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A parede no escuro

MARTINS, Altair. A parede no escuro. São Paulo: Record, 2008.

Gilmar de Azevedo
Ilustração: Léo Tavares

Altair Teixeira Martins (Porto Alegre, RS, 1975) é doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor titular pela mesma instituição. Romancista, poeta, contista, dramaturgo, ator, publicou várias obras: Como se moesse ferro (WS Editor, 1999), A parede no escuro (Record, 2008), Enquanto água (Record, 2011), Terra avulsa (Record, 2014), Os donos do inverno (Não Editora/Dublinense, 2019), Labirinto com linha de pesca (Diadorim, 2021), A paisagem presa na coleira (Patuá, 2023).

Conquistou vários prêmios, entre eles: Guimarães Rosa, com o conto “Como se moesse ferro”, Radio France Internationale (1994); Açorianos, categoria contos, com o livro Como se moesse ferro, Prefeitura de Porto Alegre (2000); Açorianos, narrativa longa, por A parede no escuro, Secretaria de Cultura de Porto Alegre (2009); Minuano de Literatura – categoria texto dramático, por Guerra de urina, Instituto Estadual do Livro (2019).

O escritor Altair Martins produz literatura engajada e segue a ideia de que o autor pode intervir sobre o que não é mostrado e adentrar em coisas mais sutis da realidade na tentativa de sabotá-la, corroê-la, em busca do que é real e não do que se pretenda real. Segundo ele, é para isso que existe literatura: como uma arte de visibilidade, com sequencialidade na construção de um mundo particular através da palavra, na revelação de sutilezas, com potencialidade de multiplicar o mundo, uma vez que, para essa arte, a verdade não existe, busca-se nos/com os personagens.

Dividido em 48 capítulos, nomeados de acordo com o tema e as ações em cada um deles, como o 28 [a parede], sobre as paredes da casa(residência)-padaria(local de trabalho) que interagem metaforicamente com mãe e filha. O enredo é ambientado em Pedras Brancas. O leitor é envolvido já desde o início em um acidente em que um carro branco, em uma madrugada de chuva, atropela um padeiro que levava dorninhos (pães) à Padaria dos Oliveira. Adorno, padeiro de 66 anos, morre em um verão quando a umidade é mais perigosa.

Esse padeiro é marido de Onira e pai de Maria do Céu e foi atropelado pelo professor Emanuel quando este estava indo buscar o pai doente, Fojo, para levá-lo a Porto Alegre. Maria do Céu, a filha de Adorno e Onira, tinha brigado com o pai, indo morar com a amiga Lisla, aluna do 3º ano do Colégio Irineu Evangelista. Lisla era aluna do professor Emanuel e estavam juntos no apartamento até a madrugada em que o professor cometeu o crime. Até a metade da narrativa, esses fatos são conhecidos pelos leitores. Nos capítulos que se seguem, perguntas dos leitores podem ser respondidas na leitura: Maria do Céu saberá que o assassino de seu pai é a mesma pessoa que se encontra com sua amiga de apartamento? Lisla saberá que Emanuel atropelou o pai de sua amiga? O pai de Emanuel, Fojo – sendo um dos três que socorreram Adorno –, sabia que o carro branco (e não a camioneta vermelha que outros disseram que viram) era dirigido por seu filho? Se tivesse a certeza, iria entregar seu filho para a polícia? Emanuel, pensando antes não ter sido visto (“Ninguém na rua por aquele momento”), conversaria com seu pai sobre o acidente? Iria se entregar à polícia? Maria do Céu e Onira continuariam o legado de Adorno na padaria (“Somos duas mulheres, dois poços profundos”)? Qual a relação entre Adorno e Fojo em relação a Emanuel ou Maria do Céu, já que brigaram à faca, foram presos e ficaram mais de um ano sem se falarem? Eis os desafios para os leitores.

Em A parede no escuro, há dissolução de relacionamentos entre pais e filhos. Em um dos conflitos, pai (Adorno) e filha (Maria do Céu) voltam a conversar sobre suas diferenças depois de muito tempo em silêncio. E tudo mediado metaforicamente pelas paredes da casa-padaria, de onde saiu a filha depois de brigar com o pai, por ser este, segundo a esposa Onira dos croché, um “velho burro” e que a coisa toda era o ciúme dele para com a filha. Atropelado e morto, pode estar, agora, espreitando-as no escuro entre as paredes em “ajustes de contas”. Onira avisa-o de que poderia sair das paredes porque ela e a filha tinham misericórdia de sobra no coração. Então, na narrativa, a Dona Onira está conversando com as paredes, enquanto Adorno, com seus vermelhos e vivos, olhavam a filha no escuro: é A parede no escuro.

Na narrativa, e faltando o pai da filha, a esposa-mãe, pela fé, deseja a reconciliação: “o Senhor perdoa a minha filha se ela fez e o Senhor perdoa meu marido pelo que ele disse”. Depois da morte do pai, a filha afirma que descobriu que o pai também temia os ratos da casa; e questiona o pai fisicamente ausente: “Não achas que eu deveria ter sido outra mulher e tu outro homem?”. Maria do Céu sente a presença do pai, com quem deveria ter uma última conversa, para – talvez – dizer que ele está afugentando os ratos que lhe pertencem e dava-lhe um pão e dentro dele tem um rato morto; também o pai diria à filha que ela não queria trabalhar na padaria com ele porque tinha vergonha dele, que era padeiro.

Em outro conflito entre pai e filho, encontram-se Fojo e Emanuel. O pai, Fojo – que achava não ser bonito um homem morrer sem mostrar para o filho onde escondeu tanta conversa que faltou −, e o filho, Emanuel − o professor de Matemática, que era esquisito e que não sabia rir −, enfrentam-se em meio à dúvida de que o pai reconheceu o filho como o autor do atropelamento de Adorno. Apesar dos conflitos, eles se reconhecem: “meu pai sendo mesmo capaz de me fazer parecido com ele”, reflete Emanuel.

Percebe-se que o escritor Altair Martins, frente à crise do narrador na contemporaneidade e ao questionar o narrador onisciente do século XIX, oferta, nessa obra, vozes narrativas imbricadas, que se emparelham e se alternam na narrativa, cabendo ao leitor perceber a voz que fala e estão nela ações e enigmas no enredo.  

A parede no escuro suscita no leitor reflexões, por exemplo, sobre sexualidade na interação de Maria do Céu com seu pai, Adorno, quanto ao que pensava e esperava dela; no comportamento do funcionário da padaria, Gabriel; no sentimento que nutria pela amiga Lisla (“Enquanto se secava, pensou que, se ela fosse homem, sim, transaria com ela mesma”). Suscita também reflexões em relação à ancestralidade quando Onira diz ter aprendido com sua mãe, Rita, sobre crianças que nascem de bruços serem meninos; as que nascem de lado, meninas, e o que pode acontecer quando do contrário. Problematiza também questões relacionadas ao trato com os animais, à educação, à relação professores-alunos, à ordem político-socioeconômica em países capitalistas. A parede no escuro, por tudo isso, convida o leitor a buscar nas camadas de leitura os significados da miséria existencial da humanidade.

Para saber mais

LEÃO, Camila Vianna (2011). Silêncio e sentido: as tramas do silêncio em A parede no escuro, de Altair Martins. Dissertação (Mestrado em Letras) − Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Disponível em: https://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/2048/1/436949.pdf. Acesso em: 20 jul. 2024.

PAIOL LITERÁRIO (2012). Altair Martins. Rascunho, dez. Disponível em: https://rascunho.com.br/paiol-literario/altair-martins/. Acesso em: 20 jul. 2024.

Iconografia

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Como citar:

AZEVEDO, Gilmar de.
A parede no escuro.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

24 jan. 2025.

Disponível em:

3638.

Acessado em:

19 maio. 2025.