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Morcego cego

LEMOS, Gilvan. Morcego cego. Rio de Janeiro: Record, 1998.

Anderson Felix dos Santos
Ilustração: Léo Tavares

Em meio ao cenário da periferia no espaço urbano do Recife do fim do século XX, marcado por um processo de urbanização que expulsou do grande centro a população pobre e os relegou aos becos e viadutos, Gilvan Lemos (São Bento do Una, PE, 1928 – Recife, PE, 2015) escreveu em 1988, e publicou dez anos depois, em 1998, Morcego cego. O romance tem lugar particular em sua bibliografia, pois comprova a capacidade do romancista de apropriar-se da literatura para escrever uma obra densa, estruturalmente complexa e distanciando-o do rótulo de regionalista que até então o perseguia. Morcego cego narra, ao longo de seus 17 capítulos, a trajetória de Juliano, jovem órfão adotado por um casal miserável da periferia do Recife, em busca da verdade sobre sua origem, que, na tentativa de mudar seu destino, acaba concretizando uma tragédia edipiana aos moldes modernos.

Juliano cresceu em uma palafita sobre o rio, veio ao mundo sem conhecer seus pais biológicos e privado de afeto e condições materiais, em situação miserável com seus pais adotivos – nomeados como a bêbada e o dos pés inchados –, exposto a situações degradantes e vivendo à base de mendicância e crimes diversos. Logo após a morte desses, da infância para a adolescência, é acolhido por um casal de irmãos – velha Noca e velho Nei – que o conheceram recém-nascido, sabem sua origem, mas jamais a confessam, revelando somente que ele nasceu no casarão de dr. Bacelar, rico e poderoso dono de uma fábrica de biscoitos do Recife.  Assim, o rapaz passa a desconfiar que é filho do magnata com alguma empregada e resolve procurar trabalho na mansão do empresário para aproximar-se dele e, enfim, ocupar o lugar que julga ser seu por direito.

Essa desconfiança faz com que o rapaz tenha consciência de um processo interior ao qual esteve até então destinado: a luta contra o destino. Durante sua infância e adolescência, acreditou firmemente estar em constante batalha contra a força do fado que, implacável, o mantinha na miséria. Sua trajetória, em meio ao caos da pobreza da vida, das mazelas do destino e da criminalidade das ruas é feita, sobretudo, do desejo maior de formar-se alguém poderoso, tornar-se rico e forte, de modo que triunfe sobre o destino.

No palacete de dr. Bacelar, ocupa-se como jardineiro e apaixona-se pela filha do patrão, Olímpia, mulher madura e comprometida, casada há anos por conveniência com o Coronel Alvim. Ainda assim, Juliano e a mulher começam uma relação extraconjugal secreta e sexualmente intensa que está interditada por um terrível segredo que ronda sua consciência e também pela questão de classe que os separa. Nesse contexto, o destino é seu grande inimigo, é pela força dele que credita seu direito à herança e é contra ele que Juliano tenta, a todo tempo, lutar. Assim como Édipo, o jovem é refém do fado e sua conclusão nefasta é justamente o resultado da tentativa de driblá-lo. Em um paralelo edipiano, Juliano tenta a todo custo escapar desse destino e buscar a revelação sobre sua identidade.

Contudo, sua consciência de formação está direcionada, sobretudo, para uma jornada moralmente reprovável, cuja consonância é impossível, visto que não existe acordo entre seu desejo interior e a sociedade que o circunda, que seria capaz de proporcionar-lhe alguma integração. Sua trajetória, balizada pela vilania, sugere a possibilidade de leitura do romance como uma história de deformação ou um romance de formação inconcluso. A compreensão de Juliano como um sujeito em formação, cujo processo não se conclui de maneira exemplar, reforça a capacidade de Lemos de apropriar-se das condições sociais fragmentárias de sua época para construir um herói complexo, fruto da impossibilidade de seu tempo, articulado com as tendências do romance moderno.

Tanto o casarão que Juliano almeja ocupar quanto toda a simbologia que o acompanha – Olímpia bem criada e educada, os empregados, o carro, a fábrica – representam uma burguesia falida, moral e economicamente, desiludida, mesquinha e criminosa, que ascendeu pela exploração da classe trabalhadora e pela prática de negócios obscuros. Juliano é, em certa medida, um encontro entre o sistema moralmente falido dessa burguesia e os pobres e desvalidos, que sobreviveu nas ruas, miserável e em meio à bandidagem. Para além disso, a atualização do mito de Édipo cumpre um papel fundamental para compreender como o romance de Lemos está articulado e em diálogo com a literatura, buscando na tradição os motivos que são inerentes aos homens e mulheres de todos os tempos.

A cada capítulo que enfoca diferentes planos temporais da história, encabeçados pelas letras A, B e C do alfabeto, o leitor depara-se com um narrador e um narratário intradiegético, que é, na verdade, o próprio Juliano em diferentes fases de sua vida, dialogando consigo mesmo, através de um duplo que cria de si em seu inconsciente. Os parágrafos dos capítulos intitulados com a letra A são iniciados e terminados por reticências, de modo a interligá-los numa espiral. Isso se explica porque, quando assume definitivamente sua posição no casarão, Juliano instala-se no gabinete que pertenceu ao magnata e nessa sala desfia para o insolente duplo inventado os detalhes de como conquistou tudo na vida por meio da violência e narra sua sucessão de golpes contra o destino, na tentativa de encontrar assim alguma harmonia na vida. Desse modo, como um morcego cego silvando na noite, rodando em círculos, a narrativa também se reproduz num círculo interminável, em duplos, em repetições.

Considerando os recursos narrativos, a estrutura e o desenvolvimento da trama e personagens, Morcego cego é notadamente um romance bem construído e que deixa uma marca indelével na produção do final do século XX e no conjunto da obra de Lemos. Com maestria, o autor consegue articular a complexidade interior de seu protagonista em busca de sua identidade, tema antigo e frequente na literatura, com os aspectos sociais da decadência burguesa e das transformações do espaço urbano de seu tempo. Cumpre ainda notar a renovação do romance de formação, tomando como protagonista um anti-herói, ou um herói às avessas que não conclui sua formação e que assume a violência como mestre.

Recusando a limitada classificação de regionalista, Lemos demonstra em Morcego cego sua capacidade de construir um romance que não se detém nos elementos que a crítica convencionalmente atrela aos escritores do Nordeste. Em termos de estrutura, é inovador, com a organização dos parágrafos e as mudanças de plano temporal; no nível temático, atualiza o mito edipiano; em termos narrativos, usa com habilidade o fluxo de consciência e a alternância de narradores complexos. O romance de Lemos apresenta, portanto, sob seus próprios recursos estéticos e estilísticos, questões fundamentais para compreender o sujeito moderno e as inquietações e dilemas das relações sociais.

Para saber mais

SANTOS, Anderson Felix dos (2024). Aspectos de Bildungsroman em Noturno sem música (1956), Os olhos da treva (1975) e Morcego cego (1998), de Gilvan Lemos. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

LANÇAMENTO “Morcego cego”. Companhia Editora de Pernambuco. YouTube. 1 vídeo (1h). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Q7QF39sPKOk. Acesso em: 30 jul. 2024.

BENTO, Emannuel. Morcego cego, livro mais complexo de Gilvan Lemos, ganha nova edição pela Cepe. Disponível em: https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/viver/2021/07/morcego-cego-livro-mais-complexo-de-gilvan-lemos-ganha-nova-edicao-p.html. Acesso em: 26 set. 2024.

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Como citar:

SANTOS, Anderson Felix dos.
Morcego cego.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

27 jan. 2025.

Disponível em:

3653.

Acessado em:

19 maio. 2025.