IVO, Lêdo. Ninho de cobras: uma história mal contada. Rio de Janeiro, José Olympio, 1973.
Carmen de Jesus Garcia
Ilustração: Francisco Dalcastagnè Miguel
Lêdo Ivo (Maceió, AL, 1924 – Sevilha, Espanha, 2012) foi poeta consagrado, romancista e ensaísta premiado, autor de crônicas e jornalista, eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL) em 1986. Seu primeiro livro de poesia foi publicado em 1944, aos 20 anos, seguindo-se intensa produção poética e inúmeras premiações. Quanto à prosa, seu primeiro romance foi publicado em 1947, e premiado pela Fundação Graça Aranha.
O romance Ninho de cobras: uma história mal contada veio a público em 1973, recebeu o Prêmio Nacional Walmap e deu notoriedade a Ivo como romancista. A obra foi traduzida e publicada em vários países. Em 1983, com mais de 30 livros publicados, o autor foi distinguido com o Prêmio Mário de Andrade, conferido pela ABL, pelo conjunto de sua obra.
Ninho de cobras se divide em dez partes, em cerca de 200 páginas. Seu enredo descreve a vida no centro da cidade de Maceió dos anos 1930-1940. Uma raposa percorre a cidade até ser abatida. O romance apresenta histórias de personagens típicos de uma estrutura social fortemente patriarcal, de base agrária, que objetifica o corpo da mulher e que absorve em seu cotidiano os efeitos de um estado repressivo, ditatorial, representado pelo Estado Novo. A história se passa em um dia apenas, mas na caracterização dos personagens, Ivo registra diferentes formas de violência numa sociedade desigual, como a fome, a inadequada assistência à saúde, o estupro e o abuso de menor. O uso do terror para manter a ordem conta com a anuência de suas elites, e aqueles que dela não fazem parte estão sujeitos a ter o mesmo destino da raposa.
A primeira impressão de leitura é de se estar diante de uma narrativa simples, em que as histórias dos personagens são apresentadas em sequência, cada uma das partes podendo ser lida como um conto. Esse aspecto foi salientado por Rubens Eduardo Ferreiras Frias (2004), que o destacou para contrapor o argumento, defendendo o papel condutor da raposa, que aparece em muitas partes do livro. De fato, há a figura da raposa, presente na abertura das histórias, alimentando uma ou outra conversa, mas pode-se pensar que essa interligação esteja marcada, sobretudo, pela ameaça que a morte da raposa faz pairar no ambiente social, como alegoria do destino daqueles que infringem as regras sociais. Nesse sentido, há certa complexidade que interliga as histórias e dilui a impressão de se tratar de contos, mas de um conjunto de histórias entrelaçadas.
Nesse particular, é interessante registrar opinião da estudiosa do romance Adriana Nunes de Souza (2022), ao destacar, nessa fragmentação da narrativa que chega a se pensar em contos, uma característica de modernidade da obra. Há uma “convergência entre a história e a literatura em um texto no qual o discurso metafórico prevalece sobre o realista”, e “torna o texto rico em recursos próprios da modernidade literária, aqui entendida como escrita que quebra a estrutura linear da narrativa e utiliza a fragmentação e a ironia como alicerces”.
O romance é rico em detalhes descritivos da cidade, uma quase personagem, o que se deve à narrativa, às vezes documental, do autor alagoano apaixonado pela história e beleza de sua cidade natal, como aponta Frias (2004). Essa característica está presente já no início, quando a raposa invade a cidade, ao amanhecer. No percurso da raposa, vão sendo reveladas as principais ruas e becos da cidade, seus cheiros, os espaços públicos, detalhes paisagísticos e de costumes, os estabelecimentos e as instituições, à medida que ela adentra e o dia vai se abrindo. No trajeto já estão presentes, em closes, os personagens do romance, descritos nas suas partes subsequentes. Ao caminhar, a raposa é vista por muitos, mas é confundida com cachorro e assim prossegue sem ser molestada, até ser avistada pelos guardas do posto policial.
Ninho de cobras tem um narrador onisciente que tudo sabe e relata, sejam as paisagens, as memórias do autor, a história da cidade e do país, ou os sentimentos dos personagens. Alguns personagens são nominados, outros são identificados por suas profissões e há até um personagem inominado. Além deste, importante na história, os tipos destacados são um professor e advogado, Serafim Gonçalves, representando a elite; Alexandre Viana, um homem comum angustiado; e o assassino Piolho de Onça. Outros personagens sobressaem: a freira insone que, de sua janela no hospital da cidade, tudo vê; a prostituta sem nome cujo sonho é morar na pensão e lá servir seu corpo; o poeta e alguns nominados como Guabiraba que fazem o papel de leva-e-traz. Essas principais figuras que compõem o quadro social que o autor identifica na cidade se encontram nos eventos, seja no cemitério ou nas festas.
Serafim Gonçalves é o professor que almeja a legislatura para a Assembleia Legislativa, num país com o Congresso fechado, esperando obter vitória pelos votos de cabresto, garantidos pelo apadrinhamento do sogro, que é coronel. Gonçalves é o defensor do regime. Conivente com sua crueldade, posa ao lado do matador profissional e está presente em todas as partes da obra. Frequentador de bordel, junto à elite da cidade, é homossexual e tem família e status a preservar, mora na casa de janelas abertas para expor sua coleção de livros, talvez comprados a metro, tudo contribuindo para reforçar a importância da aparência e da artificialidade da sociedade que defende.
Alexandre Viana, homem comum, trai a mulher, entra em conflitos existenciais por conta disso, não os resolve e tem destino trágico, no dia da invasão da raposa. A notícia de sua morte é espalhada pelas vias informais de comunicação, como sendo de responsabilidade do Sindicato da Morte. A freira insone que tudo vê sente a existência de um vínculo entre a morte da raposa e a de Alexandre Viana.
E há o personagem inominado, apresentado em “O homem do balcão”, porque trabalha atrás de um balcão, e se destaca por escrever cartas anônimas, denunciando o que acontece na cidade. Ele invade a privacidade das pessoas, repassa boatos como o da morte de Alexandre pela repressão, dedura pessoas e, quando isso diz respeito a alguém da elite, afronta a ordem social vigente. Seu destino trágico vai sendo insinuado ao longo do livro, muito antes de seu desfecho. Há um suspense na narrativa das cartas que são escritas e postadas, no disfarce das letras, e é esse clima, sobretudo, que entrelaça a história da raposa ao romance.
O matador por encomenda Piolho de Onça, membro do Sindicato da Morte, é conhecido por todos. Sua função é liquidar os adversários do regime, em qualquer parte, mas nem por isso deixa de ser aceito. Sua presença nas festas orgiásticas visa à proteção dos locais contra eventuais problemas com a tripulação dos navios ancorados. O assassino frequenta e circula e é bem recebido pelas figuras típicas da sociedade no momento em que escancaram suas vidas duplas, ao traírem suas esposas, seja com mulheres ou com os marinheiros.
Piolho sela o destino do inominado que, apesar de não ter nome, constava, segundo o narrador, “de um livro negro como o dos cartórios”, ou seja, das fichas políticas dos órgãos de repressão. Esse momento é particularmente expressivo do terror imposto pelas ditaduras aos seus opositores. Sejam as práticas repressivas e de tortura física da DIP, órgão de propaganda e repressão da ditadura do Estado Novo, sejam as do DOPS, órgão de repressão da ditadura militar, não existem limites para a tortura física, pois ela pode prosseguir à morte do torturado. Aqui especial alusão se deve fazer à época em que o livro foi publicado, em plena ditadura militar, na sua fase mais cruel, acrescentando atemporalidade à narrativa.
O uso de recursos estilísticos transparece com a própria raposa e seu significado e, em que pese sua astúcia, também é vítima da violência social. Há uma simbologia na ênfase da proximidade com o mar, na descrição da cidade que desce para o mar, na importância do cais na rotina da cidade, o cotidiano que flui como as águas. Destaca-se também a descrição das festas, seja na pensão ou na praia, recurso imagético forte, típico de textos naturalistas, verdadeiros rituais hedonísticos.
Surpreende a descrição da Maceió feita por Ivo, com seus pratos, quitutes e aperitivos característicos, seu apego ao prazer, suas bebidas, a alusão de ter a melhor cachaça do país, de a cidade ser o local em que se misturou, pela primeira vez, uísque com água de coco. Nesse ambiente festivo, os personagens se encontram e destilam suas intrigas, indiferentes às mortes do dia, a da raposa e a de Alexandre, e à que está anunciada.
A vida segue na Maceió dos anos 1930 e 1940, indiferente à existência humana, nesse relato irônico da sociedade local, de seus personagens e costumes, que nos é apresentado com inteligência e talento pelo autor.
Para saber mais
FRIAS, Rubens Eduardo Ferreira (2004). A raposa sem as uvas. Uma leitura de Ninho de cobras, de Lêdo Ivo. Rio de Janeiro: ABL.
SOUZA, Adriana Nunes de (2022). Entre a história e a modernidade. Uma análise de Ninho de cobras, de Lêdo Ivo. São Paulo: Dialética.
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