violentamente, admirado violentamente” uma vez que a atração é “dramática e violenta”. Assim, mesmo morta, ela continua “linda [com um] corpo de alegria e dor”. Quando viva, ela andava livremente pelas ruas e se banhava no rio “sempre com as carnes acesas e lisas, causando incômodo na alma”, provocando os meninos da região que subiam nas árvores para admirá-la, situação que causava a ira do irmão. Neste ponto inicial da história, o leitor já passa a conhecer a forma de amor que é explorada na obra, um amor no qual não se encontram bons sentimentos e em que o conteúdo mais primitivo e carnal será preponderante.
A morte de Biba dispara uma reflexão em Mateus, que volta no tempo para contar sua história. Retirado da mãe logo após o nascimento, Mateus é entregue à tia Guilhermina, que o cria até o início da adolescência. O casarão isolado onde vive seus primeiros anos de vida “envolvido por árvores e muros, aonde convergiam tristeza e abandono” era o último da rua, recuado, e nele pairava um silêncio absoluto somente quebrado pelos cantos melodiosos da tia. O fato de ter sido levado para longe ainda envolto pelo sangue do parto apresenta ao leitor uma imagem devastadora de desespero, quando o próprio narrador afirma que nesse mesmo momento sente que “a vida é um abismo, um fundo abismo em que não se conhece sossego e onde não existe qualquer tipo de esperança”, sentimentos que o acompanharão por toda a sua existência.
No início da adolescência, sem qualquer explicação prévia, sua volta para Recife lhe é anunciada. Agora, ele vai morar em um outro casarão antigo, enquanto aguarda a mãe cumprir pena pelo assassinato do pai, fato nunca realmente esclarecido. De um espaço tranquilo e solitário, onde ouvia uma sinfonia de diferentes pássaros, Mateus passa a viver em uma metrópole barulhenta em que pardais, cigarras e grilos se comunicam em um coro desafinado e perturbador. Quando Dolores retorna, seu “silêncio de deserto” o atormenta e provoca um questionamento: “Mãe era aquilo? Aquele desencanto de gente? Sem palavras, sem cantigas e sem beijos?”. Até então, Mateus desconhecia suas origens.
Sendo parte de uma família disfuncional, marcada por relações incestuosas, o narrador-protagonista de O amor não tem bons sentimentos é um ser que se diz “magoado com o mundo”, uma pessoa “provisória” no âmbito familiar desestruturado, no qual ele não é educado ou orientado, apenas ordenado a cumprir determinados papéis. A fragilidade dos laços parentais cria fissuras em sua personalidade que acabam sendo preenchidas por “metáforas delirantes” em uma “tentativa de restituir seu mundo interior” (Leoncio et al., 2022), constituído de modo disfuncional em um espaço onde impera a falta de comunicação no seio familiar.
Por se tratar de um romance que entra fundo na psique humana, a leitura desta obra de Carrero desestabiliza, choca, mas, ao mesmo tempo, instiga o leitor a prosseguir, levado, quem sabe, pela curiosidade de entender o vazio existencial que acomete todas as personagens e os não ditos que pairam no ar, tornando a narrativa nebulosa e com uma atmosfera pesada. Há instantes em que é clara a repulsa pela versão do narrador sobre os acontecimentos, especialmente nas cenas em que relata sua visão de corpos femininos – da irmã, da mãe, da tia –, pontos de vista que soam obscenos e que apontam para a inexistência de limites entre os corpos nessa família.
Consoante Cristiane Amorim (2009), em artigo que analisa o romance, as relações incestuosas presentes em grande parte das obras de Carrero parecem querer apontar para a ausência absoluta de afetividade entre familiares que repetem ciclos nos quais se sobressaem a falta de comunicabilidade e a solidão, e nos quais prevalece uma linguagem corporal que resvala em pura libido, borrando as fronteiras entre a posição que cada um supostamente deveria ocupar na esfera familiar. O sofrimento desses seres atormentados, portanto, os enrijece, permitindo que prevaleça o instintivo e o animalesco de cada um, evidenciados na aceitação pacífica do incesto por parte de Mateus: “Logo depois chegou Biba, filha legítima do meu irmão e pai Jeremias com minha outra irmã Ísis – na nossa família as coisas se resolvem aqui mesmo, não precisamos de estrangeiros para nada. Nem de outros lábios, nem de outras bocas, nem de outros corpos”.
Discorrer sobre esses temas causa uma tensão permanente durante a leitura, que deriva da exposição ininterrupta da cisão entre a ação e o pensamento de Mateus. A todo momento, por ele estar preso em elucubrações que se multiplicam com o decorrer da história, são perceptíveis sua aflição e angústia constantes, que acabam por igualmente atingir o leitor. Carrero, de forma meticulosa, apresenta a desordem do pensamento de alguém que vive em delírios torturantes de modo atemporal e que reconstrói seu entorno de maneira irreal, em uma dualidade que revela uma dissociação psíquica, “meus pensamentos são invadidos pelos outros […] somos muitos – eu, meu outro eu, meus muitos eus”. As alucinações de Mateus vão se intensificando no decurso da narrativa a ponto de ele acreditar que até sua mãe controlaria sua mente: “Os pensamentos de Dolores atormentavam os meus pensamentos”.
Uma leitura psicanalítica de O amor não tem bons sentimentos conduz à interpretação dessa dissociação psíquica de Mateus como sendo a manifestação de uma psicose. Nesse estado, o indivíduo fragmenta sua identidade a fim de suportar o mundo percebido como hostil. Uma das vozes com quem ele dialoga confirma essa ideia: “O abismo se abre a nossos pés. A pior coisa do mundo, Matheus, é quando o homem se sente sozinho e abandonado à beira de um precipício”. Durante toda a narrativa, as declarações de se sentir sufocado, desamparado e com medo se alternam com as discussões que soam banais, como se deveria tomar o café quente ou não, se Biba estaria com frio ou não e até a ideia de uma possível cura para o seu mal: “Ainda vou conseguir mudar meus pensamentos. Vou a um médico, ele retira os pensamentos que não são meus e que eu não quero, coloca outros que não são meus, mas que eu quero porque prestam, tudo resolvido”.
A inovação da escrita de Carrero está presente justamente na habilidade de adentrar, com profundidade, o universo interior humano e desvelar os sentimentos que se tenta a todo tempo esconder, permitindo ao leitor um espaço de elaboração da face maléfica do amor, aquela mais próxima das grandes tragédias. O modo como a narração das agruras de Mateus se adensa a cada capítulo lido traz o leitor para dentro desse âmago conflituoso, provocando sentimentos de aversão que vão se transformando com o passar das páginas até que sobra uma espécie de compaixão – ou, quem sabe, identificação – com essas personagens tão solitárias e desamparadas. Assim, Carrero mostra o movimento do mundo interior de cada indivíduo no qual o eu é plural e se constrói, sempre na relação com o outro – “Somos muitos”, diz Mateus –, mas, quem sabe, com um alerta para o perigo de não se estabelecerem limites nessas relações em que o eu transborda e se contamina, enquanto contamina também aos outros.
Para saber mais
AMORIM, Cristiane (2009). A presença do duplo em O amor não tem bons sentimentos, de Raimundo Carrero. Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea, [S. l.], v. 1, n. 2, p. 23-34. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/flbc/article/view/17157. Acesso em: 24 jul. 2024.
CASTELLO, José (2018). Raimundo Carrero: literatura que atordoa. Revista Continente, [S. l.], ed. 211, n.p. Disponível em: https://revistacontinente.com.br/edicoes/211/raimundo-carrero–literatura-que-atordoa. Acesso em: 20 jul. 2024.
LEONCIO, Bruna Rafaele Calasans et al. (2022). O amor não tem bons sentimentos: o que a psicanálise pode dizer?, Revista Lumen, Recife, v. 31, n. 1, p. 33-53. Disponível em: https://fafire.emnuvens.com.br/lumen/article/view/74. Acesso em: 24 jul. 2024.
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